Na COP-27, pesquisadora da UFSC fala sobre lacunas nas informações climáticas para tomada de decisões
A incerteza nos dados científicos, a ausência deles em parte do Sul Global e a necessidade imediata de se tomar decisões que não estejam concentradas em um modelo “de cima para baixo” foram alguns dos temas da fala da professora da Universidade Federal de Santa Catarina, Regina Rodrigues, na sessão da Organização Mundial de Meteorologia (WMO) na conferência do clima da Organização das Nações Unidas, a COP 27. O evento ocorre no Egito e reúne os principais pesquisadores, líderes e ativistas mundiais em discussões sobre clima e sustentabilidade. A participação ocorreu remotamente na madrugada desta quarta-feira, 9 de novembro, e reuniu o que a WMO chamou de “uma delegação de alto nível”.
Regina Rodrigues foi a única pesquisadora brasileira no painel, que contou com debates sobre como trazer a sociedade para a ciência; observação e modelos climáticos; avaliações de risco e ações de adaptação e temperaturas médias e calor extremo. Além disso, a sessão ainda trouxe discussões sobre os limites do sistema terrestre seguros e justos para o planeta; avanços no desenvolvimento de informações do clima físico para a tomada de decisões e sobre mudanças passadas e projetadas no clima e extremos climáticos.
A professora da UFSC falou sobre a lacuna entre a produção e o uso de informações climáticas, em palestra intitulada Inverting the construction on climate information for local-to-regional climate risk. Ela lembrou que, ao longo de décadas, há uma convocação para o uso de informações climáticas, mas que existe um gap entre a produção e uso. “A lacuna resulta em parte no foco em melhores dados, ao invés de em melhores tomadas de decisões”, pontuou.
Ela também destacou a existência de uma abordagem “de cima para baixo” que pode comprometer a efetiva tomada de decisões. “Essa abordagem adota medidas de qualidade científica inevitavelmente conduzidas pelos próprios cientistas climáticos. Viola, assim, os princípios fundamentais da coprodução, que tem um rico legado nos estudos de sustentabilidade”, disse. Segundo ela, para ser útil, a ciência da mudança climática precisa romper com o paradigma tradicional e criar uma comunidade de usuários.
O desafio seria lidar com essa complexidade, mantendo a simplicidade e o esforço de empoderar as comunidades locais para conhecerem sua situação com dados concretos e transparência. No artigo Small is beautiful: climate-change science as if people mattered, recentemente publicado e citado por ela na apresentação, a professora aponta que, nas comunidades, a mudança climática é apenas um fator entre muitos a serem considerados.
No texto, fala sobre a importância de se investir na “simplicidade ao lidar com incertezas” e também sobre a ideia de capacitar as comunidades locais para entender sua própria situação, que pode ser abordada desenvolvendo tecnologias intermediárias. “Acreditamos que a própria ciência pode ser reconfigurada para ser mais adequada ao propósito, ou seja, tornar a pesquisa útil no contexto da adaptação climática e do risco climático local”, alertou, no painel da COP 27.
Sobre os sistemas de dados disponíveis, a pesquisadora listou como desafios a limitação dos indicadores a longo prazo, já que modelos climáticos também podem, de certo modo, deturpar importantes variáveis físicas, além de terem certa incapacidade em simular determinados fenômenos de modo mais realista.
A partir de um fato que ocorreu em 2013 e 2014, quando o leste da América do Sul experimentou uma de suas piores secas, a pesquisadora afirmou que um bom e longo registro observacional de precipitação e outras variáveis físicas importantes não está disponível para esta região. “Esses eventos extremos compostos levaram à escassez de água e energia no sudeste do Brasil, reduziram a produção brasileira de soja, café e cana-de-açúcar, impactando o abastecimento de alimentos globalmente e aumentando os preços mundiais. Impactou a aquicultura e a pesca e afetou a saúde humana, aumentando os riscos de insolação e doenças transmitidas por vetores”, pontuou.
Na apresentação, Regina questionou se a sociedade pode se dar ao luxo de esperar o aprimoramento dos sistemas que fornecem informações para planejar e adotar medidas. Ela ainda falou sobre a rede regional do My Climate Risk espalhada pelo mundo. O projeto pretende desenvolver e integrar uma abordagem “de baixo para cima” para o risco climático regional, envolvendo a comunidade em cooperação com instituições e universidades em apoio a um ecossistema de atividades mais informais.
A professora reforçou, ainda, a importância de uma inversão na lógica de se pensar a questão climática, trazendo os quadros teóricos para a realidade ao invés da direção oposta. O desafio seria manter a simplicidade, um projeto mais difícil do que partir para a sofisticação e a complexificação das informações.
“O que eu destaco sobre a minha palestra, como mensagem principal, é se, dadas as tendências observadas e a incapacidade dos modelos climáticos de representar adequadamente a variabilidade das chuvas em tantas regiões do Sul Global, podemos esperar até que tenhamos declarações de atribuição mais confiáveis para fornecer aos tomadores de decisão as informações necessárias para planejar e adaptar”.
Regina é professora de Oceanografia Física e tem se dedicado a compreender as mudanças climáticas a partir de uma série de produções científicas. Um dos artigos mais recentes, que ela assina com outros pesquisadores, trata dos impactos da oscilação do El-niño na América do Sul e foi citado por mais de 226 outros estudos no mundo todo.
A COP 27 começou no último domingo e será realizada até o dia 18 de novembro. A reunião global tem como foco a discussão das mudanças climáticas, reunindo lideranças para debater dados e medidas de mitigação que atenuem os efeitos e prejuízos das alterações do clima na Terra. Os debates estão focados em seis tópicos centrais: Transições Justas, Segurança Alimentar, Financiamento Inovador para Clima e Desenvolvimento, Investir no Futuro da Energia, Segurança Hídrica e Mudanças Climáticas e A Sustentabilidade de Comunidades Vulneráveis.
Leia a fala completa da professora Regina Rodrigues em painel da COP-27
Esta palestra se concentrará em algumas atividades que Ted Shepherd e eu estamos desenvolvendo dentro do World Climate Research Programme (WCRP). É uma atividade chamada My Climate Risk, e seu principal objetivo é desenvolver uma nova estrutura para avaliar e explicar o risco climático regional para fornecer informações climáticas significativas em escala local. Em particular, em locais onde os serviços climáticos não estão disponíveis, principalmente no Sul Global. Durante décadas, houve um apelo por informações climáticas utilizáveis (ou acionáveis). No entanto, apesar dessa conscientização e esforço global, é amplamente aceito que existe uma lacuna significativa entre a produção e o uso de informações climáticas. Argumentamos que a lacuna resulta em parte do foco em melhores dados, em vez de melhores tomadas de decisão.
Mesmo que informado pelo usuário, tal abordagem “de cima para baixo” adota medidas de qualidade científica e é inevitavelmente conduzida pelos próprios cientistas climáticos. Viola, assim, os princípios fundamentais da coprodução, que tem um rico legado nos estudos de sustentabilidade. Para ser útil, a ciência da mudança climática precisa romper com o paradigma tradicional de pesquisa/avaliação/política e criar uma comunidade de usuários. Daí o título da minha palestra Invertendo a construção da informação climática para o risco climático local-regional. Acreditamos que a própria ciência pode ser reconfigurada para ser mais adequada ao propósito, ou seja, tornar a pesquisa útil no contexto da adaptação climática e do risco climático local. Os desafios são, em primeiro lugar, lidar com a complexidade das situações locais, que podem ser abordadas expressando o conhecimento climático de forma condicional. Em segundo lugar, a importância da simplicidade ao lidar com incertezas, que podem ser abordadas por meio do uso de metodologias mais simples. Um terceiro aspecto é a necessidade de capacitar as comunidades locais para que compreendam sua própria situação. Mais detalhes podem ser encontrados no estudo intitulado Small is Beautiful: Climate-change science as se as pessoas importassem, que publiquei recentemente com Ted Shepherd no PNAS Nexus.
Para tornar as coisas concretas, mostro brevemente um estudo de caso (na América do Sul) que ilustra a natureza do desafio. No verão austral de 2013/14, o leste da América do Sul experimentou uma de suas piores secas registradas. Associado à seca, ocorreram extremos de temperatura do ar sobre a terra e, ao mesmo tempo, uma onda de calor marinha sem precedentes se desenvolveu no oeste do Atlântico Sul. Esses eventos extremos compostos foram associados à falha do Sistema de Monções da América do Sul e levaram à escassez de água e energia no sudeste do Brasil, reduziram a produção brasileira de soja, café e cana-de-açúcar, impactando o abastecimento de alimentos globalmente e aumentando os preços mundiais. Impactou a aquicultura e a pesca e afetou a saúde humana, aumentando os riscos de insolação e doenças transmitidas por vetores.
Claramente, se este evento é de alguma forma um sinal do que está por vir das mudanças climáticas, teria grandes implicações para a adaptação climática no sudeste do Brasil. No entanto, responder a esta pergunta não é fácil. Um bom e longo registro observacional de precipitação e outras variáveis físicas importantes não está disponível para esta região. Com relação à orientação dos modelos climáticos, a variabilidade pluviométrica nesta região não está bem representada em suas principais características observadas, como percentis elevados, sazonalidade e variabilidade espacial. Além disso, os modelos climáticos continuam em grande parte incapazes de simular de forma realista os fenômenos que levam à variabilidade das chuvas no leste da América do Sul e suas teleconexões.
Esta situação, com registros de dados de longo prazo limitados, uma representação pobre em modelos climáticos dos processos físicos relevantes por trás de eventos extremos e previsões de modelos ambíguos da resposta forçada às mudanças climáticas, não é específica para esta região e é particularmente característica dos países do Sul Global. Isso é ilustrado por esta Figura do Resumo para Formuladores de Políticas do IPCC AR6, que identifica explicitamente as regiões para as quais há dados e/ou literatura limitados sobre mudanças passadas, baixa concordância sobre o tipo de mudança e /ou baixa confiança na contribuição humana para essas mudanças devido a evidências limitadas. A ciência das mudanças climáticas, como é praticada atualmente, e como mostrei, tende a enquadrar as questões científicas como “singulares, definitivas”. Ele faz isso concentrando-se em projeções de modelos climáticos e enfatizando onde há consenso entre eles, reconhecendo a incerteza, mas não a explorando realmente. O foco em problemas “singulares, definitivos” também é expresso na prática ainda comum na maioria das ciências sobre mudanças climáticas publicadas para interpretar “significado estatístico” de uma maneira dicotômica de verdadeiro/falso, e evitar a articulação de múltiplas hipóteses plausíveis, o que permitiria um enquadramento “plural, condicional” da incerteza.
Dadas as tendências observadas e a incapacidade dos modelos climáticos de representar adequadamente a variabilidade das chuvas em tantas regiões do Sul Global, podemos esperar até que tenhamos declarações de atribuição mais confiáveis para fornecer aos tomadores de decisão as informações necessárias para planejar e adaptar?
Dentro do My Climate Risk, estamos desenvolvendo técnicas como storylines onde podemos trabalhar em conjunto com tomadores de decisão/formadores de políticas/sociedade desde o início, escolhendo as informações disponíveis (de modelos e observações) mais apropriadas para construir as informações climáticas relevantes. Por exemplo, no caso do leste da América do Sul com gerentes de abastecimento de água, analisamos membros do conjunto que projetam tendências de seca, enquanto que com planejadores urbanos preocupados com deslizamentos de terra e inundações, analisamos membros do conjunto que projetam tendências mais úmidas. Em vez de usar a média do conjunto de todos os membros, o que nos dá uma baixa concordância e baixa confiança. Esta é a nossa rede de hubs regionais.
Devemos derivar uma estrutura conceitual da realidade, em vez de derivar “realidade” de uma estrutura conceitual (paráfrase do livro de 1973 Small is Beautiful, de E.F. Schumacher), que é o que obtemos de nosso foco na significância estatística em vez de relevância para a tomada de decisão. A tendência natural dos cientistas do clima de agregar dados na busca de explicações gerais, e não necessariamente incorporar a ciência das mudanças climáticas em um contexto social. Nesse sentido, devemos resistir à agregação, e essa é a beleza das histórias. Em última análise, o imperativo de baixo para cima defende olhar para a ciência das mudanças climáticas a partir de uma perspectiva humana. Outro ponto é que a simplicidade é importante. É muito mais difícil recuperar a franqueza e a simplicidade do que avançar na direção de uma sofisticação e complexidade cada vez maiores. E o último ponto é a necessidade de capacitar as comunidades locais para entender sua própria situação, que pode ser abordada desenvolvendo “ferramentas simples” que constroem confiança e transparência. A ciência das mudanças climáticas é necessariamente grande ciência, argumentamos que, para tornar a informação climática útil para adaptação, também é necessário descobrir a beleza da simplicidade.
Amanda Miranda, jornalista da Agecom/UFSC