Banco de fezes: pesquisador busca financiadores para montar laboratório que pode salvar vidas
Cientista da UFSC explica como o armazenamento de amostras pode ser usado para tratar doenças e controlar infecções

A disbiose pode ser intestinal, vaginal, da pele e do pulmão. (Foto: Centro de Controle da Disbiose)
Fezes – sim, fezes – podem ser usadas para o tratamento de doenças, para controle de infecções e até para melhora em quadros do espectro autista. O transplante da microbiota intestinal (TMI), mais conhecido como transplante de microbiota fecal (TMF), vem sendo aplicado como método eficaz em todo o mundo para tratar problemas causados por bactérias multirresistentes a antibióticos e muitas outras condições. Esse é o principal tema de pesquisa de Carlos Zárate-Bladés, professor e médico que criou o Centro de Controle da Disbiose e lidera uma equipe de pesquisadores no Centro de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Boliviano que mora em Florianópolis desde 2015, Zárate-Bladés comenta que a transferência de microrganismos de uma pessoa pode restabelecer o equilíbrio da microbiota intestinal. “O transplante de microbiota se consolidou para tratar uma infecção de repetição causada pela bactéria Clostridioides difficile, que provoca diarréia no paciente podendo evoluir para a inflamação do cólon. Esse patógeno é responsável por alta taxa de mortalidade em pacientes internados em hospitais; com o transplante, o sucesso da recuperação é superior a 90% para essa infecção em específico”, salienta o pesquisador.
A alteração da microbiota é chamada de disbiose, que pode ser intestinal, mas também vaginal, de pele, de pulmão e de qualquer outra mucosa do corpo. O desequilíbrio costuma provocar o aparecimento de doenças de diversos tipos, sendo a mais comum associada ao uso de antibióticos, mas também pode ser um problema consequente por uma outra doença de base.
Outras alterações são atribuídas a pessoas com doenças inflamatórias intestinais como a colite ulcerativa e a doença de Crohn são condições que podem se beneficiar com esse tratamento. Assim, o objetivo do pesquisador Carlos Zárate-Bladés é desenvolver a técnica do Transplante da Microbiota Intestinal (TMI) no Hospital Universitário Polydoro Ernani de São Thiago, da Universidade Federal de Santa Catarina (HU-UFSC). Isso envolve investimentos para uma estrutura adequada, realização e manutenção da pesquisa.
Devido à baixa incidência de efeitos colaterais, o transplante de fezes é recomendado pela Sociedade Americana de Doenças Infecciosas (IDAS) e pela Sociedade Europeia de Microbiologia Clínica e Doenças Infecciosas (ESCMID). O primeiro transplante de fezes no Brasil foi realizado no Hospital Israelita Albert Einstein, em 2013. Existe um banco de fezes no Hospital da Universidade Federal de Minas Gerais, que vem realizando de forma rotineira o transplante desde 2017.
O que está sendo feito na UFSC
A equipe do professor Zárate-Bladés há anos estuda exaustivamente a situação do transplante fecal no mundo. As pesquisas iniciais datam a partir de 2015 e buscam entender as possíveis aplicações terapêuticas das bactérias da microbiota intestinal. Já está em prática e de forma inicial, um formulário para recrutamento e a identificação dos primeiros potenciais doadores para fazer a coleta das fezes. A etapa seguinte desse processo requer a certificação negativa para doenças, em seguida o armazenamento das fezes em um biobanco.
Até o momento, o estudo conta com financiamento da UFSC e da Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Estado de Santa Catarina (Fapesc) e está sendo executado no Hospital Universitário (HU-UFSC).
Entenda como funciona o transplante de fezes
Primeiramente, para realizar a caracterização dos doadores de fezes, coleta do material e armazenamento, é preciso ter um biorrepositório de fezes. Idealmente, seria necessário começar esse processo com 10 a 20 doadores, que irão doar as fezes por um período curto de tempo em repetidas oportunidades. A parte mais onerosa desse projeto é justamente pesquisar doenças em todos estes indivíduos, cerca de R$ 10 mil por paciente/voluntário. “Para isso, precisamos contar com aproximadamente R$ 200 mil para fazer a caracterização de forma tranquila e qualificada”, explica Zárate-Bladés. No entanto, até o momento, os investimentos na pesquisa foram de R$ 25 mil.
Isto feito, o passo seguinte requer o armazenamento das fezes, que são depositadas em potinhos semelhantes aos usados para coleta em laboratório. A partir disso, esse material é depositado em um biorrepositório, guardado em condições ideais para preservação e, posteriormente, deveria-se manter esse biorrepositório ao longo do tempo, já na forma de um biobanco.
O transplante de microbiota fecal consiste numa desinfecção do intestino de uma pessoa com antibióticos e, somente depois, é administrado o conteúdo microbiológico contido nas fezes de um doador saudável. O procedimento mais comum atualmente, segundo Zárate-Bladés, é por colonoscopia, sendo a administração do material por via retal, precisamente no intestino grosso; método comum utilizado para avaliações e tratamentos das porções finais do intestino.
Em seguida, as bactérias “boas” transplantadas começam a ocupar o intestino e reconstituir a microecologia desse órgão que se encontra alterada pela doença. “Em aproximadamente 90% dos casos da infecção por C. difficile, as funções intestinais voltam ao normal, mas já sabemos de respostas 100% positivas”, revela o pesquisador. É importante ressaltar que, neste processo, o que se quer dos doadores de fezes são as bactérias saudáveis que compõem a sua microbiota intestinal, por esse motivo a seleção de doadores é muito rigorosa.
Sobre a dificuldade de desenvolver pesquisa científica com impacto quase imediato na saúde das pessoas, o pesquisador argumenta a respeito da dificuldade para desenvolver estudos no Brasil. Ele inclusive passou cinco anos se aperfeiçoando no National Institutes of Health (NIH), nos Estados Unidos. “Sem chance de errar, um estudo clínico ou ensaio clínico semelhante a um outro projeto que estamos executando em recém nascidos prematuros, certamente receberia entre US$ 5 milhões a 10 milhões para ser realizado. Aqui, trabalhamos com no máximo R$ 100 mil, entende?”, observa. Segundo ele, aqui a realidade é bem diferente, já aconteceu de o pesquisador pegar seu próprio carro, utilizar recursos próprios para procurar amostras biológicas e equipamentos, entre outras coisas.
As pesquisas de Zárate-Bladés e os interesses no setor produtivo
Carlos Zárate-Bladés recomenda o transplante de microbiota intestinal (TMI) como um tratamento altamente eficaz para tratamento de Clostridioides difficile, infecção bacteriana debilitante que atinge meio milhão de americanos por ano e mata 30 mil. Os dados são do Centers for Disease Control and Prevention.
Do ponto de vista epidemiológico, os casos no Brasil ainda são subnotificados e os estudos escassos, isso dificulta informar os dados no cenário nacional. Conforme Zárate-Bladés, C. difficile é na atualidade um importante bacilo causador de diarreia desencadeando outros cuidados de saúde, principalmente nos hospitais.
O Serviço de Controle de Infecção Hospitalar do HU-UFSC tem especial interesse na implementação do método de transferência de bactérias saudáveis para tratar infecções, em vista de que serão realizadas a aplicação e a validação de um procedimento mais específico para a detecção de Clostridioides difficile e, sobretudo, no uso do procedimento contra bactérias multirresistentes a antibióticos, até mais comuns que C. difficile.
Entre os benefícios do transplante de microbiota intestinal, Zárate-Bladés destaca a rapidez e a melhora significativa no diagnóstico para o paciente, garante o tratamento adequado e, ainda, reduz custos gerais, como tempo de internação envolvendo a infecção causada por esta bactéria. Além disso, “a descolonização de pacientes com bactérias multirresistentes, usando o TMI, pode gerar uma economia enorme para o hospital, evitando infecções e recidivas frequentes”, argumenta. Inclusive o cientista da UFSC vê potencial para o uso do TMI para ajudar a tratar outras doenças, como câncer, diabetes e, ainda, crianças portadoras do Transtorno do Espectro Autista (TEA).
Interesse científico na microbiota intestinal de crianças autistas
O Transtorno do Espectro Autista (TEA), é uma condição neurológica e de desenvolvimento que afeta a forma como os humanos se comunicam, aprendem coisas novas e se comportam.
Entre os principais sintomas do TEA estão as dificuldades em interagir com os outros e se adaptar a mudanças na rotina, comportamentos repetitivos, irritabilidade e interesses restritos ou fixados por coisas específicas.
Zárate-Bladés tem interesse científico sobre as consequências da microbiota intestinal disbiótica, ou seja, de funcionamento alterado e/ou em desequilíbrio, no comportamento e neurodesenvolvimento de crianças com Transtorno do Espectro Autista (TEA).
Em estudos recentes foi possível identificar 57,5% de Candida spp. (um tipo de fungo), em amostras de crianças com TEA. Para o pesquisador, esse dado é promissor para a compreensão do papel da disbiose fúngica, especificamente em crianças autistas, além da relevância para a clínica e possíveis formas de controle.
“A composição biológica do intestino está ligada diretamente ao nosso sistema nervoso central formando um eixo microbioma-intestino-cérebro”, explica o pesquisador, isso explica o fato de as bactérias intestinais exercerem influência sobre os comportamentos sociais.
Mais informações sobre o andamento dos estudos do pesquisador da UFSC, Carlos Zárate-Bladés podem ser conferidas no site:
https://centrodecontroledadisbiose.paginas.ufsc.br/
Entre em contato com o pesquisador
Prof. Dr. Carlos R. Zárate-Bladés
Laboratório de Imunorregulação, iREG
Depto. de Microbiologia, Imunologia e Parasitologia, MIP
Centro de Ciências Biológicas, CCB novo
Bloco F, 8o andar, Sala F801-802-803
Universidade Federal de Santa Catarina
CEP 88037-000
Florianópolis, SC
Brasil
Denise Becker / Supervisora do Núcleo de Apoio à Divulgação Científica / UFSC
Maria Magnabosco / Estagiária de jornalismo / Núcleo de Apoio à Divulgação Científica / UFSC
Rafaela Souza / Estagiária de design / Núcleo de Apoio à Divulgação Científica / UFSC