Novo livro de José Isaac Pilati resgata uma epopeia de gente simples
A cidade é Nonoai, próxima ao porto do Goio-en, no rio Uruguai. Um cenário marcado por pessoas, costumes e fatos que definiram um período de intensa atividade econômica centrada na madeira, no Sul do Brasil (1920-1960), utilizando como transporte as balsas de toras pelo Uruguai até a Argentina, nas enchentes do rio. O risco era muito grande e o contexto era de uma vida dura, de violência, mas com todos os ingredientes da vida humana e de tempos heroicos.
O livro é “A tragédia de Mario Castelhano: Severina – Canto Um”, publicado pela Editora Unoesc. Seu autor é José Isaac Pilati, testemunha do desmatamento e da atividade balseira do Rio Uruguai nos anos cinquenta, em Nonoai, no Rio Grande do Sul, Chapecó e Maravilha, em Santa Catarina. O lançamento em Florianópolis está marcado para o dia 9 de agosto, às 19 horas, na Casa José Boiteux, com renda para o Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina.
“É um brado perante a desertificação do mundo pela a civilização europeia”, explica Pilati. “A obra é prevista para três volumes: o primeiro é esse que estou lançando, em torno do elemento luso e do personagem Severina; o segundo acentuará o imigrante italiano, na pessoa do jovem Guilardi, e o terceiro evocará o contexto sul-americano, focado em Mário, o Castelhano. É a história de três proscritos, condenados por um modelo predatório, ele mesmo exigindo um julgamento do leitor.”
É uma epopeia em versos, de narrativa não linear. Os poemas são descritivos, os versos são livres, rimas soltas e uma métrica variável. A intenção do autor é um texto para encenação teatral: O Cortado se riu, Rasga-Diabo sorriu, Severina partiu em três partes o pão. “Tudo parece inusitado, porque a vida o é, pois não.”
Severina é uma mulher rebelde aos padrões morais do vulgo em seu tempo: doce, destemida, violenta e fidalga, convive com homens de toda a espécie e não se identifica com as mulheres que eles oprimem; possui tino comercial e completa o seu esquema de poder com uns bailes habituais, numa casa em que só entra valente. Nunca teve família, nem procedência conhecida. “É uma figura que o filósofo Nietsche adoraria; alguém que certamente envolveria o próprio Zaratustra num enredo de inteligência, afeto, poder e independência pessoal”.
“Não há como não a amar, ela, porém, não ama ninguém; e representa o que poderíamos ser não fora o sistema em que vivemos, fundado na culpa: Branca, negra, índia, bugra, eram essas as suas vogais, nas consoantes do mundo, em seu tempo, em Nonoai”
Severina apareceu criança na vila, andava pelas casas, “morava com todos sem ser de ninguém”. Depois sumiu por décadas até reaparecer “no Encruzo de Vênus”. Percebendo a importância do dinheiro, fica rica, é respeitada, odiada e amada. “Carregava consigo uma navalha de defesa pessoal enrustida num leque florido, de prenda; e a qualquer alarido, ameaça ou bandido, começava a abanar-se a medir o perigo.”
O bodejo da Severina
“A minha história de vida foi fragmentada”, diz Pilati. “Os primeiros anos eu vivi em Nonoai. Aos três fomos para Maravilha, no Oeste catarinense e de lá aos doze para um seminário, onde fiquei sete anos. Aos 19 anos fui para Curitiba e enfrentei o vestibular para Direito. E assim, em matéria de amizades e afetos, vivi de recomeços sempre em lugares diferentes e por conta própria.”
“Percebo pela minha experiência, que o núcleo afetivo da pessoa está nos três primeiros anos de vida. Meu coração mora naquela época, naquela paisagem. Esse livro, por isso, é devotado aos avós, bisavós, pais e amigos deles, sua vida, suas histórias. O enfoque é saudoso e crítico. Vinicius de Moraes disse que a poesia é aparentemente inútil, mas bela por modesta e heroica, e por não se comprometer com os donos da vida. Seu único patrão é a própria vida.”
Pilati optou pela forma poética “Pensei assim: um romance como o Tempo e o Vento, de Érico Veríssimo, não pode ser recitado ao fogo de chão. E eu quero a história do meu tempo a luzir com a lareira, a circular nas rodas de chimarrão da minha gente, a sobreviver nos sucessores.”
E mais: “Cada tempo, cada época tem a sua velocidade e a literatura deve expressar-se no ritmo de seu tempo. Quem é que tem paciência para assistir a um filme de faroeste antigo? É muito lento. Quem se dispõe a ler algo de hoje na forma que empregou Camões?”
O primeiro poema da obra foi O bodejo da Severina. “Encantei-me com a história dela: a navalha enrustida no leque de prenda, o papagaio desbocado viajando na garupa, o relho na parede do salão e o desdém pelo moralismo oco do seu tempo. Uma mulher que veio do nada e já sabendo, como as cobras de veneno. E que ademais, como Jesus, sumiu para reaparecer quebrando dogmas.”
“A história do papagaio foi meu pai que me contou. E a história do relho foi relatada por Leopoldo Moura, que faleceu aos 102 anos, logo depois do depoimento que me deu. Os demais personagens também são reais, existiram, a exemplo do Cemitério do Cortado, que lá está até hoje, guardando os restos mortais dos protagonistas da minha história, ou melhor, da história da minha gente.”
“O Bodejo foi o primeiro que escrevi, e também foi o ultimo a ser concluído, na última hora. Nas cartas para a poetisa Beatriz Castro, de Porto Alegre, fui registrando as definições que fui dando à obra, o modelo de verso, conteúdo e forma. Por isso que a homenageei com reproduções de falas suas na capa do livro. Fui definindo aos poucos um verso ritmado à base de aliteração e rima solta, sem compromisso, porém, coeso e econômico no todo. É uma técnica que veste a complexidade temática sem deixar sobras ou nudez”.
“São versos a caminho de uma sanfona ao longe, o baile, justamente, onde ocorre o episódio central da história, objeto do Canto Dois, que ainda não escrevi. É lá que se encontrarão os protagonistas da epopeia. Tragicamente”.
Contatos com o professor José Isaac Pilati pelo fone (48)99980-6305.
Artemio Reinaldo de Souza/Agecom/UFSC