Romance publicado pela EdUFSC é finalista do Prêmio Açorianos de Literatura
O romance entreilha, de Rafael Reginato, lançado pela Editora da Universidade Federal de Santa Catarina (EdUFSC), é finalista do Prêmio Açorianos de Literatura 2012, promovido pela Secretaria de Cultura de Porto Alegre. Romance inovador na linguagem, trata-se, nas palavras do escritor, de uma “narrativa bastante fragmentada, de um tempo não linear, corrompido, de uma ação repleta de digressões, idas e vindas”.
Considerado o concurso literário mais importante do Rio Grande do Sul, o prêmio atrai e contempla autores cujas obras são publicadas por editoras de distribuição nacional, regional ou independentes. Criado em 1994, já distinguiu escritores como João Gilberto Noll, Martha Medeiros, Fabrício Carpinejar, Luís Augusto Fischer e Altair Martins. Tendo como baliza a “qualidade literária”, coloca em pé de igualdade autores mais e menos conhecidos dos leitores.
Homem das letras
Rafael Reginato, natural de Porto Alegre, mora atualmente na Ilha de Santa Catarina, fonte inspiradora da sua ficção literária. Homem de comunicação, Rafael sempre manteve um vínculo com as letras. Contista, cronista, e agora romancista, venceu prêmios literários no Rio Grande do Sul, em Santa Catarina, no Paraná e em São Paulo.
Neste novo lançamento da EdUFSC, o autor “envolve o leitor numa atmosfera em que ilusão e realidade, virtual e real, se interpõem, perpassam um ao outro, a ponto de não haver respostas absolutas”.
“Realismo…”
Embora de “fundo policial”, o romance de Rafael Reginato é de gênero indefinido. “A realidade é matéria prima para minha escrita na medida em que pode ser deturpada, deformada, modificada, desconstruída”, sublinha.
O autor reconhece que, em alguns momentos do livro, se aproximou do “realismo mágico”. Assim, se fosse classificá-lo dentro de alguma categoria, Rafael o definiria como “Realismo Virtual”. O escritor admite ter “bebido” na literatura de Borges, Cortázar e Roberto Arlt, sem desmentir comparações de estilo com Saramago.
Entre duas ilhas
Procurando facilitar a vida do leitor, na contracapa a editora esclarece: “entreilha” começa assim, sem letra maiúscula, e termina sem ponto final, emendando no início, fim ou meio da narrativa, como um círculo, com as vidas que sempre voltam ao mesmo ponto”. A editora reforça que “é uma história que interessa ao homem contemporâneo, fragmentado, virtual, sempre no meio da ponte entre dois lados, entre duas ilhas, querendo chegar a algum lugar”.
Referendado pelo Conselho Editorial da EdUFSC, “entreilha” apresenta uma “constante indagação sobre o sentido dos atos e da vida, o que lhe dá densidade suficiente para fugir à mesmice característica do gênero policial”. Ou seja, dialogando com o romance policial, “dialoga, também, com as tendências mais contemporâneas do romance, que aposta na fragmentação do texto”.
Narrativa circular
Sobre o livro é preciso registrar a sua concepção de “narrativa circular”, como alguém que permanece no mesmo lugar, sem avançar nem retroceder, literalmente andando em círculos. Nesse sentido, vale salientar que os títulos dos capítulos (sempre em letra minúscula) representam também a última palavra do capítulo. Ou seja, o capítulo inicia e termina com a mesma palavra, voltando-se sobre si mesmo. É como se cada capítulo pudesse representar um fragmento independente, pequenos círculos dentro de um maior (a narrativa como um todo). Trata-se também, a rigor, de um livro sem começo nem final, onde o meio é o que interessa. Por isso, a narrativa inicia sem letra maiúscula e termina sem ponto final, como se permanecesse sempre no meio, incompleta, na expectativa ou espera de chegar a algum lugar, a algum ponto final. A oração “sempre quis não ser linear”, que literalmente inicia e termina o livro, também atesta esse conceito de uma “narrativa circular”, atando suas duas pontas (começo e fim), fechando-se em si mesma, mas como se fosse, ao mesmo tempo, infinita, aberta. “entreilha” é narrado como um círculo. Um círculo, entretanto, fragmentado, e que não é linear. Um círculo que, como uma figura geométrica, é propenso à brincadeira, à invenção, a um jogo com o leitor.
Entrevista
Segue breve entrevista com o autor de “entreilhas”, Rafael Reginato.
O sr. poderia tentar resumir o romance em poucas linhas?
Primeiramente, é preciso salientar que se trata de uma narrativa bastante fragmentada, de um tempo não linear, corrompido, de uma ação repleta de digressões, idas e vindas. A narrativa, nesse sentido, propõe-se a enganar o leitor mais desatento. Envolve o leitor numa atmosfera em que ilusão e realidade, virtual e real, se interpõem, perpassam um ao outro, a ponto de não haver respostas absolutas para tudo o que ocorre no livro, como se a resposta incumbisse a cada leitor, à sua fantasia e interpretação possíveis. Dentro dessa concepção, aproxima-se mais de uma literatura argentina, da tradição de Borges, Cortázar e Roberto Arlt.
Como enredo entrecortado e descontínuo, o livro apresenta uma história um tanto banal. Creio que é na linguagem e na forma de entrecruzar a sensação de real e imaginário que a narrativa alcança seus maiores méritos. O enredo, no entanto, conta a história de um grupo de jovens desocupados que se conhecem pela internet e decidem assaltar um banco. Trocam suas identidades, se é que elas existiam, traçam um plano de assalto e, por fim, executam-no. Entretanto, o personagem principal, que se autodenomina “eu” e também é o narrador da história, resolve mudar os planos. Juntamente com Tavia resolvem fugir com o dinheiro roubado para a ilha que haviam visto numa foto de calendário. A ilha representa o destino a que sempre haviam querido chegar, a realização do sonho, mas é também o refúgio, o esconderijo dos assaltantes. Na ilha é que se dá a grande transformação, para bem ou para mal, do personagem principal. É na ilha que ele se voltará para dentro de si na medida em que também entra em contato com a paisagem do local. É na ilha que a história ganha contornos mais existenciais, reflexivos. É na ilha que “eu” se descobre no mesmo lugar do qual nunca saiu, percebe e aceita que esteve sempre em cima da ponte, querendo chegar a um dos lados, a algum lugar, e nunca aproveitou o que aquele momento “real” poderia representar. Estamos constantemente em transição, em movimento, querendo chegar a algum lugar, almejando algo, ambicionando algo. “entreilha” é o lugar do antes de chegar, o lugar da inércia, da parada aceita, do tempo estático, da palavra que inicia com letra minúscula porque sempre estará no meio da frase, num entrelugar, entre sonho e realidade, entre real e virtual.
A ambientação da história acontece na lha de SC?
Eu diria que foi uma inspiração. Moro na Ilha de Santa Catarina. A ponte que aparece no livro pode ser a Hercílio Luz. Mas pode também se tratar de alguma outra ilha de características semelhantes. Pode ser ainda uma ilha imaginária, e isso já muda tudo. A ilha simboliza no livro o destino almejado pelos personagens, o sonho que sempre ambicionamos alcançar, o lugar ou não-lugar onde inquietamente sempre queremos chegar, mas que não deixa de ser qualquer um ou todos os lugares ao mesmo tempo. A paisagem que busco no livro é mais interna do que externa ou, no mínimo, um ponto de interferência entre ambas. A verdade é que não há espaços definidos no livro, não há identificação nem identidade, o que é uma tendência na arte contemporânea e, por que não dizer, no mundo de hoje também. O que há, de fato, é um mascaramento da realidade, um despiste que pode ser constatado pelo próprio nome dos personagens que sugerem apenas uma aparência ou pelas identidades falsas que adquirem. Por exemplo, Dorna e Tavia, personagens mulheres do livro, quando precedidas do artigo feminino formam as palavras “adorna” e “atavia”. Adoniseu, nome de outro personagem do livro, é a junção narcisista do “eu” com o nome do deus grego Adônis. Todos eles são jovens comuns que podem se transformar de uma hora para outra em assaltantes ou criminosos (como os hackers), num mundo onde a vulnerabilidade, a facilidade de acesso a tudo e o apagamento dos limites, até mesmo os de comportamento, permite sermos quem quisermos.
Entre o planejamento do assalto até a consecução do crime, o romance manifesta uma nítida preocupação com a preservação ambiental e a qualidade de vida das pessoas. Esse conteúdo, construído de forma literária, tem a ver com a nossa realidade?
É uma leitura possível, mas não foi o que me motivou a escrever o livro. A realidade é matéria prima para a minha escrita na medida em que pode ser deturpada, deformada, modificada, desconstruída. Ainda assim, a questão do “verde” que aparece recorrentemente no livro pode ser mais relacionada a uma transformação interior do personagem principal do que propriamente exterior ou ligada ao meio em que vive. O “verde” de que falo no livro, o “verde natural-absoluto-essencial”, está mais relacionado ao aspecto existencial, humano, que logicamente pode se transformar em contato com a natureza externa. Mas, para mim, o ser humano é dono de sua própria natureza e é no seu interior que as grandes transformações ocorrem e que as paisagens se modificam, tornando-se mais belas ou não. Trazemos também tempestades e dias ensolarados dentro de nós, independentemente do local onde estivermos.
Após o crime, além dos conflitos existenciais do casal, aparece também a corrupção da autoridade policial…
Sim, esse pode ser um fato real da narrativa. Entretanto, é importante destacar que os personagens do livro, em sua maioria, são contraventores. Não é a autoridade ou o poder institucionalizado que importa. Existem regras marginais às instituições. Quem é a autoridade policial? Não é um ser humano como outro qualquer, passível de erros, de pecados e de contravenção? Não importa também o dinheiro que é roubado do banco (outra instituição). O dinheiro é apenas simbólico para o personagem principal. Acaba, como se pode ver no livro, não tendo significado algum para ele, embora tenha para os demais. O que importa é o ato do roubo, a contravenção, o rompimento com as regras, com os padrões, a contracorrente a uma realidade para lá de fracassada. Quanto ao relacionamento com Tavia, a narrativa não permite termos certeza de um amor correspondido plenamente por ela. Da parte dele, parece ter um elemento platônico, fantasiado. Como o narrador do romance é ele, vemos esse amor apenas pelo seu ponto de vista. Mas é um relacionamento que se aproxima da forma como ocorre nas narrativas de Hemingway, em que se espera que algo aconteça entre ambos e, ao longo da história, não se percebe isso com consistência, apenas sugerido.
Fale um pouco do seu estilo literário. Ao mesmo tempo em que é inovador, tem um pouco de Saramago, isto é, períodos bastante logos, exigindo fôlego dos leitores, e terminando sem ponto final.
O estilo literário adotado no livro foi decorrente de uma experimentação. Ao mesmo tempo, guarda relação com o conceito que procurei dar ao livro. Quis poucas palavras iniciadas com letras maiúsculas, poucas frases novas, quis mostrar palavras sempre correndo, no meio da frase, no entre, em movimento contínuo, como o ideal do mundo em que vivemos e de acordo com a ação e psicologia dos próprios personagens. Procurei traçar minha escrita ou estilo como forma de ludibriar ou despistar melhor o leitor, ao mesmo tempo em que penso intrigá-lo. Os períodos longos também propiciam as reflexões mais distendidas como ocorre quando pensamos, facilitando o uso de digressões, transposições, avanços e flash backs bruscos ou não. É quase como um fluxo de consciência, um deitar no divã, um falar desconexo e com lógica ao mesmo tempo. A comparação com Saramago pode ser inevitável, mas creio que busquei uma forma de escrita no livro que ultrapassa a simples analogia com o escritor português. Precisei, apesar de períodos longos e às vezes caóticos, saber utilizar a vírgula de forma precisa a ponto de tentar dar clareza, sentido à leitura, embora seja o leitor que irá juntar as peças e montar a narrativa. Essa montagem do texto e do sentido que cabe ao leitor, como num jogo de quebra-cabeças, foi o que mais me satisfez no resultado final do livro. Preservei os diálogos tradicionais iniciando com travessão, por exemplo, diferente do que faz Saramago. Há uma determinada passagem do livro em que três personagens, em diálogos com interlocutores distintos, mas na mesma casa, falam ao mesmo tempo. Como escrever três cenas ao mesmo tempo, três diálogos distintos ao mesmo tempo, num exato momento, se a escrita é sucessiva, se só permite a sequência? O resultado é uma torre de babel, uma mistura de palavras e pensamentos: ninguém espera por ninguém, ninguém ouve ninguém. Esses recursos não deixam de ser uma forma de subverter a linguagem. Mas acho que é mais do que isso o que o livro propicia. Acho que ele pode subverter também o pensamento, as convenções.
Como surgiu a ideia do romance? Ele pode ser classificado de policial?
Quando escrevi o livro, não me preocupei muito com o gênero. Sabia apenas que seria uma narrativa mais longa do que um conto, gênero ao qual eu estava acostumado. Mas não me preocupei se seria um romance psicológico, policial ou qualquer outra classificação. Tampouco sabia se era um romance ou uma novela, como ainda não sei. Mário de Andrade, quando escreveu “Macunaíma”, não soube como classificá-lo. Essa é uma tarefa que acaba ficando para a editora. Escrevi “entreilha”, a princípio, para reconfortar-me do momento que eu estava vivendo, o do luto por ter deixado minha cidade natal e estar em outro lugar, ainda me encontrando comigo mesmo. Não pensava num livro, romance ou o que quer que seja. Na época em que escrevi, lembrei-me da série de fotografias “Êxodos”, do Sebastião Salgado. Creio que, nos dias de hoje, vivemos isso: uma série de êxodos que não estão motivados apenas pelo deslocamento de pessoas de uma cidade para outra para fugir de guerras ou conflitos, como aparece nas fotografias de Sebastião Salgado. Há o êxodo institucionalizado, o da necessidade do trabalho, o do capitalismo, o do sonho. Um êxodo que nem sempre é recompensado. Por isso, o que importa mesmo é a paisagem interior, aquela que, a despeito de se transformar, você sempre leva junto consigo, independente de onde esteja. Ao mesmo tempo, eu não queria escrever algo sobre a cidade onde eu morava antigamente. Não queria uma reminiscência nostálgica. Queria falar a partir de onde eu morava, da cidade onde estava. Aos poucos, durante a escrita do livro, a narrativa foi adquirindo contornos intimistas e mais existenciais, ganhando corpo, criando suas próprias analogias, símbolos e universo alegórico. Percebi então que o livro não poderia ter espaços tão definidos, nominados. Nem os espaços, nem os personagens principais. Deveriam ser todos anônimos. No livro, o personagem principal perde a sua identidade original na medida em que também ganha parcialmente uma nova, criando uma identidade híbrida que, dependendo do ponto de vista, pode também ser uma falta de identidade. Como em algumas obras expressionistas, os rostos estão apagados. Tavia é um corpo que se derrete, dissolve-se voluptuosamente. Os personagens “eu” e “vc”, tal qual fantasmas, não possuem qualquer descrição física no livro. Dorna e Adoniseu também não. Moreno nem sequer aparece para os demais, que o conhecem apenas pela internet, virtualmente. O mundo virtual, por falar nisso, também motivou minha escrita. Estar num novo lugar, longe da família e dos amigos, querendo estar em outro lugar, faz com que criemos um mundo virtual, cheio de expectativas irreais e ilusórias, próximo do sonho. A internet possibilita que mantenhamos contato a distância, virtualmente. Nossos sentimentos passam a viver, portanto, da virtualidade. Somos então capazes de criar um mundo de impressões, uma realidade irreal. Arrisco inclusive a dizer que me aproximei, em alguns momentos do livro, do “realismo mágico”. Em outros, da arte contemporânea, montável e desmontável. No entanto, se fosse para classificar o livro dentro de alguma categoria, eu o classificaria como “realismo virtual”.
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Moacir Loth / Jornalista da Agecom / UFSC
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