‘Nossos Monumentos’: Um ‘abrazo’ para unir todo o continente

16/09/2016 16:00
Foto: Henrique almeida/Agecom/UFSC

Foto: Henrique almeida/Agecom/UFSC

Há quem diga que são girafas, ou lhamas, ou até mesmo dinossauros colocados frente a frente, ao lado do Centro de Comunicação e Expressão (CCE) da UFSC. As duas esculturas, que medem 4 metros de altura por 1,5 metro de largura cada, foram construídas coletivamente durante 29 dias em 1994, no mesmo local onde hoje estão erguidas. Para isso, contaram com a participação de 36 chilenos e outros tantos que por ali andavam.

Uma obra de criação coletiva, que nasceu após uma confusão com um evento artístico que quase não aconteceu. Desse encontro nasceu “Un Abrazo Andinoamericano as Pessoas Unem”, assim mesmo, em espanhol e em português, com a intenção de ser um marco da união dos povos banhados pelos oceanos Pacífico e Atlântico.

“Essa obra está inserida dentro da nossa política de criar a Praça da Cidadania, como um espaço para a manifestação artística e de valores. A escultura tem uma afirmação de caráter universal da universidade, a ideia de uma aproximação, em torno dos ideais da liberdade. Foi um projeto de afirmação da cidadania”, relata o ex-reitor Antônio Diomário de Queiroz, que estava à frente da gestão da UFSC à época.

Lautaro Labbé, artista chileno, foi o idealizador da escultura. Junto com ele vieram 35 estudantes da Universidad de Concepción, entre eles, Claudia Soto, que coordenou o grupo de estudantes e Cristián Soto Carvajal, que não era aluno da universidade, mas vinha trabalhando com o escultor. “Ele [Lautaro] chegou como artista independente para falar com os estudantes sobre arte, não como um professor. Por isso teve até mais mérito e mais importância para nós, pois era uma experiência totalmente fora da Academia”, explica Claudia.

Labbé faleceu em 2014, aos 84 anos, após uma vida dedicada à cultura como instrumento de mudança social.

Lautaro Labbé durante a inauguração da escultura, em agosto de 1994. (Foto: Nilson José da Silva/Acervo Agecom/UFSC)

Lautaro Labbé durante a inauguração da escultura, em agosto de 1994. (Foto: Nilson José da Silva/Acervo Agecom/UFSC)

Foto: Mayra Cajueiro Warren/Agecom/UFSC

Foto: Mayra Cajueiro Warren/Agecom/UFSC

O idealizador

Quando Salvador Allende foi eleito presidente, Lautaro Labbé foi diretor do Museu de Arte Contemporânea do Chile e muito envolvido nas políticas socialistas do líder. Após o golpe militar, Lautaro foi exonerado do cargo no museu, mas permaneceu no ativismo político-cultural. Nos anos 90 produziu sua primeira escultura coletiva, na Universidad de Concepción, em homenagem aos estudantes desaparecidos políticos da ditadura chilena, obra que possibilitou o encontro com os alunos que acabaram seguindo o artista em outras esculturas. A obra na UFSC foi a sua terceira escultura coletiva, de um total de 16 que Lautaro construiu durante a vida.

“Ele era artista e autodidata, e eu acredito que os artistas têm uma lucidez particular. Tudo o que ele fazia tinha uma intenção ideológica”, conta Cristián. “Lautaro desenvolveu uma técnica que era uma espécie de performance, o próprio ato de produzir a escultura era marcante. Ele acreditava que todos sabemos algo, que é a base do trabalho do Paulo Freire também. Lautaro dizia: ‘todos somos artistas, por mais que a sociedade nos convença que não, todos somos artistas’”, ressalta Cristián.

O termo “andinoamericano” também era um conceito desenvolvido por Lautaro. “Tem a ver com o discurso de identidade. Somos povos da América, mas primeiro nos nomearam índios, depois americanos, depois latinoamericanos. Sempre uma interpretação de identidade eurocêntrica. Mas temos outras coisas que são únicas, são nossas, que compartilhamos, como a Cordilheira dos Andes, uma coluna vertebral, e em torno da qual os povos da América se comunicam. Ele dizia que ‘somos andinoamericanos’. A escultura, então, tinha a ver com juntar esses dois extremos, os oceanos Atlântico e Pacífico, por isso são duas formas que se enfrentam, o masculino e feminino”, relata Cristián.

“Quando nós [o grupo de estudantes] conhecemos Lautaro, ele havia participado em vários simpósios internacionais, e em um deles aprendeu a construir esculturas diretamente na terra. Daí ele tirou a ideia, a técnica e a adaptou à sua própria linguagem artística. Lautaro dizia que a escultura coletiva era seu caminho, sua motivação, seu motor. Assim ele viajou muito, conseguiu levantar obras em várias cidades do Chile. Cristián [Carvajal] o acompanhou em várias, especialmente nas últimas. Eu fiquei com as esculturas que ele realizou na região do Bío Bío (as primeiras), de onde eu era. Lautaro foi um grande mestre de vida”, recorda-se Claudia. “O processo da obra começa com um desenho na terra, depois se fazia a forma da escultura na própria terra, como um molde. Logo se colocavam os mosaicos e argila de diferentes cores, depois as ferragens, o cimento e finalmente mais mosaicos. Se deixava secar por vários dias e por fim se levantava a obra, colocando a escultura de pé”, detalha Claudia.

Do grupo de estudantes que vieram a Florianópolis, vários continuam atuantes como artistas ou são professores de arte. Alguns deles: Alconda González Gatica, Alberto Bustos, Alejandro Mauricio Cáceres Sandoval, Angélica Vera Fricke, Boris Castro, Carmen Gloria ValleCristián Rojas Román, Felipe CaglieriJacob Cortez, Juan Carlos Gonzales, Kaco Gonzalez, Nancy Peña, Patricia Azócar, Pilar Navarro Figueroa, Verónica Sanhueza Carrasco, Yéssica Gaete.

O processo de construção de uma escultura coletiva feita por Lautaro Labbé e seus alunos. (Fotos: Arquivo pessoal/Claudia Soto)

O processo de construção das esculturas coletivas por Lautaro Labbé e seus alunos. Nesta série, fotos de obras feitas no Chile e da obra erguida na UFSC. (Fotos: Arquivo pessoal/Claudia Soto)

A obra

Cristián conta que tinha 18 anos quando veio a Florianópolis. Era estudante de outra universidade, mas começou a trabalhar com Lautaro depois da primeira escultura coletiva que o viu fazer. “Era o verão de 1993 quando Lautaro nos convidou para ir a Florianópolis em 1994 para fazer uma escultura coletiva e participar do 1º Festival de Cultura e Artes Sem Fronteiras. Fizemos mil coisas para juntar dinheiro e viajar. Partimos com uma ideia, só um esboço da escultura. Além disso cada um levou uma obra que expôs no CIC [Centro Integrado de Cultura]”, conta Cristián.

Quando o grupo chegou a Florianópolis, não encontrou o Festival. “Chegamos e não havia um Festival, não tínhamos onde ficar. Eram muitos grupos, do Uruguai, Argentina, Chile, mas não havia nada organizado, foi uma aventura. Acabamos conseguindo apoio da UFSC, e o Festival aconteceu, de forma improvisada, na Universidade,” conta Cristián.

Claudia lembra-se dessa experiência como uma das mais marcantes de sua carreira. “Nós custeamos a viagem, a UFSC nos deu alojamento e comida, e nos atenderam maravilhosamente. O reitor ficou amigo do Lautaro, tudo fluiu bem. O único problema foi que havíamos planejado 15 dias de execução da obra, e passados esses 15 dias estávamos esgotados, havia chovido, alguns já haviam voltado ao Chile, eu como coordenadora já tinha tido atritos com vários alunos, o esgotamento era extremo”, relata a artista. Claudia saiu de Florianópolis no final da obra, e voltou para ir embora com o grupo de volta ao Chile. “Voltamos para casa juntos e muito felizes pelas realizações, apesar das dificuldades humanas, o que é natural em um grupo tão numeroso. Foi um tremendo aprendizado de vida”, lembra Claudia.

Foram 29 dias de trabalho. A inauguração foi no dia 3 de agosto de 1994, com direito a música de Chico Buarque e Pablo Milanez, e um passeio de mãos dadas entre as esculturas. Na ocasião, o Jornal Universitário da UFSC registrou a fala de Lautaro Labbé. “Que a imagem deste desejo [de união] possa levar as pessoas a se moverem na construção efetiva da integração cultural e social.”

Cristián conta que durante a execução da obra, a escultura ia sendo adaptada. “Aconteceu uma coisa curiosa que acho que ninguém sabe. O desenho original era das duas figuras unidas. E um dia passou o reitor, que sempre nos visitava, e ele falou: ‘que interessante que vocês deixaram esse caminho entre as duas esculturas, vai ser um local de passagem’. E desde então resolvemos deixar o caminho no meio. Nos demos conta que uma pessoa entre as esculturas pode unir os dois símbolos, por isso no nome tem ‘as pessoas unem’”, relata.

O ex-reitor Diomário lembra-se bem da convivência com Lautaro Labbé, com quem continuou se correspondendo ao longo dos anos. Labbé enviou ao reitor, em 2006, seu livro de memórias, que também conta sobre o mês de julho de 1994 na UFSC. “O livro chegou com a seguinte dedicatória: ‘com as lembranças da grande solidariedade com a qual recebeu a nós, chilenos, e possibilitou o abraço andinoamericano, te dedico estas memórias’. O Lautaro tinha essa utopia de socializar a cultura, através da criação coletiva, acreditando que todos nós temos a criatividade para sermos artistas”, lembra Diomário.

Clipagem do Jornal Universitário da UFSC sobre a inauguração da escultura. Clique na imagem para ampliar.

Clipagem do Jornal Universitário da UFSC sobre a inauguração da escultura. Clique na imagem para ampliar.

Diomário também se recorda da forma como a obra foi apropriada pela cultura da comunidade universitária. “Aqui sempre tinha a turma do contra, e no período das eleições, me deram o apelido ‘Diomariosaurus’, uma crítica do pessoal que não entendia o significado da obra, que falava que eu tinha colocado dois dinossauros no campus. Outro fato curioso é que uma manifestação que pegou entre os alunos era a superstição de que quem passasse no meio das duas figuras sairia fortificado, teria uma espécie de benção, da energia positiva que emanava desse abraço andinoamericano. Tinha casal de namorados passando ali para dar sorte. Foi um momento bom da minha gestão e até hoje a obra está ali, com um símbolo de um apelo a um abraço mais forte entre os povos da América Latina”, conclui.

Depois dos trabalhos com Lautaro, Claudia seguiu seus estudos, chegando a concluir seu doutorado em Barcelona, na Espanha. “Hoje tenho uma visão que se inclina por um aperfeiçoar a técnica e os resultados formais da obra, mas continuo pensando que a escultura deve crescer no espaço público para o povo e com o povo, formando parte de seu cotidiano, de seus significados, de sua história. E é nisso que permanece a obra de Lautaro, porque era feita junto com o povo que vivia esses espaços”, acrescenta a escultora.

 

Mayra Cajueiro Warren
Jornalista da Agecom/UFSC
agecom@contato.ufsc.br

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Foto: Henrique Almeida/Agecom/UFSC

Foto: Henrique Almeida/Agecom/UFSC

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