Tradução inédita da EdUFSC socializa Direito Romano direto das fontes clássicas

27/08/2013 14:48

José Isaac Pilati. Foto: Wagner Behr/Agecom/UFSC

O Império Romano, ao lado da Magna Grécia, é até hoje a referência da produção e práxis jurídica no mundo. Com quase dois mil anos, Digesto de Justiniano – Livro Segundo: Jurisdição é traduzido, pela primeira vez no Brasil, diretamente do Latim para o Português. O desafio de ir direto às fontes clássicas e originais, sem intermediários, coube ao professor e “romanista” catarinense José Isaac Pilati.

A obra bilíngue Latim-Português é um dos principais lançamentos do ano da Editora da Universidade Federal da UFSC (EdUFSC). A edição contou com a parceria da Fundação José Arthur Boiteux (Funjab), do Centro de Ciências Jurídicas (CCJ) da Universidade. Digesto, resultado de determinação do imperador Justiniano, é composto por 50 livros. Antes da tradução da UFSC, apenas o Livro I havia sido traduzido no Brasil. A façanha foi do professor de Direito Romano da Universidade de São Paulo (USP), Hélcio Maciel França Madeira, que fez a revisão técnica desta tradução e assina o prefácio. O Direito Romano é uma ciência universal. “É um sistema jurídico aberto, descolado de qualquer noção de força coercitiva, de Estado, de soberania… é um sistema concebido em harmonia com a diversidade dos costumes que o gênero humano produz”, sublinha o prefácio. “Tem o leitor, sem atravessadores, sem danos, sem transações ideológicas, o texto original ao alcance da mão.”

José Isaac Pilati, que é professor de Direito Romano, Direito Civil e Tutelas Coletivas na UFSC, fez uma tradução clara e didática, preocupando-se ao mesmo tempo com a harmonia entre as linguagens científica, culta e literária. Assim tornou Digesto palatável também ao público leigo.

O segundo livro trata especificamente das jurisdições, da disciplina das citações em juízo, das exibições de documentos, dos pactos, acordos e transações processuais. Os conteúdos são oportunos e úteis na hora em que vivenciamos em nosso país uma profunda crise de confiança nas instituições e na política. “Num momento de esgotamento de todo um paradigma, como se observa pelo clamor das ruas hoje, é importante retornar às fontes para retomar o rumo”, avalia Pilati.

É prudente, contudo, não esquecer que falta traduzir 48 livros da obra produzida entre 528 e 534 da nossa Era. “A falta de interesse em traduzir os 50 livros do Digesto entre nós, nestes quase dois mil anos de existência, parece-me que é reflexo do próprio paradigma das codificações e da lei”, presume Pilati. Lamentando a lacuna e a omissão no Brasil, o tradutor observa que Digesto está à disposição dos juristas e estudantes de língua italiana, espanhola, inglesa, francesa e russa. Afinal, “trata-se de um texto importantíssimo para o estudo e a compreensão da jurisdição e do processo civil em nosso tempo”, sustenta.

Os romanos, argumenta Pilati, nunca perderam o vezo de República. “É no caldo republicano e democrático de Roma que nascem, evoluem e se aperfeiçoam a máquina jurisdicional e os institutos jurídicos”. Daí, segundo o professor, “a recuperação das fontes é passo fundamental dessa tarefa de reconstrução do modelo romano em todo seu curso”.

O Brasil não está conseguindo exercer a dimensão de democracia participativa da Constituição Cidadã de 1988, de Ulysses Guimarães. Isso acontece, na opinião do professor Pilati, “justamente da falta de prática e conhecimento teórico para tanto, depois de séculos de democracia indireta e sistema representativo puro”. O pesquisador esclarece: “Ora, a antiguidade grega e romana trabalhava em democracia direta; o Direito antigo era exercido nessa perspectiva: eleição direta de magistrados, e juízes nomeados entre a população para julgar as causas”. Nesse modelo, recorda, “construiu-se a jurisprudência mais perfeita da História, que nos ensina e inspira até hoje”.

O tradutor de Digesto procura fazer uma relação direta da realidade com as fontes clássicas. “Admite-se que os protestos que incendeiam o mundo e o Brasil hoje não encontram resposta nas instituições que praticamos. Sim, nossos políticos e juristas poderiam ter recebido, mas não receberam formação jurídica adequada, dado que rompemos com os modelos participativos que a humanidade já vivenciou”. Pilati, que também é autor do clássico Propriedade e função social na pós – modernidade (Lumen Juris, RJ), pensa que “o nosso Direito sabe lidar com questões entre indivíduos, mas não sabe lidar com os grandes conflitos de massa, justamente aqueles através dos quais se absorvem as grandes mudanças”.

O livro publicado pela Lumen Juris é um sucesso de leitura e público. Fruto de uma pesquisa de mais de uma década, cristaliza os fundamentos de uma teoria pós-moderna do Direito, ancorada, coincidentemente, nas fontes romanas.

A comissão de juristas incumbida pelo imperador Justiniano I, em 528 d.C, demorou três anos para concluir a compilação da produção jurídica de todo o período clássico (130 a.C. a 230 d.C) que deveria vigorar como direito oficial do Império do Oriente e do Ocidente. Os 50 livros, organizados por temas, foram concebidos por 39 jurisconsultos de maior expressão em Roma e adotados através de decreto de Justiniano.

José Isaac Pilati, que é, ao lado do italiano Pierangelo Catalano, um dos responsáveis pelo renascimento do Direito Romano na América Latina, terminou, assim como a comissão de notáveis do imperador romano, a tradução em três anos de exaustiva dedicação.

Obra que ajuda a internacionalizar a UFSC e consolidar a editora como referencial no país, Digesto de Justiniano prega uma conduta respaldada na jurisprudência, muito próximo do cotidiano das pessoas, dois mil anos depois.

“Aquele que exerce a jurisdição não deve administrar justiça a si mesmo, nem à esposa e a seus filhos, nem libertos ou demais, que tem com ele”, ministra Justiniano, que, de quebra, indaga: “quem negará seja aplicado a si mesmo o direito que pronunciou, ou fez que se aplicasse, para outros”?

Também se haverá de observar o mesmo contra o procurador, se foi nomeado em causa própria, avisa o Livro Segundo de Digesto. “Se o teu procurador, ou tutor, ou curador não obedeceu ao juridicente, ele próprio é punido, não o senhor ou o pupilo”, esclareceu. “Dizem também alguns que se ao marido se pedir também dotal de raiz, a mulher será fiadora em causa própria”. Os jurisconsultos entendem, por exemplo, que devem ser auxiliados “aqueles que induzidos ao erro devido à idade, ou à ignorância, ou ao seu sexo, ou a outra justa causa, negligenciarem a produção da defesa perante o juízo”. Advertem que “também os sucessores dos banqueiros são obrigados a exibir as contas”. E mais: “as mulheres reputam-se excluídas da profissão de banqueiro, porque este ofício é para homens”.

Digesto de Justiniano é um dos destaques da 17ª Feira do Livro da EdUFSC. Foto: Wagner Behr/Agecom/UFSC

Digesto alerta que “o pacto nu não produz obrigação, mas produz exceção”, enfatizando que “os pactos incluem-se entre os juízes de boa-fé”. E mais: “certas ações extinguem-se de direito por meio de um pacto, como as injúrias e também a de furto”. Mas, segundo Digesto, “ninguém pode estabelecer, ao pactuar, que não possa dedicar um lugar para si, ou que não possa sepultar um morto em lugar próprio, ou que não possa alienar um prédio contra vontade do vizinho”.

Digesto é claro e direto: “porque não se pode enriquecer com prejuízo de outrem” nem “o herdeiro deve cumprir a convenção feita pelo defunto”.

Não se pode não querer ser dono de si mesmo. “ A má fé se comete com astúcia e falácia” “ e faz-se um pacto que dolo mau sempre que, com o objetivo de enganar outrem, faz-se uma coisa e simula-se que faz outra”.

“O Direito público não pode ser alterado por pactos de particulares”, já ensinava o Direito Romano há dois mil anos.

José Isaac Pilati estava em dúvida. Publicar pela EdUFSC ou ganhar dinheiro por uma editora comercial? Fez a opção ética e correta. A universidade pública paga e agradece.

Pilati é o convidado especial do próximo Círculo de Leitura de Florianópolis, nesta quinta-feira, 29 de agosto, às 18h30min, na Sala Harry Laus, na Biblioteca Central da UFSC. Digesto de Justiniano, pela sua atualidade, deverá mobilizar parte dos debates. O livro é também uma das estrelas da 17ª Feira do Livro da EdUFSC, que acontece até 12 de setembro, das 18h30min às 19 horas, no Centro de Convivência da UFSC. Pode ser adquirido com 50% de desconto. De R$ 32, sai por apenas R$16.

Mais informações: (48) 3721-9408 / www.editora.ufsc.br.
Diretor executivo – Fábio Lopes: flopes@cce.ufsc.br / (48) 9933-8887.
Tradutor: jipilati@matrix.com.br / (48) 9980-6305.

Moacir Loth / Jornalista da Agecom / UFSC

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