UFSC lidera pesquisa nacional pioneira sobre saúde bucal da população trans

Equipe da pesquisa Transbucal Brasil em Manaus (AM): coleta de dados visa identificar condições de saúde bucal das pessoas trans e subsidiar políticas públicas. Foto: Divulgação/Transbucal Brasil/UFSC
Um estudo pioneiro conduzido pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) revelou um panorama preocupante sobre a saúde bucal da população transgênero atendida pelo Sistema Único de Saúde (SUS) em Florianópolis. A discriminação aparece como uma das principais barreiras: entre os participantes da pesquisa, 70% disseram já terem sido alvo de preconceito ao buscar atendimento odontológico, com 54% abandonando o tratamento em função dessa dificuldade. Altos índices de cáries não tratadas, perda dentária e problemas periodontais também foram observados no levantamento, evidenciando que a falta de políticas públicas específicas impacta diretamente na qualidade de vida desse público.
A inexistência de dados populacionais sobre as pessoas trans, a invisibilidade dos problemas de saúde bucal dessa população e a urgência na definição de serviços específicos de saúde que contemplem essa problemática impulsionaram uma iniciativa de ampliação da pesquisa feita em Florianópolis. A pesquisa Transbucal Brasil, de abrangência nacional, é liderada pelos pesquisadores da UFSC em parceria com outras universidades, movimentos sociais e comunidade trans nas cinco regiões brasileiras.
De acordo com a professora Andreia Morales Cascaes, do Departamento de Saúde Pública da UFSC, há poucos estudos que tratem da saúde bucal das pessoas transgênero e que considerem as especificidades desse público. “Não temos dados oficiais em pesquisas como o Censo, ou em pesquisas nacionais que revelem dados epidemiológicos. Estimamos, por exemplo, que a população trans no Brasil seja composta por 2% de toda a população brasileira, o que dá aproximadamente 4 milhões de pessoas. Mas esta é uma estimativa baseada em estudos mundiais, pois não há dados oficiais no país”, ressalta ela, que coordenou a pesquisa Transbucal em Florianópolis e é líder da pesquisa nacional.
Nessa perspectiva, a população trans enfrenta uma situação de invisibilidade tanto no que diz respeito à saúde geral quanto à saúde bucal. “As pessoas trans enfrentam uma série de barreiras para acessar serviços de saúde de modo geral, e a situação é mais dramática do ponto de vista da saúde bucal”, constata a professora. Nem mesmo a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais contempla a saúde bucal desse grupo. Andreia ressalta que os serviços de saúde transespecíficos do SUS, como o Ambulatório Trans de Florianópolis, não preveem a inclusão de equipes de saúde bucal. “Eu costumo dizer que, para as políticas públicas, a população trans não tem boca”, ironiza. “Nós advogamos por esse princípio de inclusão social, da saúde bucal como um direito social. Para chegar nisso, é preciso ter dados que nos permitam entender, de forma precisa, a necessidade de olhar para a saúde bucal desse público específico”, diz a professora Andreia.
Etapa local: Transbucal Floripa

Equipe do Transbucal Brasil em reunião em Florianópolis, preparatória à coleta de dados nacional. Foto: Divulgação/Transbucal Brasil/UFSC
O Transbucal Floripa, primeiro estudo epidemiológico transversal de saúde bucal, envolveu 187 pessoas transgênero de 18 anos ou mais que buscavam atendimento no Ambulatório Trans de Florianópolis. A ideia teve origem na pesquisa do doutorando Zeno Carlos Tesser Júnior, orientando da professora Andreia no Programa de Pós-Graduação em Odontologia da UFSC.
Os participantes da pesquisa responderam a um questionário estruturado, com 140 perguntas sobre variáveis socioeconômicas, demográficas, utilização de serviços de saúde em geral e de saúde bucal, uso de medicamentos, informações sobre o processo de afirmação de gênero e hormonização, experiências de discriminação e violência, sintomas de depressão e ansiedade, entre outros aspectos.
A coleta de dados ocorreu entre dezembro de 2023 e março de 2024, utilizando, além dos questionários, exames epidemiológicos de saúde bucal. Os resultados apontam para disparidades significativas no acesso e cuidado em saúde bucal para pessoas trans. Entre os principais achados, destacam-se:
Impacto na qualidade de vida: A prevalência de impactos negativos da saúde bucal no desempenho de atividades diárias (OIDP, na sigla em inglês) foi alta, atingindo 65% dos participantes, com os maiores efeitos nas dimensões psicológica (58%), física (40%) e social (13%). Pessoas transgênero mais jovens (com menos de 20 anos), indígenas, com dor de dente recente ou que informaram a necessidade de tratamento foram as mais propensas a relatar esses impactos. O OIDP é um instrumento usado em Odontologia para medir o impacto da saúde bucal na qualidade de vida de uma pessoa, avaliando como problemas dentários afetam suas atividades diárias.
Discriminação como barreira: Experiências discriminatórias em serviços de saúde fazem com que pessoas trans evitem buscar atendimento odontológico. Segundo o levantamento do Transbucal Floripa, 54% dos participantes já desistiram de um tratamento odontológico e 70% relataram ter sofrido discriminação em serviços de saúde. A discriminação esteve associada a essa desistência, independentemente de outros fatores sociodemográficos. Isso sugere que a discriminação pode atuar como um fator que leva as pessoas trans a evitarem a busca por atendimento de saúde bucal, refletindo a violência institucional e a exclusão sofrida por essa população.
Hábitos de higiene e necessidades percebidas: Embora 80% dos participantes afirmem escovar os dentes duas ou mais vezes ao dia, 35% admitem que não usam fio dental, hábito considerado essencial para a higiene bucal adequada. Além disso, 35% tiveram dor de dente nos últimos seis meses e 42% relataram dor na face. A percepção de necessidade de tratamento odontológico foi indicada por 72% dos participantes, sendo 52% por razões preventivas e 48% por problemas bucais percebidos por eles mesmos.
Condições clínicas alarmantes: A média do índice CPO-D (dentes cariados, perdidos e restaurados) foi de 4 dentes por pessoa. Entre os participantes, 76% tinham pelo menos um dente com experiência de cárie e 46% apresentavam cárie não tratada. A perda dentária foi observada em 20% dos pacientes, com mulheres trans apresentando a média mais alta de dentes afetados (5,4), e pessoas não binárias, a mais baixa (1,9). As condições periodontais (da gengiva) também são preocupantes, com 62% dos participantes apresentando cálculo dentário (coloquialmente conhecido como tártaro) e 26% com ocorrência de sangramento na gengiva.
Dificuldades de acesso e utilização: No Ambulatório Trans de Florianópolis, que não possui equipes de saúde bucal, apenas 52% dos participantes afirmaram ter ido ao dentista no último ano. Do grupo pesquisado, 54% disseram já ter desistido de procurar um dentista devido à falta de dinheiro (31%), longa espera (23%), falta de vaga (10%) ou horário incompatível (10%). Para os pesquisadores, esses dados reforçam a necessidade urgente de ampliação da oferta e da inclusão de equipes de saúde bucal em ambientes acolhedores e inclusivos.
Necessidade de tratamentos odontológicos
Os dados obtidos na pesquisa Transbucal Floripa podem ser reveladores de uma demanda reprimida, na avaliação da coordenadora do estudo, professora Andreia Cascaes. Ela analisa, por exemplo, que entre a fatia de 72% de pessoas trans que disseram perceber alguma necessidade de tratamento odontológico, as principais razões seriam dor de dente, tratamento de canal, extração e restauração, ou seja, problemas que precisam de resolução imediata. No entanto, apenas 28% informaram ter realizado sua última consulta odontológica no SUS. Os achados clínicos revelaram altos índices de cáries não tratadas, confirmando as necessidades de tratamento percebidas pelos participantes. Esses aspectos, analisa a professora, são relevantes e devem ser considerados no planejamento de políticas públicas mais inclusivas que promovam a equidade em saúde.
Andreia observa também que os dados que o Transbucal Floripa levantou não podem ser comparados diretamente com a situação da saúde bucal da população brasileira, avaliada na Pesquisa Nacional de Saúde Bucal, de 2023, pois se tratam de processos de amostragem totalmente diferentes. O Transbucal Floripa coletou os dados em um serviço público de saúde, “onde teoricamente essas pessoas já conseguiram superar algumas barreiras de acesso e estão conseguindo fazer a utilização do serviço. Certamente a nossa amostra reflete uma parcela da população que é como a ponta de um iceberg. Na população trans vai haver um público que utiliza serviços privados, que é a grande minoria, e outra parcela da população que não utiliza absolutamente nada. A gente imagina que a saúde dessas pessoas, e a saúde bucal especificamente, seja ainda pior do que a das pessoas que utilizam os serviços do SUS”, analisa a professora.
Outro aspecto apontado por Andreia é a prevalência alta de problemas de saúde bucal na amostra pesquisada, que tem idade média de 26 anos. “A saúde bucal é um importante marcador de desigualdade social e de privação de direitos sociais, como o acesso à saúde. Alguns indicadores encontrados são piores do que os da população brasileira de faixa etária semelhante”, observa. Mesmo sem a correspondência exata com os dados da Pesquisa Nacional de Saúde Bucal, em função das características da amostra e especificidades da coleta de dados, a professora considera relevante essa comparação. “Os achados mostram um quadro preocupante em uma população jovem que enfrenta dificuldades para obter cuidados básicos em saúde”, ressalta.
Segunda etapa: Transbucal Brasil
Com base nesses resultados, a segunda etapa da investigação avança como uma pesquisa ampliada, de abrangência nacional. O projeto Transbucal Brasil é financiado pelo Departamento de Ciência e Tecnologia do Ministério da Saúde, com recursos do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), sediado na UFSC e coordenado em parceria com outras universidades públicas, secretarias estaduais e municipais de saúde e movimentos sociais LGBTI+.
O objetivo é reproduzir e ampliar o estudo inicial, incluindo questões pertinentes a outras regiões do país, com coleta de dados em cinco municípios: Florianópolis (SC), Uberlândia (MG), Campo Grande (MS), João Pessoa (PB) e Manaus (AM).
Transdisciplinaridade
O Transbucal Brasil adota uma abordagem transdisciplinar e inovadora. A investigação nacional abrange os três campos da Saúde Coletiva: a epidemiologia, o planejamento e avaliação de políticas e serviços de saúde, e as ciências humanas e sociais. O projeto é constituído por três subestudos: um estudo epidemiológico, uma pesquisa avaliativa dos serviços de saúde e um estudo sociológico. A equipe, composta por mais de 100 profissionais de diversas áreas como dentistas, médicos, enfermeiros, psicólogos, designers e assistentes sociais, além de pessoas da comunidade trans e de movimentos sociais, trabalha para avaliar o acesso e a oferta de serviços de saúde geral e bucal, as condições clínicas e os aspectos sociológicos relacionados à saúde bucal da população trans no SUS. Os envolvidos na pesquisa de campo passaram por treinamento ministrado pelas professoras da UFSC Helena Moraes Cortes, do Departamento de Enfermagem, e Andreia Morales Cascaes, do Departamento de Saúde Pública, líder do trabalho em âmbito nacional.
A coleta de dados epidemiológicos do Transbucal Brasil teve início em 14 de maio de 2025 nas cidades de Florianópolis, Campo Grande, João Pessoa e Uberlândia. Em Manaus, os dados começaram a ser coletados em 26 de agosto de 2025. Nos primeiros meses já foram registrados dados de mais de mil pessoas trans participantes. A pesquisa avaliativa de serviços de saúde, componente liderado pela professora Daniela Alba Nickel (também do Departamento de Saúde Pública), já concluiu as entrevistas com gestores públicos de saúde e as oficinas de consenso com especialistas, para elaboração de uma matriz avaliativa de indicadores, que será aplicada para avaliar os serviços de saúde dos Ambulatórios Trans dos cinco centros colaboradores.
As etapas do inquérito epidemiológico e pesquisa avaliativa dos serviços de saúde deverão ser concluídas ainda em 2025, e em 2026 será feito um aprofundamento sociológico, com a realização de algumas entrevistas com pessoas trans participantes da etapa epidemiológica. A coleta de dados do componente sociológico da pesquisa será liderada pelo professor Rodrigo Otávio Moretti-Pires, do Departamento de Saúde Pública. A perspectiva, para além da obtenção e mapeamento de dados sócio-epidemiológicos da saúde bucal das pessoas trans e dos serviços de saúde ofertados, é subsidiar políticas públicas que levem à ampliação da rede pública de ambulatórios voltados às pessoas trans – e que incluam a atenção à saúde bucal entre seus serviços.

Pesquisadores da UFSC apresentaram resultados da pesquisa Transbucal Floripa na 42ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira de Pesquisa em Odontologia (SBPqO), em São Paulo. Foto: Divulgação/Transbucal Brasil/UFSC
Partes dos resultados obtidos na pesquisa do Transbucal Floripa foram apresentados em junho e em setembro nos eventos da 103ª International Association for Dental, Oral, and Craniofacial Research (IADR), em Barcelona (Espanha), e na 42ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira de Pesquisa em Odontologia (SBPqO), em São Paulo, pela professora Andreia Morales Cascaes e seus orientandos, alunos do Programa de Pós-Graduação em Odontologia da UFSC: Zeno Carlos Tesser Junior, Carolina Kroth e Igor Santos Araújo. Integrou o grupo o estudante Alisson Luiz Schmitt, orientando do professor Rodrigo Otávio Moretti-Pires no Programa Institucional de Iniciação Científica e Tecnológica (PIBIC/UFSC). Além de comporem a tese de doutorado de Zeno Carlos Tesser Junior, os achados da pesquisa estão sendo utilizados para produção de trabalhos de conclusão de curso, iniciação científica e mestrado.
Transbucal Floripa: principais dados
Participantes: 187 pessoas atendidas no Ambulatório Trans Floripa
Média de idade: 26 anos (18 a 50 anos)
54% nascidos fora de Santa Catarina
Renda familiar média de R$ 4.504,35
15% beneficiários de programa de transferência de renda do governo federal (no último ano)
Identidade de gênero
44,9% homens trans
25,7% mulheres trans
17,1% pessoas não binárias
9,6% travestis
2,7% outro (a)
Raça/etnia
66,3% branca
17,1% parda
13,4% preta
1,6% indígena
1,6% amarela
Escolaridade
68,5% acesso ao ensino superior (incompleto, completo, pós-graduação)
27,8% ensino médio completo ou incompleto
3,7% ensino fundamental completo ou incompleto
Orientação sexual
31,8% bissexuais
25,8% heterossexuais
24,7% pansexuais
9,7% homossexuais
4,8% outra
3,2% assexuais
Hábitos de higiene oral
3,9% não escovam os dentes diariamente
16,2% escovam uma vez ao dia
79,9% escovam duas ou mais vezes ao dia
35,2% não usam fio dental
40,2% usam fio dental de uma a três vezes por semana
10,1% usam fio dental de quatro a seis vezes por semana
14,5% usam fio dental diariamente
Ocorrência de cáries
76% tinham pelo menos um dente com experiência de cárie
46% tinham cárie que não havia sido tratada
Perda dentária
20% dos participantes já haviam perdido algum dente
Mulheres trans apresentaram a média mais alta do índice de cáries, com 5,38 dentes afetados
Pessoas não binárias tiveram a média mais baixa de cáries, com 1,95 dentes afetados
Diferença notável na perda de dentes: nenhuma pessoa não binária havia perdido dentes, enquanto 24,3% das mulheres trans e 24,6% dos homens trans apresentaram perdas dentárias. Essa diferença foi considerada relevante pelos pesquisadores.
Condições da gengiva (saúde periodontal)
62% dos participantes tinham cálculo dentário (tártaro)
26% apresentaram sangramento na gengiva
1% tinha bolsas periodontais (problemas mais avançados na gengiva que podem levar à perda óssea ao redor dos dentes)
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Ana Paula Lückman | ana.paula.luckman@ufsc.br
Jornalista | Agecom | UFSC