Em decisão, STF indica artigo de professora da UFSC como referência em estudos de gênero
O artigo Direito Brasileiro: Discurso, Método e Violências Institucionalizadas, assinado pela professora Grazielly Alessandra Baggenstoss, do Departamento de Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), foi citado como referência em decisão assinada pelo ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF). O trabalho foi considerado um dentre “a vasta produção que precisa ser conhecida e reconhecida pelo Poder Judiciário” quando o assunto envolve a perspectiva de gênero.
Grazielly conta que, entre 2018 e 2019, estudou e coordenou pesquisas com a temática Direito e Feminismos, que tinham com o objetivo investigar o direito brasileiro e verificar a possibilidade de existência de lacunas normativas no campo dos direitos humanos, especialmente no que se referia às mulheres.
O artigo Discurso, método e violências institucionalizadas foi publicado como capítulo no livro Direito e feminismos: rompendo grades culturais limitantes, publicado em 2019. O texto teve a coautoria de João Manuel de Oliveira, que era professor visitante do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFSC na época.
“O caso analisado pelo STF diz respeito ao Habeas Corpus n. 224484/SP, que trata da situação de uma mulher, que é mãe, que está sendo acusada de cometimento do crime disposto no artigo 33, caput, Lei nº 11.343/06, a Lei de Tóxicos”, explica a professora. Na decisão, Mendes aborda a prisão preventiva da mulher, destacando as más condições do sistema carcerário e questionando a decisão que solicitou a detenção alegando riscos à ordem pública.
O ministro utiliza como fundamento uma outra decisão do STF que alerta que os cuidados com a mulher presa devem se direcionar não só a ela, mas igualmente aos seus filhos. Além disso, destaca que a criança menor de 12 anos tem o direito de se desenvolver na companhia da genitora, em ambiente domiciliar.
O artigo assinado por Grazielly foi citado entre outros, de autorias nacionais e internacionais renomadas, justificando também a ordem de habeas corpus concedida em favor da acusada, para que ela pudesse responder o processo em prisão domiciliar, menos prejudicial à sua condição de mãe. “A citação ao trabalho representa uma importante interlocução da academia com o Poder Judiciário, demonstrando que estamos laborando em consenso para a construção de uma sociedade mais justa e menos violenta”, comenta.
Artigo discute gênero nos discursos do Direito
No artigo citado por Mendes, há uma discussão sobre como a perspectiva de gênero faz parte de dispositivos jurídicos. Desde o Código Civil de 1916 até legislações mais atuais, como a Lei Maria da Penha, o texto propõe debater “a potencialidade violenta do direito na produção de materialidades nefastas às mulheres”.
Um dos exemplos abordados trata de um Código Penal vigente em meados do século passado, no qual o crime de estupro foi tipificado com a indicação da vítima enquanto “mulher honesta”. Segundo o texto, somente em 2001 a Lei n° 10.224, que também tipificou o delito de assédio sexual, eliminou o termo “mulher honesta” e, dentre outros, descriminalizou determinadas condutas.
O texto citado por Mendes ainda lembra que há um conjunto de desigualdades estruturais da cultura e da sociedade entre as mulheres, reconhecendo que o “sujeito político mulheres, contempladas no ordenamento jurídico não alcança as que resistem no racismo estrutural e institucional, nem na discriminação de classe ou de orientação sexual”.
Conforme a pesquisa, o discurso jurídico, a partir método e pretensão científica, permite que se reforce questões relacionadas à heteronormatividade, branquidade e elitismo, possibilitando a manutenção do status quo no modelo da vida neoliberal e silenciando mulheres em suas marcações (e cicatrizes) de raça, classe e orientação sexual. “Por quanto tempo ainda teremos o método e o discurso jurídicos como legitimadores de violências contra os corpos que, pelas autoridades, não se enquadram no modelo ideal de racionalidade, verdade e justiça sugerido pelo pensamento moderno?”, questionam os autores no artigo.