Diploma escolar dos pais tem influência direta no acesso aos cursos da UFSC, diz pesquisa
A hipótese de que a origem social e as questões identitárias – de gênero e raça, por exemplo – influenciam no acesso ao ensino superior vem sendo confirmada de forma recorrente e desnudada pelas ciências sociais, tal como ocorreu no livro Os Herdeiros, de Pierre Bourdieu. Mas como isso se apresenta em números e na vida dos sujeitos afetados? Essa é uma das perguntas respondidas pela pesquisadora Schirlei Russi Von Dentz na tese Desigualdades Escolares e Educação Superior: as Ações Afirmativas na Universidade Federal de Santa Catarina, defendida no Programa de Pós-Graduação em Educação da UFSC.
No estudo, ela investigou 12670 cadastros de ingressantes da universidade e fez 48 entrevistas com professores e estudantes. Entre outros achados, chegou a conclusão de que o capital escolar dos pais tem uma influência direta na aprovação dos filhos no vestibular. A pesquisa utilizou dados referentes aos anos de 2003 e 2007, antes da existência das políticas afirmativas da UFSC, e de 2008 e 2018, período em que o sistema de cotas já existia.
Além de ter os números sobre os acessos de brancos, pardos e pretos oriundos de escola pública ou privada – que confirmam a importância das ações institucionais para o aumento da diversidade – ela foi aos cadastros para entender o que, de alguma forma, já se apresentava nas entrevistas: ainda que a configuração do acesso ao ensino superior tenha mudado, ela tem marcas importantes a serem discutidas.
O conceito de capital escolar foi uma aproximação com o que Bourdieu, seu principal referencial teórico, denomina capital cultural. No estudo, ela investiga a relação da formação escolar dos pais e seu acesso ao sistema de ensino com a aprovação dos filhos no Vestibular da UFSC, em cursos de alta, média e baixa concorrência. “Minha hipótese era de que, a partir das ações afirmativas, haveria um aumento no acesso dos filhos de pais das classes populares. Mas com o acesso aos dados acabei identificando outras questões”, explica.
A pesquisa não trabalha o conceito de classe do ponto de vista econômico, mas de acesso à educação. Assim, trata como classes populares aquelas cujos pais ou não tiveram acesso ao sistema ou encerraram a formação na educação básica. Já classes médias se referem aos que fizeram ou concluíram o ensino médio e classes superiores aos que cursaram ou concluíram o ensino superior e também tiveram acesso à pós-graduação.
O objetivo da tese, orientada pela professora Ione Ribeiro Valle, foi evidenciar o impacto da política de ações afirmativas no espaço universitário da UFSC, mas em uma interpretação comparativa que levou em consideração um tempo passado, mais homogêneo e elitizado da universidade, quando ainda não existiam as cotas, com os dez anos de implementação das políticas de ações afirmativas, mais complexo e heterogêneo.
“A hipótese inicial era de que, a partir da implantação das ações afirmativas, haveria um aumento no acesso dos filhos das classes populares”, explica. Schirlei fez o estudo articulando os dados dos diplomas escolares dos pais com o do acesso ao vestibular nos cursos mais concorridos, alto-médio concorridos, concorrência média-baixa e os menos concorridos.
A partir desse cruzamento, as dificuldades de acesso dos filhos de pais das classes populares começou a se desnudar, especialmente nos cursos mais concorridos e mesmo entre aqueles que acessavam a universidade por meio das cotas. Um dos exemplos mais marcantes, neste caso, é o do curso de Medicina: de todos os ingressantes com cadastros estudados nos quatro anos de recorte, 69,70% têm pais com formação superior e apenas 7,3% são de famílias cujos pais têm o ensino básico.
“Entre esses dados, identifiquei também que entre os cursos de concorrência média-alta, os ingressantes no Centro Tecnológico (CTC) são um dos mais elitizados no que se refere ao capital escolar dos pais. Pouquíssimos estão nas classes populares”, explica. Segundo a pesquisadora, as ações afirmativas fizeram bastante diferença no padrão destes cursos. Um exemplo é o curso de Engenharia Mecânica: em 2003 e 2007, antes da existência das ações afirmativas, não houve ingresso de estudantes com pais das classes populares. Já em 2008, foram três e em 2018, oito.
Ainda assim, a análise da pesquisadora é equivalente a do sociólogo que a acompanha no estudo. “Bourdieu dizia que a escola é uma reprodutora das desigualdades sociais. As ações afirmativas projetam a ideia de que alunos menos capitalizados poderiam entrar em maior número na universidade, mas não é o que ocorre”, comenta. Ainda assim, reitera a pesquisadora, essas políticas são essenciais para corrigir um sistema desigual.
Ensino técnico como preparatório

Pesquisadora defendeu tese no Programa de Pós-Graduação em Educação (Foto: reprodução da Revista Fapesc)
Outro dado identificado na pesquisa de Schirlei foi o de que, para aumentarem as chances de acesso ao ensino superior gratuito via Vestibular, muitos estudantes ingressam em institutos federais de educação. “Nas entrevistas, ouvi muitos relatos de jovens que fizeram o IFSC para garantir um bom desempenho em provas como de Matemática e Inglês”, conta.
Nos dez cursos mais concorridos, por exemplo, dos 879 cadastros de estudantes de escola pública analisados nos quatro anos de recorte, 130 eram de egressos de instituto federal de educação, 364 deles só em 2018, com as ações afirmativas já consolidadas. Apesar disso, quando o corte de raça ocorre, os números também registram uma desigualdade: destes 364, 231 são brancos, 90 pardos e apenas 43 pretos.
A preparação para o vestibular também se destacou particularmente em duas entrevistas feitas por Schirlei: em uma delas, um aluno indígena contou que chegou a fazer metade de um curso de graduação em universidade privada para se sentir preparado para o ingresso no sistema público. E no concorrido curso de Medicina, uma egressa de um curso de graduação da UFSC, com mestrado, só conseguiu o acesso por meio das políticas afirmativas.
“O sistema de ingresso pelo vestibular tem a mesma prova e é extremamente importante a reserva das vagas. Mas, ao mesmo tempo, os dados indicam que por mais que se prepare, o aluno que não tem esse capital escolar herdado dos pais terá muito mais dificuldade para conseguir”, indica Schirlei.
Problema estrutural
Schirlei centrou o seu estudo em dados da UFSC, cujo sistema de cotas opera desde o vestibular de 2008, mas reconhece que o problema também é estrutural. No entendimento dela, as possíveis soluções para uma correção radical dessas distorções seriam, de um lado, a ampliação das vagas ou universalização do acesso, e de outro o fortalecimento do ensino básico, um motor da desigualdade identificada na pesquisa.
“A escola básica deveria ser igual para todos, mas a falta de investimentos em educação está gritante”, comenta. Uma possível fragilidade nesse ponto da rede faz com que estudantes cheguem ao vestibular com um nível de preparo desigual, impactando nos dados de acesso e também na diversidade da instituição.
A pesquisadora também lembra que as entrevistas com professores e estudantes são reveladoras sobre outros aspectos, tais como o baixo número de docentes negros e a dificuldade de socialização entre estudantes de classes populares e de classes altas, considerando que os espaços de lazer, muitas vezes, exigem um poder econômico maior. “Muitas coisas importantes aconteceram por causa das ações afirmativas, mas esses pontos merecem ser debatidos e se mostraram bastante no objeto de estudo”, comenta.
Amanda Miranda/Jornalista da Agecom/UFSC
*Uma versão dessa reportagem foi publicada na revista de divulgação científica da Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Estado e Santa Catarina (Fapesc). Acesse a publicação na íntegra aqui.