Antropólogo Oscar Calavia-Sáez mostra que obra de Lévi-Strauss estabelece os pilares da cultura humana sem incorrer na arrogância humanista sobre a superioridade da espécie

Lévi-Strauss não vê o ser humano como um habitante privilegiado do universo, mas como uma espécie passageira que deixará apenas alguns traços de sua existência quando estiver extinta
Os teóricos franceses são conhecidos por seu grau de abstração e digressão. Mas tendo dedicado um século de vida para estudar a cultura dos povos ditos “primitivos” e escrever um compêndio de 2.500 páginas sobre a mitologia dos indígenas das Américas, Lévi-Strauss rendeu-se à força do pensamento selvagem. Além de revelar ao mundo a eficiência do raciocínio concreto dos indígenas, baseado na observação e inteligência sensorial, procurou absorvê-lo no seu modo de pensar – e de existir. Lévi-Strauss amava os totens, os ideogramas orientais e a arte figurativa, apenas. “Nada que abolisse as formas e a relação com a natureza lhe interessava. Para ele, nenhuma arte faz sentido se não estiver ligada ao mundo sensível”, revelou Oscar Calavia-Sáez, que conduziu a 43º Edição do Café Philo na noite de quarta-feira (27), no auditório da Aliança Francesa.
O mais surpreendente na obra do antropólogo é que tendo estruturado as bases teóricas sobre as quais se ergue o edifício da cultura humana, Lévi-Strauss foi um dos poucos pensadores do seu tempo que não reproduziu o paradigma antropocêntrico. “Ele decididamente não foi um humanista”, disparou Calavia. E se explicou: “O conceito de humanismo se cria às custas de tudo o que não é humano. E o antropocentrismo que gera é responsável por uma longa lista de malfeitos contra as outras espécies e inclusive contra o próprio homem”. Vários textos de Lévi-Strauss são muito explícitos na crítica ao sentimento de superioridade da espécie humana, lembra Calavia, sobretudo o final do terceiro volume deMitológicos, em que ele enaltece alguns rituais indígenas que visavam proteger a natureza da contaminação vinda do sujeito, enquanto o homem branco só pensa em se proteger ele próprio dos perigos do meio. Num sentido mais profundo, Lévi-Strauss acreditava que as mesmas formas que definem o pensamento humano estão inscritas nas coisas e que o homem não pode reclamar uma transcendência independente dos outros seres vivos e não vivos.
Professor do Departamento de Antropologia da UFSC, e bom conhecedor da obra do pai do estruturalismo, Calavia encerrou a série de debates deste semestre com uma fala eloquente sobre Totemismo e Pensamento Selvagem em Lévi-Strauss. Autor de Amazônia, China, dos viages de vuelta; O nome e o tempo dos Yaminawa: etnologia e história dos Yaminawa do Alto Acre e Deus e o Diabo em terras católicas, ele substituiu o professor e escritor Sérgio Medeiros, que adoeceu e transferiu sua conferência e o lançamento do livro de poesias Totens para o segundo semestre.

Sobre o famoso conservadorismo do antropólogo nas artes, Calavia explicou que sua crítica à arte não figurativa advém de uma postura ecológica (pioneira na sua época) de que o ser humano não deve ir além das condições que a natureza lhe dá
Sobre o famoso conservadorismo do antropólogo nas artes, Calavia explicou que sua crítica à arte não figurativa advém de uma postura em certo sentido ecológica (e pioneira na sua época) de que o ser humano não deve ir além das condições que a natureza lhe dá. “Entendia que o homem precisa respeitar os seus limites para que o resto dos seres no planeta pudesse sobreviver”. O autor de Tristes Trópicos recusava a obsessão fáustica de que o homem deve quebrar os limites da natureza e considerava que a felicidade estava justamente na dimensão concreta da vida.
A admiração de Lévi-Strauss pelo pensamento e pela arte selvagem está materializada em quatro volumes de Mitológicas, tetrologia de I a IV.Nessa transcrição alucinante de 800 mitos ameríndios que vão do Alasca à Terra do Fogo, ele mostra que todos encontram-se, de algum modo, conectados: um mito é a variante do outro. Não há possibilidade de criação de um relato original, pois todo relato é a transformação de outro, explicou o professor.
Antes disso, em Totemismo, Strauss já desmitificara o antagonismo entre o pensamento ocidental, abstrato ou domesticado, e o selvagem, mostrando que antes de qualquer elaboração teórica apreendemos o mundo pela experiência sensível. O livro desautoriza a utilização do totemismo para demonstrar que há um corte vertical entre as duas culturas. “Nesse ataque ao totemismo, ele o ressuscita, destituindo o que outros pensadores publicaram anteriormente sobre essa separação e mostrando que todas as culturas estão crivadas de totens”. Antes de Lévi-Strauss, o totem tinha sido discutido durante decênios como um enigma, sem que nenhuma teoria conseguisse dar conta da sua complexidade, pois ora o totem tem um caráter individual, ora coletivo; ora os animais representados importam para a alimentação, ora são incomestíveis.
Já antes de Lévi-Strauss os antropólogos perceberam que o totemismo não servia como categoria teórica instrumental para classificar o que quer que seja e preferiram abandoná-lo como categoria teórica, anota Calavia. Todavia, Strauss reabilitou a noção, transferindo-a para um patamar superior ou mais amplo. O que ele disse? “O totemismo foi um falso problema inventado pelos estudiosos para separar o pensamento primitivo do nosso pensamento, uma espécie de curral onde se manteriam separadas formas de pensar que são universais, mas que eram tidas como incompatíveis com a racionalidade”. Em outras palavras, o totem (o urso, a águia, o búfalo) nos fala apenas do poder ou da utilidade da diversidade das formas no mundo natural para organizar e apoiar o nosso pensamento. Como a espécie humana é muito mais homogênea do que as outras, nos valemos da natureza para ajudar a designar nossa diversidade de ser e nos orientar na selva humana, pois são as diferenças que organizam o pensamento, mostra o professor. Exemplo disso é o totemismo do esporte, onde desfilam leões, gaviões, figueira.
E convencido de que esse “totemismo” é igualmente comum entre africanos, siberianos ou euro-americanos, Lévi-Strauss provocou seus antigos colegas de filosofia, colocando lado a lado o texto de Henri Bérgson, filósofo mais prestigiado da época, e o de um índio Lakota. Considerada uma das atas de nascimento da filosofia indígena, a publicação desses dois textos que descreviam como se desenvolve o ser dizendo praticamente o mesmo, quebrou o pilar da arrogância ocidental. Em O Pensamento Selvagem, Strauss diria que a diferença desse pensamento não domesticado é que “brota como uma flor silvestre”, sem uma disciplina especializada e dedicada a cultivá-lo e mais especificamente sem submeter-se a processos de refinamento pela escrita. A forma como pensamos, portanto, é um produto da domesticação desse pensamento selvagem, com todas as delícias e principalmente dores que o antropólogo francês indianizado demonstrou em sua generosa obra.
O Café Philo é uma promoção do professor Pedro de Souza, do Centro de Comunicação e Expressão da UFSC, em parceria com a Aliança Francesa e apoio da Secretaria de Cultura.
Texto e entrevista: Raquel Wandelli
Jornalista e assessora de Comunicação da Secretaria de Cultura da UFSC
37219459 e 99110524 – raquelwandelli@yahoo.com.br
Quem é Oscar Calavia-Sáez?
Graduado em Geografia e História pela Universidad Complutense de Madrid (1986), fez mestrado em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas (1991), doutorado em Ciência Social (Antropologia Social) pela Universidade de São Paulo (1995) e pós-doutorado pela Centre National de la Recherche Scientifique (2003). Atualmente é professor adjunto da Universidade Federal de Santa Catarina, da Universidad Complutense de Madrid e pesquisador associado do Centre National de la Recherche Scientifique e da Societé des Americanistes. Tem experiência na área de Antropologia, com ênfase em Etnologia Indígena, atuando principalmente nos seguintes temas: etno-história, com foco nas etnias Pano, Yaminawa e Amazonia-China. Este ano publicou Dos viajes de vuelta pela National Geographic, de Barcelona.
Alguns livros publicados:
SAEZ, O. C. . Os caminhos de Santiago e outros ensaios sobre o paganismo. Rio de Janeiro: Booklink, 2007
SAEZ, O. C. . O nome e o tempo dos Yaminawa. Etnologia e história dos Yaminawa do Alto Acre. 1ª. ed. São Paulo: Editora da Universidade do Estado de São Paulo, 2006. 478 p.
SAEZ, O. C. . Las formas locales de la vida religiosa. Antropología e historia de los santuarios de La Rioja.. Madrid: Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 2002. v. 1. 234 p.
SAEZ, O. C. . Deus e o Diabo em terras católicas. Brasil-Espanha. Taubaté: GEIC, 1999. v. 1.
SAEZ, O. C. . Fantasmas falados. 1. ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 1996. 216 p.