UFSC promove debate sobre enfrentamento ao assédio no ambiente universitário
Atividade da programação de recepção e acolhimento aos estudantes, a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) promoveu nesta quinta-feira, 10 de agosto, uma mesa-redonda sobre assédio no ambiente acadêmico. O evento, realizado no auditório do Centro Socioeconômico (CSE), teve como palestrantes a professora de Direito e secretária de Aperfeiçoamento Institucional da UFSC, Luana Heinen, a professora de Psicologia Suzana Tolfo e a defensora pública Anne Teive Auras.
A mediação foi do psicólogo Lucas Emanoel, integrante do Serviço Especializado de Atendimento às Vítimas de Violências (Seavis) da Pró-Reitoria de Ações Afirmativas e Equidade (Proafe). O encontro foi organizado pela Coordenadoria de Diversidade Sexual e Enfrentamento da Violência de Gênero (CDGEN). “A intenção é combater a cultura do silenciamento que muitas vezes envolve o assédio, encorajando as vítimas a romperem o silêncio e buscarem apoio”, explica Carolina Seidel, coordenadora da CDGEN.
A diretora de Ações Afirmativas e Equidade da Proafe, Marilise Sayão, fez a abertura do evento, representando a pró-reitora Leslie Sedrez Chaves. Ela afirmou que o assédio é uma problema levado a sério pela gestão da Universidade e que o encontro tinha como um dos objetivos criar estratégias de enfrentamento. Marilise informou que existe um grupo de trabalho, liderado pela CDGEN, elaborando uma política de equidade de gênero e contra as diversas formas de violência na Universidade.
Lucas Emanoel disse que este era um debate fundamental a ser feito, pois o assédio é uma das formas mais frequentes de violação nas instituições, e pesquisas mostram que casos de assédio moral e sexual estão presentes no ambiente acadêmico.
Exercício de poder
A defensora pública Anne Teive Auras iniciou sua fala relatando uma experiência pessoal: quando entrou na graduação, foi escolhida como “rainha da turma” de Direito. Na época, viu aquela situação como uma forma de aceitação, mas depois entendeu que se tratava de uma objetificação das calouras. De acordo com ela, assédio sexual é muito mais que uma má conduta individual, é reflexo de valores profundamente arraigados na sociedade. “Quando falamos de violência sexual, é muito mais exercício de poder do que desejo”.
Anne lembrou que o “agosto lilás”, mês de aniversário da Lei Maria da Penha, é um marco de enfrentamento à violência doméstica contra as mulheres. Apresentou dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública mostrando um aumento de todas as violências contra a mulher em 2022, inclusive de feminicídios. Ela destacou que hoje as mulheres são maioria nas universidades, mas são incorporadas a estruturas despreparadas para acolhê-las.
A defensora pública também apresentou as caracterizações jurídicas dos crimes contra a liberdade sexual. O assédio sexual é um tipo de crime onde está presente a relação hierárquica do agressor em relação à vítima, é um abuso de poder para obter algum favor sexual; a importunação é um ato de conotação sexual sem consentimento e o estupro é qualquer ato libidinoso praticado com violência ou grave ameaça. Já o assédio moral, embora não esteja tipificado no Código Penal, caracteriza-se por condutas repetidas que produzem humilhação.
Para enfrentamento dessas condutas, é necessário que haja normativas e protocolos para punição dos agressores. “A falta de punição leva à cultura do silenciamento”, afirmou Anne. O sigilo das denúncias, o cuidado para evitar a revitimização e uma escuta que valorize a palavra da mulher são condições muito importantes para o recebimento de denúncias, acrescentou. Além disso, são também importantes o amparo psicológico, a orientação jurídica e ações de prevenção e formação continuada para promover uma cultura de enfrentamento a todo tipo de assédio.
Responsabilização administrativa
A professora Luana Heinen disse que o Tribunal de Contas da União (TCU) revelou durante uma live que as universidades são os órgãos públicos federais com mais casos de assédio. Isso se explica em parte pelo grande número de pessoas envolvidas no universo acadêmico, mas também está relacionado a aspectos culturais. “As universidades são estruturas profundamente patriarcais, onde também está presente a misoginia”.
A secretária de Aperfeiçoamento Institucional da UFSC informou que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) firmou entendimento de que existe relação hierárquica entre professor e aluno, para caracterização de assédio sexual. “Existe um vínculo de confiança e ascendência, uma vez que o professor tem poder de interferir na carreira acadêmica da estudante”, explicou Luana. Ela disse que os casos de assédio são relações de hierarquia, mas também são relações de gênero, pois na grande maioria das vezes os agressores são homens e as vítimas são mulheres.
Luana esclareceu que os crimes são apurados via Ministério Público e Judiciário, mas há possibilidade de responsabilização na esfera administrativa também. Para isso, é fundamental que haja denúncia na Plataforma Integrada de Ouvidoria e Acesso à Informação Fala.BR. Essa denúncia deve fornecer o máximo possível de informações sobre autoria, local e data da ocorrência, possíveis testemunhas e descrição das condutas, não apenas o sentimento das pessoas em relação àquela situação.
De acordo com a professora, embora a Lei do Regime Jurídico Único dos servidores federais não contemple explicitamente assédio moral e sexual como condutas passíveis de punição, é possível enquadrar tais casos em outros tipos de infrações disciplinares, como “valer-se do cargo para lograr proveito pessoal ou de outrem, em detrimento da dignidade da função pública”, uma conduta proibida ao servidor público. Nos casos de infrações disciplinares, as punições vão da advertência, suspensão até a demissão.
A responsável pela SEAI apresentou dados pesquisados junto à Corregedoria da UFSC: desde 2017 a Universidade recebeu 20 denúncias de assédio sexual. Destas, cinco foram arquivadas no juízo de admissibilidade, uma originou um Termo de Ajustamento de Conduta e duas aguardam análise de admissibilidade. Das 12 denúncias que resultaram em Processo Administrativo Disciplinar (PAD), quatro foram punidas com suspensão, seis foram arquivadas ao final do processo e duas ainda estão em andamento.
Nos casos em que as denúncias envolvem estudantes, os processos disciplinares são conduzidos pela Coordenadoria dos cursos, que podem aplicar as penas de advertência, repreensão e suspensão de curto prazo – os casos que podem resultar em suspensões de prazo maior e desligamento do estudante agressor são decididos pela Reitoria. Assédio sexual e moral não estão na Resolução 17 do Conselho Universitário, que regulamenta os cursos de Graduação, mas existem condutas que podem receber punição, a exemplo de “atos contra a integridade física e moral da pessoa”.
De acordo com a professora, no processo administrativo existe o momento difícil de oitiva da vítima, que às vezes tem que falar na presença do acusado de agressão. Por isso, há uma orientação da Controladoria Geral da União (CGU) para que essas audiências sejam realizadas de forma remota ou que seja designado um defensor para o acusado. “É preciso assegurar um ambiente seguro e que não haja a revitimização”, disse Luana Heinen.
Fatores de adoecimento
A professora Suzana Tolfo fez graduação e mestrado na UFSC, atuou como docente por muitos anos e hoje está aposentada, mas continua em atividade junto à instituição. Ela destacou-se por sua atuação no Núcleo de Estudos de Processos Psicossociais e de Saúde nas Organizações e no Trabalho (Neppot) e tem o assédio moral entre seus temas de atuação e pesquisas. Suzana vê positivamente o atual momento da Universidade, com disposição de enfrentar e falar sobre as violências no ambiente acadêmico. “Hoje existem marcos importantes que fortalecem uma luta, uma militância”.
De acordo com Suzana, ambientes de trabalho são propícios à violência, especialmente de caráter psicológico. Ela informou que desde 2019 a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e depois a Organização Mundial de Saúde (OMS) estabeleceram que o assédio moral coloca as pessoas em situação de risco psicossocial. Neste ano, acrescentou, as Comissões Internas de Prevenção de Acidentes (Cipas), que existem em organizações empresariais, passaram a reconhecer os riscos psicossociais no ambiente de trabalho como fatores de adoecimento.
A professora de Psicologia diz que geralmente vemos a violência quando se manifesta em atos explícitos, mas em relação ao assédio moral tratam-se de comportamentos não tão evidentes, pois é uma violência predominantemente psicológica, de difícil materialidade. Algumas vezes, os comportamentos violentos podem estar associados. “Uma recusa a um assédio sexual pode dar origem a um assédio moral”, explicou.
O assédio moral é caracterizado por situações recorrentes, contínuas ou reiteradas de humilhações, constrangimentos e desqualificações que atentam contra a integridade e a dignidade das pessoas, disse Suzana. “O assédio moral causa adoecimento mental, por isso a importância de políticas de prevenção e redes de acolhimento”.
Existem algumas situações e atitudes que ajudam a reconhecer o assédio moral. Entre elas estão a deterioração proposital das condições de trabalho; o isolamento e recusa de comunicação por parte da chefia; atentados contra a dignidade e violência verbal, física ou sexual. “Olhar coletivamente é extremamente importante, não devemos individualizar algo que está relacionado ao ambiente de trabalho”. As consequências do assédio para o indivíduo vão das dores físicas generalizadas, passam por estresse e depressão e podem chegar a ideações suicidas. “Sejamos solidários e prestemos atenção em nós e nos outros”, disse a professora Suzana.
Após as apresentações das palestrantes, a palavra foi aberta ao público e as pessoas puderam fazer perguntas e relatos de casos.
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