Estudante de Direito defende pesquisa inédita sobre normas jurídicas do seu povo, os Sateré-Mawé

12/12/2022 08:05

Jafé Sateré defendeu a monografia em Direito na UFSC

“Se isso um dia foi do povo Sateré-Mawé nós também temos direito”. Com uma frase do seu pai, João Ferreira de Souza, o João Sateré, Jafé Ferreira de Souza abre um estudo inédito e que representa um legado para o seu povo de origem e para a Universidade Federal de Santa Catarina. A monografia As normas consuetudinárias do Povo Sateré-Mawé (Amazonas) enquanto ordenamento jurídico: Princípios e fontes à luz do Pluralismo Jurídico de Santi Romano faz uma análise de instituições, fenômenos jurídicos e de princípios norteadores que regem a nação indígena Sateré-Mawé, presente na bacia do rio Amazonas.

Jafé defendeu a pesquisa junto ao curso de Direito na quinta-feira, 8 de dezembro, sob orientação do professor Arno Dal Ri Jr. Fruto de uma linhagem de liderança entre os Sateré-Mawé, Ywania Sateré (U’T), ele escolheu a UFSC para fazer sua faculdade, tornando-se o primeiro bacharel em Direito do seu povo. Participaram da banca os professores Antonio Carlos Wolkmer, Diego Nunes e Mariana Malacrida.

O objeto de estudo de Jafé Sateré, recentemente aprovado para dar seguimento à pesquisa no Programa de Pós-Graduação em Direito, são as normas consuetudinárias, que dizem respeito aos costumes de um povo. “Dentre os 305 povos indígenas existentes, com as mais de 270 línguas indígenas, o povo Sateré-Mawé, é constituído, por assim dizer, de um ordenamento jurídico próprio de caráter não estatal segundo os seus costumes e tradições”, sinaliza o estudo.

De acordo com o pesquisador, no caso dos Sateré-Mawé, as normas são executadas milenarmente por intermédio dos rituais. “O direito originário está demarcado na memória dos ancestrais. E como direito originário, como o primeiro direito, temos o direito à terra”, exemplifica.

No caderno de campo que construiu sua pesquisa, baseada em intensa entrevista e observação in loco na Andirá-Marau, o acadêmico registrou que os Sateré-Mawé estão em locais ricos em biodiversidade, o que faz com que sejam mais do que defensores do meio ambiente e guardiões da floresta: eles detêm o conhecimento pleno sobre a fauna e flora por permanecerem na Terra.

“A vida, a cosmologia, a terra, e todos os saberes e ciências próprios não são assuntos desconhecidos, pelo contrário há domínio sobre o meio em que vivem. Por esta razão, por serem conhecedores do ambiente territorial onde se localizam, acreditam que o direito originário é o primeiro direito”, indica, no estudo.

De acordo com a pesquisa defendida por ele, a Constituição Federal é um dispositivo que positivou um direito originário, consagrando questões  sobre organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, além dos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Este processo desencadeou na demarcação das terras indígenas. No caso dos Sateré-Mawé, relata Jafé, as terras foram invadidas por uma empresa e houve intensa mobilização nacional e internacional, com a demarcação datada de 1986.

“Existe uma operação política quando você positiva uma norma, pois cria-se um direito à não inclusão. Então, você está positivando e tutelando”, critica Jafé Sateré. Ele se refere ao fato de a Constituição Federal criar uma norma de reconhecimento dos direitos indígenas, mas ao mesmo tempo colocá-los como indivíduos que devem ser tutelados pelo Estado, mesmo que já tenham seus próprios costumes, tradições, rituais, ordenamento jurídico próprio e modos de vida.

Guaraná (Waranã)

Os Sateré-Mawé são os originadores da cultura do Guaraná, são os filhos do Guaraná, que está presente no mito de origem do povo, descrito na monografia de Jafé Sateré. O protagonismo da fruta também está presente em rituais milenares que os Sateré-Mawé realizam como práticas dos costumes e das tradições. Tais rituais e protocolos são vistos como fonte de normas jurídicas consuetudinárias igualmente abordadas na pesquisa do acadêmico.

Um deles é o denominado Wará, que demanda lideranças para constituição de um conselho ou reunião, como descreve o trabalho. Durante este ritual, pronunciamentos a respeito do trabalho são executados e procedimentos e atividades assentados e deferidos. “O ritual do Wará faz jus ao ofício de chancela na tomada de decisão de quaisquer que fossem os planejamentos acertados entre o conselho ou reunião”, descreve.

Jafé e a Guardiã do Puretig Elsa Sateré

Qualquer que seja as tomadas de decisões, a cuia de sapó – bebida tradicional que consiste na guaraná ralado num recipiente – é simultaneamente repassada para os participantes do conselho de pajés. “Disso temos que o ritual do Wara obtém êxito de validade e de eficiência como fonte originária regulamentadora de protocolos que antecedem as tomadas de decisões”.

O trabalho também descreve o Puretig, que segundo os Sateré-Mawé é frequentemente tratado como sendo uma Constituição. Jafé escreve que “esta peça é de grande relevância no sistema político, social e cultural, assim como no ordenamento jurídico não estatal deste povo originário”. O Puretig é materializado numa espécie de remo sagrado – peça de madeira com aproximadamente 1,50m de altura, com desenhos geométricos gravados em baixo relevo, recobertos com tinta branca, a tabatinga. “Neles estão gravados o que deve ser seguido de forma abstrata e de cunho moral para a sociedade Sateré-Mawé”, explica na pesquisa.

No estudo, o pesquisador também faz uma distinção entre os princípios jurídicos – que são conjunto de fatores ou de elementos essenciais que satisfazem as ordem dos rituais Sateré-Mawé -, e os ritos, que são considerados nulos e sem fundamentos e objetivos não fossem esses princípios. “O ordenamento que a monografia traz tem caráter moral, de vivência, das condutas que são praticadas diariamente”, explica.

O trabalho de Jafé também foi de cunho antropológico, sociológico e histórico quanto ao seu povo. Ele precisou entrevistar lideranças tradicionais para recuperar e traduzir em linguagem científica, técnico-jurídica, registros normativos consuetudinário que passavam de geração para geração oralmente ou pela experiência.

Liderança

Jafé Ferreira de Souza, ou Jafé Sateré como é conhecido, é uma liderança tradicional da nação Sateré-Mawé e também um embaixador do seu povo, por conta do caminho de cerca de 3 mil quilômetros que separam Florianópolis da região de Parintins e da aldeia onde nasceu, Ponta Alegre, no estado do Amazonas. Ele, que chegou a estudar Engenharia da Computação na Universidade Estadual do Amazonas, mas desistiu por conta da inclinação às Ciências Jurídicas, escolheu a UFSC após uma pesquisa sobre as instituições brasileiras que eram referência no ensino de Direito.

A importância da família e também da comunidade na sua formação foram fundamentais para a construção da monografia. Jafé fala com muito orgulho sobre a construção da liderança do seu pai, João Sateré, que estudou até a quarta série do Ensino Fundamental, mas percorreu o mundo representando seu povo e o movimento indígena. “Meu pai é um sábio do nosso povo, esteve à frente de muitas lutas, inclusive em nível nacional e internacional. Ele foi um dos fundadores do movimento indígena do Amazonas. Isso me possibilitou um salto maior nos estudos”, conta.

O acadêmico sente orgulho de ser formado por meio das políticas de ações afirmativas e, durante o percurso na universidade, teve participação em diversas ações e políticas internas: participou de palestras, grupos de estudo, atividades estudantis, congresso de direito. Também integrou o movimento indígena na universidade. Além de ter estagiado em órgãos do Judiciário, ele também participou de atividades de monitoria para indígenas e quilombolas da UFSC.

Já aprovado no mestrado, em que pretende dar continuidade na pesquisa e estudar as normas consuetudinárias do povo Sateré-Mawé com ênfase questões criminais, ele tem o objetivo de, brevemente, prestar o concurso da Ordem dos Advogados do Brasil. Ser juiz federal também está entre os seus planos.

Em 2019, ele participou de um dos episódios do Vida UFSC. “A gente acredita que a grande arma que temos hoje seria a interpretação das leis, porque geralmente algo vem de cima para baixo e não de baixo para cima”, indicou. Hoje, prestes a se tornar o primeiro jurista Sateré-Mawé, está pronto também para apresentar o resultado dos anos de atividade acadêmica e de imersão ao seu povo.

Amanda Miranda, jornalista da Agecom/UFSC

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