Estudo aponta papel facilitador das araucárias na expansão das florestas e importância dos proprietários locais
Preservar espécies, paisagens e as culturas locais configuram um desafio que pressupõem uma perspectiva integrada de conservação, onde as ações humanas seculares são parte intrínseca da dinâmica ecológica destes locais. Esta é uma das conclusões da pesquisa “Interação entre o manejo da terra e araucárias na manutenção da diversidade de paisagens nas terras altas do Sul do Brasil”, publicada na revista acadêmica Plos One.
O estudo desenvolvido pelo doutorando em Ecologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Rafael Barbizan Sühs contrapôs duas formas de interação entre os campos de altitude e a floresta de araucária: as araucárias adultas facilitam a chegada de espécies arbóreas e, por outro lado, as práticas tradicionais de manejo dos campos contêm o avanço da floresta e mantêm os campos.
Rafael Sühs, primeiro autor do artigo (escrito com Eduardo Luís Hettwer Giehl e Nivaldo Peroni), explica que, “atualmente, algumas regiões de campo de altitude e floresta com Araucária são utilizadas por proprietários locais, que ainda empregam algumas práticas tradicionais, como a queima dos campos e o consumo do pinhão”. O fogo é utilizado, afirma Sühs, como uma ferramenta para promover o crescimento da vegetação campestre para alimentação do gado.
Anteriormente à chegada dos europeus, boa parte do território brasileiro era ocupado por uma grande variedade de grupos humanos. No sul do Brasil, as paisagens foram influenciadas por povos pré-Colombianos através do uso e manejo dos recursos naturais por diversas gerações. Alguns desses povos, especialmente os Kaingang e Xokleng, ocupavam as terras altas do sul do Brasil em regiões de floresta com Araucária e campos de altitude. Esses povos utilizavam diversos recursos vegetais, dentre eles a semente da Araucária (pinhão), como uma das principais fontes alimentares durante o inverno. Estudos demonstram que estes povos podem ter favorecido variedades de pinhão que existem até hoje, como o pinhão-macaco, são-josé, caiová, dentre outros.
Além disso, eles também foram responsáveis pela disseminação da Araucária no sul do Brasil, uma vez que dispersavam suas sementes (de forma acidental ou não) através do transporte do pinhão de um lugar para o outro. “Com a chegada dos europeus, guerras e doenças dizimaram boa parte desses povos, juntamente com suas culturas e práticas. Boa parte da floresta com Araucária também acabou sofrendo uma grande exploração, especialmente no século passado, e por consequência, ocupa hoje apenas cerca de 12% de seu território original e a própria araucária está criticamente ameaçada de extinção”, assevera Sühs. Os campos de altitude, que entremeiam muitas florestas com araucária, por sua vez, também vêm sofrendo com diversas ameaças, em especial a conversão em monoculturas, o mau uso e as mudanças climáticas, além de ainda serem pouco protegidos por políticas públicas de conservação.
Efeito facilitador
O pesquisador aponta que araucárias adultas conseguem promover o crescimento de outras espécies arbóreas através do sombreamento (diminuição de temperatura) e da melhora das condições do solo sob sua copa. “Esse efeito facilitador das araucárias, já demonstrado em outros trabalhos, promove a expansão natural da floresta. Pássaros frugívoros também têm um papel importante nesse processo, interagindo com as araucárias. Ao utilizar as araucárias como poleiro, acabam por disseminar sementes de espécies arbóreas, um fenômeno conhecido como efeito-poleiro”, diz Sühs.
Intrigados com a dualidade do manejo tradicional e das araucárias, os pesquisadores testaram como estes dois elementos conjuntamente afetam as árvores jovens no que diz respeito à quantidade de espécies e de indivíduos (riqueza de espécies e abundância, respectivamente) e a composição de espécies (quais espécies). “Também testamos se outros elementos presentes na paisagem, como a cobertura de rochas e arbustos, e o volume de gramíneas, afetam as árvores jovens”, conta Sühs.
Foram coletados dados em uma região onde os dois cenários foram encontrados: uma área com manejo tradicional (gado e fogo) e outra área sem o manejo tradicional (fogo e gado impedidos), ambas com a ocorrência de araucárias adultas em meio à vegetação campestre/arbustiva. A área sem manejo situa-se dentro do Parque Nacional de São Joaquim (PNSJ), uma Unidade de Conservação Federal de 49,300 hectares importante para a conservação dos ecossistemas campestres e florestais em Santa Catarina. A área manejada situa-se fora dos limites do PNSJ, adjacente à área sem manejo. São terras de proprietários locais, que utilizam o fogo há séculos para a manutenção da vegetação campestre, que alimenta o gado.
No passado, estas áreas pertenciam a um mesmo proprietário, o qual utilizava o gado e o fogo de forma igual nas duas áreas. Em 2008, parte da propriedade foi convertida para a unidade de conservação (PNSJ), onde o fogo e o gado são proibidos. “Dessa forma, temos áreas adjacentes, que foram historicamente utilizadas da mesma forma, mas que recentemente foram diferenciadas pela ação do principal elemento cultural, o manejo tradicional. Nesse sentido, vemos nessas propriedades uma oportunidade única para testar o efeito facilitador da Araucária, avaliando também a influência do manejo tradicional”, expõe o pesquisador. Para isso, a pesquisa identificou quantas e quais espécies de árvores jovens estavam crescendo sob as copas das araucárias e em áreas adjacentes às araucárias, sem a influência direta das copas.
Resultados
Os resultados demonstraram que a maior consequência da interação entre o manejo da terra e a influência das araucárias foi de que o manejo acaba se sobrepondo ao efeito facilitador da Araucária. Ou seja, a quantidade de indivíduos de árvores jovens foi sempre maior em áreas sem o manejo tradicional do que em áreas manejadas. Essa quantidade de indivíduos aumenta quando sob a copa das araucárias em relação às áreas sem a influência da copa. “Para se ter ideia da dimensão do efeito, a quantidade de espécies sob a copa das araucárias nas áreas sem o manejo tradicional foi, em média, três vezes maior do que sob a copa nas áreas manejadas. Já a quantidade de árvores encontradas sob a copa das araucárias nas áreas sem o manejo tradicional foi, em média, 12 vezes maior do que sob a copa nas áreas manejadas”, assegura Sühs.
Áreas sem o manejo e sem influência das copas tiveram cerca de quatro vezes mais árvores do que áreas manejadas com influência das copas, reforçando a eficácia do manejo em manter os campos. Por fim, a composição de espécies também foi afetada pelas araucárias e pelo manejo, sendo diferente em cada um dos cenários. Isto significa que cada cenário avaliado possui características próprias, refletindo em combinações de espécies diferentes em cada um deles.
Sühs mostra também que, “em determinadas circunstâncias, os afloramentos rochosos podem ajudar as espécies arbóreas, possivelmente protegendo contra o fogo e pisoteio do gado. Já a quantidade de gramíneas pode atrapalhar, possivelmente devido às gramíneas serem excelentes competidoras nesses locais”.
O estudo sustenta o importante papel facilitador que as araucárias possuem em promover a expansão das florestas e também a importância dos pequenos proprietários locais em manter os campos. Por um lado, as araucárias aumentam a quantidade de árvores sob suas copas, iniciando a formação dos chamados “capões” e, posteriormente, as florestas. Por outro lado, as práticas tradicionais de manejo utilizadas pelos proprietários locais através do fogo e do gado mantêm os campos nativos ao impedir que a floresta se estabeleça. “Estes dois componentes – o manejo tradicional exercido pelas pessoas, e as araucárias – são fundamentais para uma maior diversidade de paisagens nas terras altas no sul do Brasil. Os distúrbios promovidos pelo manejo, como a formação de clareiras, favorecem a manutenção de paisagens e espécies ameaçadas, como os campos de altitude e as próprias araucárias. Ao manter as práticas seculares de manejo utilizadas pelos proprietários locais, ao invés de excluí-las, obtemos uma maior diversidade de ecossistemas”, declara Sühs.