Escravidão na Desterro do século XIX de volta às ruas em roteiros culturais

16/09/2014 08:00

A manhã de sábado é movimentada na praça XV de Novembro, Centro de Florianópolis. No local há barraquinhas de comerciantes, turistas, alguns últimos remanescentes da noite de sexta-feira e passantes em direção à feira Viva a Cidade, na rua João Pinto. Supersticiosos contam voltas ao redor da figueira centenária para conseguir riqueza, casamento ou alguma outra graça. É neste contexto, surpreendentemente animado para um começo de dia nublado, que o grupo do programa Santa Afro Catarina se reúne, diante da figueira, no dia 6 de setembro, para o roteiro “Devoção ao Rosário e festas de africanos na Ilha”.

© Pipo Quint / Agecom / UFSC

Foto: Pipo Quint/Agecom/UFSC

A caminhada pelas ruas do Centro apresenta aspectos da religiosidade e da cultura afro-brasileiras da Desterro do século XIX, quando nem a figueira estava ali na praça: a ligação entre essas manifestações e sua utilização para repressão dos escravos ou para barganha por direitos, suas modificações à medida que passavam gerações, a influência dos escravos já nascidos no Brasil e os diferentes graus de tolerância oficial conforme o momento histórico.

Antes da primeira parada, há um pequeno preâmbulo no coreto da praça XV, em que o condutor Felipe Augusto Werner pergunta sobre as noções de cada um a respeito de escravidão e lembra que o período escravocrata teve algumas características particulares em Desterro, principalmente a concentração de escravos no ambiente urbano e o número menor de escravos por senhor (cerca de quatro por casa) que em outros centros maiores, como São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Bahia.

Depois disso, o passeio começa para valer, no Largo da Matriz. Era ali que se realizava, no início do século XIX, um festejo que, pelos relatos da época e pela imagem desenhada em 1803 pelo naturalista alemão Tilesius von Tilenau, pode ser uma variação da Reizada. Até a Proclamação da Independência, essas manifestações eram permitidas; depois, surgiu a determinação de estabelecer uma nova identidade para o país, espelhada na cultura e hábitos europeus. Os rituais e festejos de matriz africana passaram então a ser perseguidos e considerados bárbaros. Curiosamente, enquanto Werner conta essa história, forma-se uma roda de capoeira nos degraus da catedral.

© Pipo Quint / Agecom / UFSC

Foto: Pipo Quint/Agecom/UFSC

A parada seguinte é diante da igreja do Rosário e São Benedito, na rua Marechal Guilherme – um dos pontos mais importantes. Era ali o local de culto e encontro da Irmandade do Rosário, grupo religioso fundado em 1750, do qual participavam escravos africanos e afrodescendentes mas também integrantes brancos, alguns em postos de autoridade na política local, o que servia como fator de organização mas também de vigília sobre os escravos. Essa situação intrincada de poder, financiamento, anuência, repressão e rebeldia passava pelo sistema de autoridades conflitantes, as casas alugadas para financiar as irmandades, os escravos que trabalhavam em esquemas de jornadas diárias, os batuques, as construções de capelas, do Hospital de Caridade e diversos outros fatores. Há, por exemplo, o relato do fiscal que foi à praça XV proibir um batuque de escravos que se realizava ali. Quando chegou, acabou recebendo voz de prisão: o sub-delegado de Desterro fazia parte da Irmandade do Rosário e, assim, autorizou o festejo.

Passagens como essa, contadas próximas dos lugares onde ocorreram, ajudam a dar dimensão humana ao conjunto de relações construído pela escravidão. Em cada trecho do passeio, passantes se agrupam para escutar as histórias acontecidas ali, e pedem informações sobre novas edições do roteiro. O programa surgiu em 2011, com o laboratório do curso de História da UFSC, a fim de pesquisar a presença de escravos em Desterro e também seu modo de vida e hábitos cotidianos.

– Na virada dos anos 1980 para os 1990, começamos a superar aquele foco de historiografia que condenava essa população à invisibilidade – explica Werner. – Nosso desafio agora é entender cada vez mais e, principalmente, levar esse conhecimento para fora da academia. É fundamental que as pessoas saibam que houve, sim, escravidão aqui, e esses roteiros fazem parte dessa divulgação.

Os passeios – realização conjunta do Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFH) e do Centro de Ciências da Educação (CED) – são abertos aos interessados e dispensam agendamento prévio. Ocorrem sempre no primeiro sábado de cada mês, um roteiro a cada vez. Além do “Devoção ao Rosário e festas de africanos na Ilha”, os outros dois são:
– “A Desterro de Cruz e Sousa”, que situa a trajetória do escritor e poeta no espaço da cidade de Desterro, desde sua infância, durante a Guerra do Paraguai, até seu engajamento na campanha abolicionista, especialmente nos jornais locais.
– “Viver de Quitandas”, que associa a paisagem urbana de Desterro às de outras freguesias da Ilha de Santa Catarina e do litoral adjacente, ao abordar o abastecimento e a produção de gêneros alimentícios. O porto, a antiga Praça de Mercado e as ruas de Desterro emergem como locais de sociabilidade para muitos escravos e libertos, homens e mulheres de origem africana, que desempenhavam atividades relacionadas ao comércio de gêneros.

Contato: santaafrocatarina@gmail.com

Mais informações: http://santaafrocatarina.blogspot.com

Fabio Bianchini/Jornalista da Agecom/DGC/UFSC
fabio.bianchini@ufsc.br

Claudio Borrelli/Revisor de Textos da Agecom/DGC/ UFSC

Tags: históriaprograma Santa Afro CatarinaUFSC