Formanda da UFSC usa beca branca pela primeira vez na história: ‘só a luta muda a vida’

04/04/2024 18:10

Formanda de Serviço Social se graduou na quinta-feira. Foto: Henrique Almeida/Agecom/UFSC

Quando foi chamada ao palco como formanda de Serviço Social, nesta quinta-feira, 4 de abril, Cynthia Luiza Ribeiro do Amaral entrou para a história da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Ela é a primeira pessoa a colar grau na instituição com uma beca branca, desenvolvida para ela em respeito à diversidade religiosa e ao seu processo de formação espiritual no candomblé.

Ao chamarem seu nome, Cynthia subiu ao palco aplaudida por seus familiares e amigos, que também utilizavam vestimentas brancas. Ela abraçou seus professores e dançou erguendo seu diploma no Auditório Garapuvu, no Centro de Cultura e Eventos Reitor Luiz Carlos Cancellier de Olivo, no Campus de Florianópolis.

O processo de formação espiritual de Cynthia no candomblé começou no mesmo dia em que defendeu seu trabalho final da faculdade. Foi quando “entrou em preceito”, termo utilizado para definir uma fase no desenvolvimento espiritual dos candomblecistas que se preparam para receber o seu orixá. Durante este momento, ela precisa passar por uma série de ritos, entre eles está o hábito diário das vestes brancas, além da cobertura dos cabelos durante um ano.

Cynthia foi uma das escolhidas para proferir o discurso da turma durante a formatura. Com potência nas palavras, sintetizou que os últimos anos na Graduação foram marcados por muita resistência. “Só a luta muda a vida” foram as últimas palavras do discurso.

Reitor da UFSC, Irineu Manoel de Souza, aperta a mão da formanda após outorga de grau. Foto: Henrique Almeida/Agecom/UFSC

Pela primeira vez na história, a UFSC teve uma vestimenta com essas características, uma deliberação da Reitoria para que Cynthia pudesse se formar respeitando sua perspectiva de acessibilidade e garantia de direitos. O cumprimento da prerrogativa legal é considerado um divisor de águas para toda comunidade acadêmica, povos de axé e de todas as religiões, além de ser um gesto de combate ao racismo religioso e intolerância religiosa.

Cynthia tem como seu orixá Oxumarê, cuja história é associada ao movimento e à transformação. Logo que percebeu que a formatura seria celebrada durante o seu período de preparação, começou a pensar no que poderia ser feito, já que a celebração tradicional dos formandos, além de ser um direito, também era um desejo seu e dos seus familiares. “Eu me questionava sobre como iria me formar de roupa preta e como eu faria com o aparamento na cabeça”, conta.

O que para muitos pode ser uma preocupação trivial, já que o traje composto de beca (roupa) e capelo (chapéu) fazem parte dos protocolos, para ela se transformou em uma questão a ser resolvida. “Eu não gostaria que num momento tão especial desses eu tivesse que abrir mão de alguma coisa que também é tão especial para mim”, sintetiza.

Cynthia levou a questão à universidade, que, por meio da Secretaria de Cultura, Arte e Esportes (SeCArtE), responsável pelas formaturas, admitiu ser um caso inédito. “Fui procurar fundamentos que justificassem esse meu querer”, comenta. “E fiquei surpresa em saber que, em tantos anos, com tantas pessoas já tendo passado pela instituição e tantas religiões, essa seja a primeira vez”.

Beca branca foi confeccionada especialmente para a ocasião. Foto: Henrique Almeida/Agecom/UFSC

O direito à diversidade religiosa é previsto na Constituição Federal, que inclui o direito aos cidadãos de expressarem e praticarem sua religião. No caso das instituições de ensino, a Lei de Diretrizes e Bases indica a autonomia para a regulação desse tipo de norma, desde que dentro dos limites constitucionais. Quando buscou a Universidade para tratar do assunto, Cynthia pensou também em outras religiões que possam ter crenças que esbarrem com os ritos da formatura. “Temos muitas religiões com dogmas bem estabelecidos, então eu pensei: qual a chance de você falar sobre isso em um grande grupo e não sofrer intolerância?”, questiona.

A questão foi debatida e organizada por um grupo com a participação também da vice-reitora da UFSC, Joana Célia dos Passos. “Setores diferentes participaram de reuniões, quando enfim foi deliberado que eu poderia participar da beca branca”. Um dos setores que protagonizou o encaminhamento foi a Pró-Reitoria de Ações Afirmativas e Equidade (Proafe). Por conta da greve dos servidores técnicos administrativos da UFSC, Cynthia só conseguiu acessar a vestimenta algumas horas antes da formatura.

Mais tolerância e respeito

Cynthia foi a única formanda trajando branco em meio aos colegas e trata isso como uma conquista por mais tolerância e respeito, de alguma forma valores que comungam com as características que uma assistente social deve ter. Por isso, ela também celebra outras conquistas da turma de formandas, que conta com pessoas trans e com deficiência entre o grupo de estudantes que colaram grau na cerimônia.

“Considero esse um direito de extrema importância. Nós temos muitos outros colegas em outros cursos e grupos que têm movimentação do povo de terreiro. Todos nós temos essa questão do fazer santo, da ritualística. Quantas pessoas deixariam de viver um momento especial como uma formatura por causa disso?”, questiona.

As vestes e indumentárias brancas, usadas por Cynthia em seu cotidiano, costumam provocar olhares e também ser motivo de preconceito. Recentemente, ela foi vítima de intolerância de forma pública, quando circulava no centro da cidade e foi agredida verbalmente e ameaçada, precisando inclusive recorrer à Polícia Militar.

“Nesse momento que a gente vive, de tanta guerras em termos de ideologia, é um momento que a gente tem para a universidade pública se posicionar enquanto uma produtora de saber, como formadora de opiniões. Por isso é tão importante que a UFSC possa trazer para a comunidade e para a sociedade civil essa perspectiva de respeito e de união em prol de todas as religiões”, finaliza.

Amanda Miranda | amanda.souza.miranda@ufsc.br
Jornalista da Agecom| UFSC

Colaborou:

Julia Dias | agecom@contato.ufsc.br
Estagiária da Agecom| UFSC

Formatura no Campus de Florianópolis: Cynthia, de branco, também cobre a cabeça. Foto: Henrique Almeida/Agecom/UFSC

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