Pesquisadora indígena da UFSC é pioneira em Arqueologia no âmbito da pós-graduação

23/07/2021 10:26

Walderes fez sua defesa em junho e teve a dissertação aprovada sem alterações pela banca

A tarde do dia 17 de junho marcou uma ocasião especial na Terra Indígena Laklãnõ Xokleng de Ibirama, localizada no interior do Vale do Itajaí, em Santa Catarina. Projeções nas casas e na escola da aldeia permitiram a familiares e amigos assistirem à defesa de mestrado da acadêmica Walderes Coctá Priprá, pelo Programa de Pós-Graduação em História (PPGH) na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

A apresentação foi realizada de forma remota devido à pandemia de Covid-19, diante de uma sala lotada: 63 pessoas on-line durante a defesa. A aluna teve sua dissertação aprovada sem alterações pela banca, composta pelas professoras Fabíola Andrea Silva, da Universidade de São Paulo (USP) e Luisa Tombini Wittman, da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc), além de Evelyn Zea, do Departamento de Antropologia da UFSC como suplente.

Walderes é a segunda indígena a defender um mestrado no PPGH (a estudante Delta Maria de Souza Maia, do povo Wapixana da Serra da Moça, de Roraima, concluiu em 2001), mas a primeira a obter a conquista após a implantação da política de ações afirmativas na Universidade. O caminho até o título foi árduo para a mãe de três filhos que iniciou os estudos no ensino superior visando auxiliar na educação da aldeia.

Apresentação ocorreu de forma remota devido à pandemia de Covid-19

Antes de se tornar uma estudante da UFSC, Walderes cursou Letras Português/Espanhol em uma instituição próxima a Ibirama. “Na época, a gente estava com falta de professores dentro da terra indígena e foi até um pedido da própria liderança que a gente fizesse algum curso de graduação para poder assumir como professor dentro da terra indígena, nas nossas escolas”, recorda.

Já a segunda graduação foi cursada na UFSC: Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica, com ênfase em Humanidade. Ela finalizou o curso em 2015 com a linha de pesquisa direcionada à questão do direito indígena. Finalizada esta etapa, a acadêmica desejou dar continuidade aos estudos na área da História e iniciou no programa de pós-graduação em 2017.

Pioneirismo em Arqueologia

Em arqueologia, tema que aborda em sua dissertação, Walderes tornou-se pioneira também ao ser a primeira indígena a defender um título no âmbito da pós-graduação. De acordo com a pesquisadora, seu objeto de estudo surgiu após inúmeras rodas de conversas em sua aldeia. “Meu projeto de mestrado foi desenvolvido com o apoio das lideranças da minha comunidade, principalmente nossos anciões. Eles queriam muito que houvesse um registro da nossa história e do nosso povo”, afirmou.

Centro da aldeia na Terra Indígena Laklãnõ Xokleng de Ibirama. No detalhe, a escola ‘Vanhecú Patté’

Intitulada Lugares de acampamento e memória do povo Laklãnõ Xokleng, Santa Catarina, a dissertação de Walderes Coctá Priprá mapeou os locais de memória, os acampamentos mais antigos e também aqueles que surgiram logo após o contato com não-indígenas ocorrido em 1914, conhecido como “pacificação”. Atualmente o povo Laklãnõ Xokleng encontra-se em sua maioria em Santa Catarina, no Alto Vale do Rio Itajaí, cercado por pelos municípios José Boiteux, Doutor Pedrinho, Vitor Meirelles e Itaiópolis, locais onde a pesquisa foi realizada.

O trabalho teve como objetivo o registro dos lugares que ficaram na memória do povo Laklãnõ Xokleng através de fotos, entrevistas com os anciãos e sábios e visitas aos locais de acampamentos e cemitérios antigos do povo. Walderes ressaltou que este era um momento crucial para o levantamento, uma vez que quase não há registros da história antes do contato com os não-indígenas.

“É um ganho para minha própria comunidade, visto que muitos acreditam que nós, indígenas, não vamos conseguir. Muitos nos acham incapazes. Então, é uma forma também de mostrar que nós somos capazes sim e que temos muito ainda a aprender e ensinar nesse mundo dos não-indígenas”, disse Walderes.

Um ritual foi realizado na aldeia em Ibirama “por uma boa fala” no dia da defesa de Walderes. Ela relembra a ansiedade e o orgulho por saber que sua família e sua comunidade estariam acompanhando a transmissão. “Foi muito importante até porque esse projeto não foi feito só por mim, foi feito por muitos olhos e muitas mãos. É uma conquista não só minha, mas também de toda minha família, de toda minha comunidade da Terra Indígena Laklãnõ”.

Além do apoio de seus familiares, a estudante recebeu apoio financeiro para desenvolver seu estudo. Primeiro, por meio de recursos do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e, logo após este ser encerrado, obteve apoio por três meses do Programa Amanhã, que ajuda as estudantes mães indígenas e quilombolas.

A acadêmica explica que enfrentou dois grandes obstáculos no percurso da pesquisa: as limitações devido à pandemia de Covid-19, que impediram a visita a alguns locais com os anciões da aldeia, por eles necessitarem de isolamento e um cuidado maior em decorrência da idade; e o redimensionamento da área a ser estudada, que previa a inclusão de territórios fora dos limites da comunidade. Por causa da grande extensão, a pesquisadora fez um recorte e trabalhou em um mapeamento nos 37 mil hectares pertencentes à Terra Indígena Laklãnõ.

Demarcação de terras indígenas

A defesa de Walderes ocorre em um momento político de extrema insegurança para as populações indígenas. O Supremo Tribunal Federal (STF) deve julgar em agosto o Projeto de Lei nº 490 (PL 490), que tramita desde 2007, e propõe que a tese do marco temporal seja aplicada à demarcação. Na prática, isso estabelece que somente os espaços comprovadamente ocupados por indígenas em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição, poderiam ser classificados como terras demarcadas.

A ação não reconhece o direito originário dos povos indígenas às suas terras tradicionais e tem repercussão direta na demarcação da Terra Indígena Laklãnõ Xokleng. A Corte vai analisar o Recurso Especial nº 1.017.365, que trata de um pedido de reintegração de posse movido pelo Instituto do Meio a Ambiente de Santa Catarina (IMA) contra a Fundação Nacional do Índio (Funai) e indígenas do povo Xokleng.

Em 2019, o plenário do STF reconheceu que o julgamento do parecer terá repercussão geral. Isso significa que a decisão nesse caso servirá para fixar uma tese de referência a todos os casos envolvendo terras indígenas, em todas as instâncias do judiciário. “Estamos lutando junto com os povos indígenas do Brasil inteiro para derrubar essa PL 490, que é totalmente inconstitucional e que não garante os nossos direitos. É um grande absurdo. A gente gostaria mesmo que fosse derrubado esse projeto de lei e que o recurso nos garanta a terra que é por direito nossa”, concluiu Walderes.

Maykon Oliveira/Jornalista da Agecom/UFSC
Fotos: Divulgação

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