Obra de Carl Einstein é lançada na feira de livros da Editoria da UFSC

09/08/2011 10:46

Era um tempo de disputa entre os impérios, de massacre das colônias, de afirmação da superioridade bélica e étnica dos países anglo-saxões. Cenário de extermínio dos ditos povos primitivos. Tempo em que o eruditismo ocidental determinava o que era ou não era arte. Nesse transcorrer das duas guerras mundiais, foi um crítico de arte alemão perseguido pelo nazismo, amante das latinidades e das “culturas primitivas”, o responsável pelo descobrimento da escultura africana, com a qual pôs abaixo o paradigma evolucionista dominante de que só os povos ditos civilizados faziam arte.

Negerplastik (Escultura negra), a obra colossal de Carl Einstein que a Editora da UFSC acaba de publicar pela primeira vez em tradução para a língua portuguesa e lança na sua Feira de Livros de volta às aulas, elevou à condição definitiva de arte os objetos indecifráveis e “indatáveis” que os viajantes, missionários, comerciantes, saqueadores, militares e exploradores europeus colecionavam em suas excursões pela África subsaariana. E naqueles idos de 1915, estarreceu o mundo das Belas Artes com a lição de plasticidade e distanciamento subjetivo vinda dos rufares africanos, que ele poeticamente chamou de “a lição negra”.

Instaurando um olhar estético liberto do etnocentrismo europeu, o curto e vigoroso ensaio de Carl Einstein que antecede a reprodução de 111 esculturas em forma de estatuetas, máscaras, taças, trompas, bancos, efígies, bustos, cabeças, relicários, postes funerários, mudou para sempre a concepção ocidental de arte primitiva. Além de abrir-lhe o panteão das artes, autorizou e encorajou as relações, cada vez mais próximas, que a arte moderna, a literatura, a psicanálise, a filosofia, enfim, estabeleceram entre a cultura ocidental e a africana a partir de então. O exemplo mais particular é o movimento cubista, do qual Einstein participou ativamente como teórico. Desde Negerplastik não se pode mais duvidar do estatuto dessa escultura como arte ou ignorar a influência que exerceu nos grandes mestres modernos.

Mas antes que esses objetos, ainda hoje classificados nas galerias como “arte primitiva”, passassem das coleções particulares para as alas de museus internacionais, como o Louvre, ou ganhassem espaços exclusivos e de sucesso, como o Museu do cais Branly, em Paris, Carl Einstein empreendeu uma luta política e estética para demonstrar que as soluções africanas para problemas de volume, espaço, perspectiva, forma, movimento e plasticidade representavam um grande aprendizado para a escultura renascentista e romântica, inclusive para a obra do popular Rodin.

A percepção mais arguta e sensível de Einstein talvez tenha sido a de que, em vez de perseguir a inclusão do espectador no efeito emotivo e subjetivo da obra, valorizado pela arte ocidental, a arte africana justamente se afirma na distância mítica e religiosa. O “artista primitivo” se identifica não com o espectador, nos ensina Einstein, mas com o adorador que vê na arte a única forma de transcender aos deuses sua condição humana. Nessa perspectiva, seus objetos não representam um sentido a decifrar: eles são o próprio totem, a própria expressão do culto ao sagrado.

Uma obra assim antológica merece a edição primorosa, de capa dura e preta, miolo em papel de gramatura especial para as 220 páginas de ilustrações com as figurações africanas, num total de 302 páginas. E merece também a equipe paratextual à altura: orelha assinada por Raul Antelo (UFSC), texto de apresentação da crítica e historiadora Liliane Meffre (Universidade de Borgogne, França), estudiosa de longa data da obra de Einstein, que considera o crítico fundamental do século XX, e resenha final de Roberto Conduru, da Universidade do Rio de Janeiro, sobre as conexões propostas por Einstein entre a escultura negra e a vanguarda artística europeia. Inês Araújo traduz Carl Einstein em contraponto com a tradução francesa de Meffre e Fernando Scheibe (aplaudido por Divagações, de Mallarmé), traduz a apresentação da historiadora.

Em sua introdução, Meffre discute o contexto histórico e artístico em que a obra se ergue, reconstituindo a trajetória do autor, não só feita de glórias e reconhecimento pelos jovens parisienses e pintores espanhois encantados com a lição da África, mas também de incompreensões por seus pares, perseguições políticas, longos períodos de hospitalização e privação material em que teve de se desfazer de sua coleção pessoal de objetos africanos para sobreviver.

Depois de uma tentativa de suicídio frustrada, o alemão lança-se para a morte, “último ato de liberdade”, ao se jogar no rio Gave de Pau, em julho de 1940, na França invadida pelos nazistas. Deixou de herança sua paixão intelectual pela africanidade e pela latinidade que quase cem anos depois da primeira edição de Negerplastik, em 1915, o Brasil recupera. As honras a Einstein e ao seu achado arqueológico vêm, assim, de um país cuja “brasilidade”, como lembra madame Meffre, se alimenta de duas correntes construtivistas da arte e do pensamento do século XX marcadas pela intersecção: a modernidade e o primitivismo.

Por Raquel Wandelli / Jornalista na SeCArte/UFSC / (48) 9911-0524 / raquelwandelli@yahoo.com.br

Serviço:
Negerplastik/Escultura Negra
Autor: Carl Einstein
Tradução: Inês Araújo e Fernando Scheibe
Editora da UFSC, 302 páginas, ilustrado
Lançamento: Feira de Livros da Editora da UFSC/LEU (28 de agosto a 2 de setembro)
Local: Praça da Cidadania da UFSC
Preço de capa: de R$ 61,00 (por R$ 45,00 na Feira)

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