UFSC participa de pesquisa que resgata uso de alimentos nativos com propriedades farmacológicas

Manuscrito contém descrição de espécie nativa catalogada por grupo de pesquisa (Mémoires du Muséum d’Histoire Naturelle 9: 351. 1822)
Um manuscrito de 1816 traz grafada uma descrição, em francês, de uma erva facilmente reconhecida pelos brasileiros, especialmente no sul do país: “Árvore pequena. Suas folhas têm apenas um sabor herbáceo misturado com algum amargor. É amplamente utilizado como um chá”. O Ilex paraguariensis A.St.-Hil., o popular mate, foi descrito e catalogado pelo naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire, e reconhecido pela professora Juliana de Paula-Souza, do departamento de Botânica da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) para o estudo Bioactive Potential of Brazilian Plants Used as Food with Emphasis on Leaves and Roots, recentemente publicado no livro Local Food Plants of Brazil.
O trabalho, fruto de uma longa parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais em projeto coordenado pela professora Maria G. L. Brandão, recupera informações históricas sobre espécies vegetais nativas brasileiras, reunindo dados de manuscritos e documentos publicados desde os primeiros registros do século XVI até a década de 1950. O foco de interesse da publicação são as folhas e raízes de espécies com propriedades medicinais reconhecidas.
Segundo Juliana, o estudo traz essa ênfase nas plantas nativas e naturalizadas com longa tradição de uso em diferentes regiões e comunidades. O resgate bibliográfico de obras registra relatos históricos sobre como essas espécies foram popularizadas. “Os relatos dos naturalistas a partir do século XVI são um ponto de partida importantíssimo, pois trazem informações inclusive sobre o uso que os povos tradicionais faziam”, comenta a professora.

Ilex paraguariensis A.St.-Hil. var. paraguariensis In Sched, registro do herbário virtual A. de Saint-Hilaire
O grupo recuperou dados sobre estas espécies vegetais tradicionalmente utilizadas como alimento – todas, portanto, comestíveis. De nove autores selecionados que publicaram seus trabalhos do século XVI ao XX, chegou-se ao registro de 64 raízes e outros tipos de estruturas subterrâneas, 52 folhas, 3 flores e 2 brotos. “Embora alguns tenham sido estudados para identificar a bioatividade e avaliar sua composição, muitos nunca foram investigados, de modo que seu potencial permanece desconhecido”, indica o trabalho. Os dados contemplam quatro domínios fitogeográficos do Brasil.
Identificar os nomes das espécies e confrontá-las com o que se sabe no presente, do ponto de vista taxonômico, foi uma das etapas de pesquisa realizada pela professora da UFSC. Os nomes de espécies nos relatos, por serem antigos, muitas vezes trazem grafias e conceitos diferentes dos que são usados atualmente – ou mesmo uma descrição que pode gerar ambiguidades na interpretação. Por isso, o cruzamento de informações levou Juliana a uma espécie de investigação.
A mandioca, por exemplo, foi um desses casos. A pesquisadora comenta que, no trabalho Historia naturalis Brasiliae, de 1648, o mais conhecido dentre os mais antigos, foi necessário recorrer às ilustrações e aos nomes populares citados na obra para identificar as espécies e atualizá-las de acordo com a nomenclatura de hoje. “A Taxonomia como ciência não existia ainda naquela época”, comenta.
O estudo teve como base um banco de dados chamado Dataplamt, que tem informações sobre 3.400 espécies de plantas brasileiras com algum registro histórico de uso, incluindo nomes científicos, usos tradicionais, transcrições completas dos textos onde eles foram referidos no passado e locais de ocorrência da planta. No banco de dados, que pode ser acessado por qualquer um, é possível encontrar as espécies pelo nome popular ou científico, ver imagens, saber onde podem ser encontradas, seu uso tradicional e até mesmo sua toxicidade. No caso da mandioca, por exemplo, há registros de uso tradicional como antídoto de veneno de cobras e como fortificante.
No artigo recém publicado, as propriedades farmacológicas dos alimentos foram confrontadas com a literatura e também tabuladas. “Muitas dessas espécies já foram estudadas pela ciência e tiveram sua eficácia comprovada”, comenta Juliana, chamando atenção para o fato de que esses estudos são importantes também para que se saiba em que medida uma planta pode colaborar com um tratamento e em que medida pode até mesmo ser tóxica. O cormo (caule subterrâneo) de uma espécie de inhame, por exemplo, a Colocasia esculenta (L.) Schott, tem sua eficácia como imunomodulador e de prevenção a diabetes registradas pela literatura e evidenciadas no estudo, porém existem inúmeros casos de envenenamento pelo uso inadequado das folhas dessa mesma planta.
Preservação e diversidade
Os estudos a respeito das propriedades medicinais de alimentos da biodiversidade brasileira também têm outro foco importante além de indicarem a sua funcionalidade: alertar que as áreas cobertas por vegetação nativa diminuíram progressivamente desde a chegada dos colonizadores portugueses em 1500. “Ocorreram diferentes ciclos econômicos baseados na exploração da terra e dos recursos naturais, e a degradação dos recursos naturais e dos ecossistemas tem se agravado desde a intensa industrialização e urbanização implementada na década de 1950”, fundamentam as autoras.
Ainda, a conclusão sugere que estas plantas podem ter um grande potencial para uso como alimentos funcionais, apesar de a maioria ser desconhecida da população e da ciência. “A valorização da biodiversidade, por meio do uso sustentável de espécies subexploradas, é uma forma de reduzir a erosão da diversidade genética em regiões remotas”, indicam, no texto publicado. As plantas podem contribuir com a formulação de bioprodutos inovadores, com poder comercial. “Argumentamos que os incentivos para um melhor uso das espécies listadas neste estudo devem ser considerados e incluídos em programas agrícolas em todo o país”.
Além disso, Juliana lembra que a pesquisa demonstra como a diversidade das plantas na alimentação dos brasileiros é baixa. “Fazemos uso de mais ou menos trinta espécies na nossa alimentação e apenas oito são plantas nativas. É uma alimentação muito pobre, especialmente se pensarmos na diversidade de plantas que a gente tem e não aproveitamos”, salienta.
Amanda Miranda, jornalista da Agecom/UFSC