“Loteria!”: Pesquisador da UFSC localiza ave rara em campo; registro é o quinto do Brasil

08/12/2023 14:11

Fotos: Débora Malu Marquato

“Posso dizer que o registro dessa ave foi como ganhar na loteria” – com essas palavras, o pesquisador Mateus Ribas, doutorando em Farmácia na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) descreve o seu encontro com o papa-lagarta-de-bico-preto, o Coccyzus erythropthalmus, espécie migratória dificilmente encontrada no Brasil e ainda mais rara em Santa Catarina. Este é o quinto registro histórico da espécie para todo o país, o segundo para o sul e o primeiro para o Estado.

Mateus estuda o impacto de ações realizadas pelo homem no entorno da Lagoa da Conceição na saúde humana, animal e ambiental. Ele se deparou com a espécie durante trabalho de campo realizado no fim de novembro, logo após um período de fortes chuvas em Santa Catarina. A captura de aves silvestres é realizada para a coleta de material biológico, tema mais direto da pesquisa de Mateus.

O estudo ocorre no Parque Municipal Natural das Dunas da Lagoa da Conceição e também no Parque Estadual do Rio Vermelho, justamente para avaliar se atividades humanas próximas a Lagoa da Conceição podem afetar a microbiota desses animais. O projeto faz parte do Laboratório de Microbiologia Molecular Aplicada e é orientado pelas professoras Jussara Kasuko Palmeiro e Thaís Cristine Marques Sincero. A captura das aves é realizada em parceria com o Laboratório de Ornitologia e Bioacústica catarinense (laboac), coordenado pelo professor Guilherme Brito.

O papa-lagarta-de-bico-preto, segundo ele, é reconhecido por sua plumagem predominantemente marrom, com um ventre branco e uma listra vermelha ao redor dos olhos dos adultos. Apesar das raríssimas aparições no Brasil, não é um animal ameaçado. “Sua capacidade de se adaptar a diferentes ambientes e sua ampla distribuição contribuem para a sua relativa estabilidade populacional na América do Norte”, comenta.

A ave é migratória – ou seja, estava viajando quando foi encontrada por Mateus. O pesquisador comenta que uma equipe comandada pela pesquisadora Marina Somenzari em 2018 explicou que o animal realiza seu processo de nidificação no Canadá e nos Estados Unidos, passando o inverno na região noroeste e centro-oeste-central da América do Sul. “Até o momento, os escassos registros dessa espécie no Brasil foram categorizados como incidentais. Contudo, são necessárias mais pesquisas para esclarecer o padrão de migração dessa espécie no território brasileiro”, argumenta.

O trabalho de campo do pesquisador com a captura das aves durou um ano e é realizado por meio de quatro redes-de-neblinas instaladas na área escolhida. As redes são finas e feitas de material leve, como nylon. A captura de aves ou morcegos ocorre de forma temporária para fins de pesquisa. Segundo Mateus, as redes eram instaladas pouco antes da aurora e permaneciam ao longo de aproximadamente seis horas. A cada 15 ou 20 minutos as quatro redes eram checadas para verificar se alguma ave havia sido capturada.

Encontro inesperado

“Por volta das 9h da manhã, durante uma das últimas vistorias em rede-de-neblina, avistamos uma ave emaranhada nos bolsões da rede. De longe parecia um Sabiá-Poca, uma das aves mais comuns que capturávamos em campo. Quando íamos nos aproximando vimos que não era um sabiá, mas sim um Papa-Lagarta”, relembra o pesquisador.

Ele comenta que a equipe ficou muito feliz, pois os papa-lagartas são aves migratórias e por si só são raras para a Ilha de Santa Catarina. “Por algumas vezes, eu e o Dani Capella, membro da equipe de campo, tivemos conversas proféticas que em algum momento, um papa-lagarta cairia na rede. Claro que conversávamos sem imaginar que isso, de fato, poderia acontecer, eram apenas brincadeiras de campo”.

Após a captura, Mateus e os colegas de campo fizeram todos os procedimentos padrões para retirar o animal da rede-de-neblina. Com ajuda do professor Guilherme Brito e do biólogo Guilherme Willrich, a ave foi identificada como sendo um indivíduo jovem de Papa-lagarta-de-bico-preto.”Coletamos o material biológico da ave, o anilhamos e devolvemos a ave para a natureza para que pudesse seguir seu ciclo migratório”.

A ave foi a penúltima capturada em rede de neblina como parte do projeto e o coroou com chave de ouro. “Ao longo de todo este ano de estudo tivemos capturas bem interessantes nas dunas, como a captura do Tautó-Míudo (Accipter striatus) e da espécie migratória Guararacava-de-crista-branca (Elaenia chilensis), mas nada comparado com a captura do Papa-Lagarta-de-Bico-Preto. A cada ida a campo, eu e a equipe brincávamos – ‘Se preparem que hoje vai cair na rede-de-neblina uma ave rara’ – Mas isso foi acontecer somente nos 45 minutos do segundo tempo”, brinca.

Sentinelas em perigo

O título do estudo de Mateus é Impacto de ações antrópicas no entorno da Lagoa da Conceição sobre a saúde humana, animal e ambiental: Vigilância sentinela da disseminação de patógenos resistentes aos antimicrobianos e detecção de fármacos micropoluentes. Ele avalia bactérias resistentes aos antimicrobianos e micropoluentes na água e sedimento de diferentes pontos ao longo da Lagoa da Conceição.

 

 

O pesquisador explica que bactérias resistentes aos antimicrobianos costumavam ser encontradas apenas em ambientes hospitalares. “Com o avanço da urbanização, uso exagerado de antimicrobianos e vazamento de esgoto em ambientes naturais, hoje, estas bactérias acabam atingindo diversos ambientes, como a Lagoa da Conceição e seu entorno, os oceanos e aqueles que interagem com estes ambientes, sejam pessoas ou animais”.

A consequência disso, de acordo com ele, é que as bactérias resistentes podem colonizar a microbiota humana e animal. Em casos de infecções, o tratamento pode se tornar difícil, mais caro e letal. A ideia de estudar as aves surgiu porque são animais que interagem bastante com ambientes naturais e também com ambientes urbanos.

“As aves acabam se contaminando com bactérias de origem antrópica, e, devido a sua capacidade de voo e migração, no caso de aves migratórias, acabam levando estas bactérias para novas áreas e para novos hospedeiros. Por este motivo, estes animais são importantes sentinelas epidemiológicos da disseminação de bactérias resistentes aos antimicrobianos”, pontua.

A pesquisa, bem como todas as etapas do trabalho foram autorizadas pelo Sistema de Autorização e Informação em Biodiversidade (SISBIO), CEMAVE, Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina (IMA-SC), Fundação Municipal do Meio Ambiente de Florianópolis (FLORAM), e pela Comissão de Ética no Uso de Animais da UFSC.

No caso específico do papa-lagarta-de-bico-preto, Mateus explica que as análises microbiológicas não detectaram nenhuma bactéria resistente. O registro desta ave, contudo, poderá render novas informações sobre o padrão de migração da espécie. “Pelo fato desta ave ter sido anilhada, registros fotográficos e até mesmo novas capturas ao longo da migração deste indivíduo podem revelar novas informações sobre esta espécie tão interessante”.

 

Amanda Miranda, jornalista da Agecom/UFSC

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