Redbioética UNESCO: ‘crise global de valores que ameaça a sustentabilidade da vida’
Mais de 2.200 participantes de 25 países acompanham a décima edição do Congresso Internacional da Redbioética UNESCO, aberto na manhã desta terça-feira, 5 de novembro, no campus Trindade da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em Florianópolis. O evento, que segue até sexta-feira (7), foi precedido pelo lançamento oficial da Cátedra UNESCO de Bioética e Saúde Coletiva Giovanni Berlinguer, no dia 4 (segunda), e marcado pelos 20 anos da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos.
No discurso de abertura, o professor da UFSC Fernando Hellmann – presidente do Congresso – traçou um panorama contundente dos desafios contemporâneos, afirmando que vivemos “tempos desafiadores marcados por múltiplas crises humanitárias, crises sociais, ambientais, climáticas, crises políticas e de representatividade democrática”. Segundo o professor, essas crises são amplificadas pelo avanço tecnológico excludente, pelo uso indiscriminado da inteligência artificial e pelo colonialismo digital, além da transferência de funções essenciais do Estado e de organismos multilaterais para a iniciativa privada, que prioriza o lucro em detrimento do bem comum.
O resultado, segundo Hellmann, é “uma crise global de valores que ameaça a sustentabilidade da vida no e do planeta”. O professor destacou que as consequências dessa lógica recaem desproporcionalmente sobre os mais vulnerabilizados: migrantes, povos originários, indígenas, mulheres e pessoas racializadas.
Em tom crítico, Hellmann denunciou o enfraquecimento do sistema das Nações Unidas e do direito humanitário internacional. O sistema de direitos humanos da ONU, segundo ele, enfrenta escassez de recursos, déficit de pessoal e crise financeira, com falta de financiamento inclusive para a bioética na UNESCO. O professor mencionou o genocídio do povo palestino e o massacre no Sudão como exemplos evidentes da falta de mecanismos eficazes de responsabilização internacional.
A América Latina foi o foco central da reflexão do docente. Hellmann denunciou o que chamou de “capitalismo canibal que devora vidas, que destrói o meio ambiente e aprofunda a injustiça”. Ele destacou que a região concentra mais de 80% das mortes e desaparecimentos dos defensores ambientais e dos direitos territoriais em todo o mundo, classificando esse dado como “um retrato doloroso da violência contra quem protege a vida”.
A data da abertura do congresso coincide com os 10 anos do desastre ambiental de Mariana, em Minas Gerais, a maior tragédia ambiental da história do país. O professor Fernando lembrou que os rejeitos de mineração devastaram mais de 600 km de rios até chegar ao mar e que, até hoje, ninguém foi punido. Pior ainda, acrescentou que no ano passado a justiça absolveu as mineradoras envolvidas, incluindo a Samarco e a Vale.
O professor citou ainda outros exemplos de violações na região, como a contaminação por mercúrio na bacia do rio Atrato, na Colômbia, onde comunidades indígenas e afrodescendentes enfrentam riscos graves à saúde. Também mencionou o Furacão Melissa, que na semana passada atingiu o Caribe com força inédita, deixando mais de 40 mortos e cidades devastadas na Jamaica, Haiti e República Dominicana, caracterizando esses eventos como consequências diretas da inação global frente à crise climática.
A violência urbana também foi tema do discurso. Hellmann denunciou a operação policial no Rio de Janeiro que, na última semana, deixou mais de 120 mortos, incluindo moradores de comunidades e policiais. Para o professor, trata-se de “uma expressão brutal da necropolítica” e da “falência do Estado em proteger a própria população”.
No campo político, o professor criticou o que chamou de “nova doutrina Monroe” na América Latina, mencionando a situação do Haiti, da Venezuela e de Cuba. Sobre este último país, afirmou ser “inadmissível que Cuba, esse país que exporta médicos e solidariedade, seja tratado como nação terrorista, sofrendo embargo injusto que fere a dignidade de todo o povo”.
O pesquisador também alertou para o avanço de tendências autoritárias na região, mencionando a retirada da Nicarágua do Conselho de Direitos Humanos da ONU e o enfraquecimento da justiça internacional no Peru. Segundo ele, o neoliberalismo transforma direitos sociais conquistados em mercadorias e ataca as normas éticas da saúde pública, negando o direito universal à saúde ao não garantir acesso a medicamentos e vacinas como bens públicos.
Apesar do cenário crítico, o professor enfatizou que a América Latina é também “um continente de resistência e esperança”. Ele homenageou duas personalidades latino-americanas que faleceram em 2025: Pepe Mujica e Papa Francisco, afirmando que ambos “encarnaram na prática com coragem, justiça e humildade os valores da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos”.
O professor conclamou a plateia a não aceitar o mundo como está, afirmando que “as estruturas que exploram e expropriam não são naturais, não são inevitáveis e podem e devem ser transformadas”. A bioética latino-americana, “levanta-se para dizer basta: basta a indiferença, basta a desigualdade, basta a mercantilização da vida, basta a visão tecnocrática da bioética que esvazia sua dimensão política”.
O evento é realizado gratuitamente, com acesso presencial e online, em uma universidade pública, como forma de materializar o compromisso da rede com a “democratização do conhecimento e a amplificação dos discursos bioéticos para toda a sociedade”. Hellmann enfatizou que a bioética “não pode se limitar ao espaço acadêmico institucional, ela precisa envolver toda a sociedade e ser ativa”.
O congresso agrega mais de 70 palestrantes, 40 monitores, 35 pareceristas, mais de 40 moderadores e 342 trabalhos submetidos para apresentação. O evento tem apoio de instituições como CAPES, CNPq, o Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da UFSC e financiamento do Ministério da Saúde.
Ao encerrar sua fala, Hellmann expressou a esperança de que o congresso seja “um sopro de esperança, um marco na construção e na reafirmação de uma bioética crítica, plural e transformadora que inspire cada um de nós a contribuir para a criação de um futuro mais justo, mais inclusivo, mais solidário e mais sustentável”. Os números do evento, segundo o professor, são “uma prova de que a bioética latino-americana está pulsante e profundamente comprometida com a vida, com a justiça e a dignidade humana”.
Na abertura do congresso estavam presentes o reitor da UFSC, Irineu Manoel de Souza, e a vice-reitora, Joana Célia dos Passos. O reitor, acompanhado da presidenta da Redbioética UNESCO para a América Latina e o Caribe, Constanza Ovalle, dos docentes Marta Verdi, Sandra Caponi, Fernando Hellman, e do representante da Presidência da República, Swedenberger do Nascimento Barbosa, falaram ao público participante.
Irineu caracterizou o congresso como “um espaço de encontro para a pluralidade dos saberes sobre a ética e os direitos humanos”, ajudando a construir uma ética prática que reconheça o passado e enfrente desafios presentes e futuros, promovendo os direitos humanos e a sustentabilidade do planeta. Para o gestor da Universidade, o evento reafirma o compromisso de democratizar o conhecimento e ampliar o alcance das discussões bioéticas, de modo a promover “a construção coletiva de alternativas éticas para um futuro mais justo e solidário para a nossa sociedade”.
O reitor destacou o papel da UFSC no cenário nacional e internacional, afirmando que a instituição “é o que está na razão desses eventos, desses acontecimentos, dessa pluralidade de ideias que realmente fazem com que a nossa universidade seja reconhecida como a melhor universidade do estado de Santa Catarina, a quarta melhor universidade do Brasil entre as federais e uma universidade bem destacada na América Latina e no mundo”.
Irineu ainda lembrou os desafios, ressaltando que, apesar de “todas as dificuldades orçamentárias, é possível realizar eventos e avançar e manter a importância da universidade pública para o nosso país”. Enfatizou que é na universidade pública que se forma os melhores quadros e se produz ciência e tecnologia para o desenvolvimento sustentável. Ao encerrar, parabenizou os organizadores, reafirmando a consciência da UFSC sobre sua relevância em debates dessa natureza.
Entre os destaques da programação, no último dia (7), será realizada a Conferência Plenária 4, intitulada “Educação para a Igualdade Racial e Desafios de uma Bioética Antirracista”, ministrada pela vice-reitora da UFSC, Joana Célia dos Passos, que também coordena a Cátedra Antonieta de Barros: Educação para a Igualdade Racial e Combate ao Racismo.
Lançamento da Cátedra Giovanni Berlinguer
No pré-congresso, dia 4, foi oficialmente lançada a Cátedra Giovanni Berlinguer de Bioética e Saúde Coletiva. A iniciativa, aprovada em 2025, resulta da colaboração entre o Núcleo de Pesquisa e Extensão em Bioética e Saúde Coletiva (NUPEBISC), o Núcleo de Estudos em Sociologia, Filosofia e História das Ciências da Saúde (NESFHIS), ambos da UFSC, e o Programa de Cátedras e a Rede UNITWIN (University Twinning and Networking Scheme) da UNESCO.
A Cátedra homenageia o médico e bioeticista italiano Giovanni Berlinguer (1924–2015), referência na defesa da saúde pública e na consolidação do sistema público de saúde na Itália. Sua atuação foi decisiva para a Reforma Sanitária Brasileira, que inspirou a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), consagrado na Constituição de 1988. O espaço nasce com vocação interdisciplinar, voltado à produção de conhecimento crítico sobre racismo estrutural, desigualdades no acesso à saúde e desafios éticos contemporâneos.
Participaram do lançamento a vice-reitora da UFSC, Joana Célia dos Passos, a presidenta da Redbioética UNESCO para a América Latina e o Caribe, Constanza Ovalle, e os docentes Marta Verdi, Sandra Caponi, Fernando Hellman e Mirelle Finkler.
Durante sua fala, a vice-reitora Joana defendeu articular a produção acadêmica, o ativismo militante e a formulação de políticas públicas para enfrentar desigualdades e violências contemporâneas. Ao parabenizar a criação da Cátedra e sua chancela, destacou que ao desenvolver o trabalho em rede significa não estar sozinho “quando se trata das questões que afligem a humanidade”. Na análise do contexto brasileiro, apontou a intensificação de um Estado armado e de desigualdades fortalecidas pelo modelo capitalista, criticando a recente operação no Rio de Janeiro, que deveria ter sido “uma megaoperação de saúde, de educação, de cultura, de lazer, de arte, mas foi uma megaoperação da morte”, associando o tema à necropolítica.
A vice-reitora afirmou que o papel da universidade avança com “a disposição de unir a academia, a universidade, a ciência, com o ativismo militante e com a formulação da política pública”. Valorizou as diretrizes históricas dos grupos de pesquisa da cátedra, desejou vida longa à iniciativa e reforçou a UFSC como espaço para consolidar redes internacionais e nacionais. Enfatizou a perspectiva latino-americana como fundamento estratégico, pois “mais do que nunca, esse fortalecimento faz a diferença e é fundamental para as tantas lutas”, em um território ainda marcado por heranças coloniais que desabilitam redes de resistência e aprendizagem coletiva.
Em sua fala também destacou princípios que nascem da vida cotidiana e dos territórios, com centralidade da saúde coletiva – área em que o Brasil é “um país pioneiro”. Apontou resultados já concretos, com mais de 200 pessoas formadas em bioética, “um antecedente fundamental” que revela seriedade e “um grupo que tem uma força própria”. Ao encerrar, Joana afirmou que os conflitos também são oportunidades de aprendizagem e disse estar segura de que cada participante tem “um espírito de futuro e esperança”, convidando à fraternidade, ao entendimento coletivo e aos debates do Congresso de Bioética.
Mais informações no site do evento: xcongressoredbioetica.com.br
Rosiani Bion de Almeida | Divisão de Imprensa do GR
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Fotos: Luz Mariana Blet































