Relatório da UFSC e Udesc sobre violência policial em Florianópolis revela medo em comunidades

02/10/2025 09:30

“Deixa sua mente com medo”, afirmou uma moradora. Foto: Maria Isabel Miranda/Zero/UFSC

“O Estado só vem aqui para matar. Tenho medo de não estar em casa e eles virem, e de estar em casa e eles virem”. A fala é de um morador que participou de um estudo do Instituto Memória e Direitos Humanos da Universidade Federal de Santa Catarina (IMDH/UFSC) e da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc). O depoimento integra o relatório Representações da Violência Policial: rodas de conversa com comunidades e profissionais de Florianópolis, publicado em junho. 

Foram ouvidas 115 pessoas em 13 rodas de conversa conduzidas entre 2021 e 2024 com comunidades da Grande Florianópolis, organizações da sociedade civil, membros da Defensoria Pública do Estado de Santa Catarina e do Ministério Público de Santa Catarina. As conversas foram mediadas por professoras e estudantes da UFSC e da Udesc, que propuseram um ambiente de escuta para os moradores das comunidades. Com poucos dados à disposição, o objetivo do grupo era ouvir. 

“Quando a gente pensa nesse cenário de pesquisa de violência policial em Santa Catarina, infelizmente, a gente ainda tem um campo um pouco vazio, que a gente [no IMDH] tem construído dia após dia”, explica Jo Klinkerfus, doutoranda em Antropologia pela UFSC e coautora do relatório. A ausência de dados públicos levou as pesquisadoras a buscarem uma metodologia menos quantitativa e mais qualitativa para o trabalho. 

Foto: Divugação/Facebook Vale das Palmeiras

Inspirado pela metodologia da Rede de Observatórios da Segurança, formada por instituições acadêmicas e da sociedade civil, o Grupo de Trabalho do IMDH realizou a primeira roda de conversa em novembro de 2021, na Comunidade Vale das Palmeiras, em São José, com 30 participantes. 

A constatação das pesquisadoras é de que a presença do Estado nas comunidades é marcada pela violência. “O Estado é praticamente ausente em termos de política pública, em termos de promoção de bem-estar, lazer, cultura, mas é muito presente com relação às forças policiais”, explica Clarissa Dri, professora da UFSC e integrante do IMDH. 

“A gente queria entender, hoje em dia, como que o Estado brasileiro atua com relação aos seus próprios cidadãos. Nos reunimos no Grupo de Trabalho Observatório de Direitos Humanos para tentar entender como o Estado atua em comunidades periféricas, em comunidades vulneráveis.” O objetivo era analisar se, em relação à Ditadura Civil-Militar, o Brasil havia avançado ou não em termos de defesa dos direitos humanos. 

“Se eu sofro um ataque de um agente de Estado, para quem eu vou denunciar? Quem vai me proteger disso? Então, nesse sentido, é muito parecido com a violência de Estado da ditadura militar, em que as pessoas eram presas, encarceradas, ficavam incomunicáveis. É gravíssimo”, aponta a professora. 

Herança de violência

O IMDH foi oficialmente criado na UFSC em março de 2020, como forma de dar continuidade ao trabalho de preservação da memória e defesa dos direitos humanos realizado pela Comissão de Memória e Verdade (CMV) da Universidade. Em 2012, foi firmado o Acordo de Cooperação Técnica 2021/0057 entre UFSC e Udesc para permitir e incentivar o desenvolvimento de atividades de ensino, pesquisa e extensão, no âmbito do instituto.

Relatório aborda institucionalização da violência (Imagem de Jan Marcus Trapp por Pixabay)

A institucionalização da violência perdura e impede que a problemática seja combatida com denúncias. “A partir desta discussão, foi perguntado se a população costuma fazer denúncias desses casos e, caso não fizesse, quais seriam os motivos para isso. Os participantes explicitaram que a população muitas vezes não sabe como denunciar e, mesmo nos casos em que as pessoas sabem como, elas teriam medo, já que as delegacias estariam cheias dos mesmos policiais agressores, enquanto os prédios públicos não vinculados às corporações policiais seriam vigiados por guardas municipais, muitas vezes também agressores”. 

Durante uma das rodas, houve uma batida policial, que impossibilitou o trabalho das pesquisadoras no dia. “Nós ficamos mais de uma hora e meia esperando na associação [de moradores], chegaram duas ou três pessoas e trouxeram esse relato para a gente: ‘As mães estão tentando sair de casa e não conseguem porque a rua está trancada. Em uma casa, um policial tinha invadido naquele exato momento e ela [uma das mães] ficou preocupada e não quis sair’”, conta Clarissa.

Além da violência física, há o preconceito. “O maior problema é a rejeição de fora, as pessoas olham para nós como pessoas que não trabalham, que usam drogas, sendo que a maioria aqui trabalha”, defendeu um morador. “A visão que têm nossa é como se fôssemos bandidos, vagabundos (…) mas estamos aqui para lutar por moradia. Eles marginalizam, tratam como se fôssemos marginais.” O estigma dificulta a busca por emprego, problema também exposto no relatório.

A circulação no espaço público fica comprometida. “Um morador de uma das comunidades contou que estava saindo de casa para ir prestar o vestibular da UFSC, mas foi proibido de descer o morro pela polícia devido a uma operação de perícia. Ele relata que, mesmo mostrando o comprovante de inscrição da prova, foi impedido de sair e complementa dizendo que as abordagens policiais costumam ser sempre exageradas, e que a polícia não os enxerga como cidadãos”, apresenta o documento.

Ouvir

Narradas nas sedes das associações de moradores de cada comunidade, as dezenas de histórias convergem no sentimento de medo causado pelas polícias. Entretanto, para saber como perguntar e ouvir, a equipe entrou em contato com psicanalistas que fizeram parte do projeto Clínicas do Testemunho, vinculado à Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, que fez um trabalho de escuta de ex-presos políticos durante a Ditadura Civil-Militar. 

Em reuniões quinzenais, as pesquisadoras fizeram uma capacitação durante seis meses. “A gente ia se dirigir até a comunidade, e a comunidade espera respostas do Estado. Mas nós não somos a parte do Estado capacitada a trazer essas respostas. Então, o que que a gente ia fazer lá? A gente ia ouvir”, explica a professora Clarissa. 

Com as docentes, também trabalharam estudantes bolsistas e voluntários. Devido à duração do trabalho — com rodas de conversa de 2021 a 2024 —, houve rotatividade. A doutoranda Jo, no entanto, começou no projeto como bolsista de Iniciação Científica, na graduação, e permanece pesquisando o tema na pós-graduação. 

Ela e outros estudantes transcreveram os relatos trazidos pelos moradores, já que nenhum dos encontros foi gravado para assegurar o anonimato e a segurança da população. 

A colaboração do Desterro – Observatório de Violência em Florianópolis também é enfatizada. O jornal foi fundado por Gabriele Oliveira e Rodrigo Barbosa, formados em Jornalismo pela UFSC, e publica reportagens que retratam a violência policial nas comunidades da capital. 

Futuro

A versão inicial do relatório — antes da participação da Defensoria Pública, do Ministério Público e das organizações da sociedade civil — foi apresentada em 2023. Para 2026, o grupo planeja reuniões com lideranças políticas e institucionais para discussão da situação apresentada no documento final. 

O grupo também planeja expandir a pesquisa para todo o estado de Santa Catarina e continua buscando diálogo com a Polícia Militar e Guarda Civil. “Nesse sentido, é fundamental o controle externo das atividades policiais por parte do Ministério Público, em conformidade com o art. 129 da Constituição Federal, sem delegação desse controle à própria corporação policial. Também é essencial que a formação dos futuros policiais inclua debates e cursos qualificados sobre cidadania, racismo e proteção dos direitos humanos”, conclui o relatório.

Malena Lima agecom@contato.ufsc.br
Estagiária da Agecom | UFSC

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