“Trote é para brincar, não para maltratar” é tema de cartilha

23/02/2011 16:52

Capa da cartilha foi feita por Charles Fernandes, aluno do Ensino Médio e bolsista do Pibic

A musiquinha é velha e a tradição de cantá-la se perpetua de um semestre a outro, de um ano a outro, há pelo menos uma década. A letra rima frases em que se alardeiam a dificuldade em conseguir boas notas, a bebedeira recorrente e o alto índice de “mulheres feias” nos cursos de engenharia. Comum é ver calouros, a cada semestre, sendo incitados a cantá-la pelos veteranos no campus da UFSC e redondezas e encontrar dentre eles as novas alunas participando também do ritual que entoa sua suposta feiúra. Lá vão eles: passam na frente do Restaurante Universitário, do Básico, do próprio Centro Tecnológico e os graves gritos de guerra contêm as notas agudas tão características das vozes femininas; todos os novatos são a atração do horário do almoço, e as futuras engenheiras bradam aos quatro ventos que são feias por tabela.

Quem defende o trote sujo sempre alega que “participa quem quer”. Mas é sabido que a “adesão espontânea” não é tão espontânea assim. “Todos os calouros querem se integrar. Há a ideia de que quem não passa pelo ritual do trote pode ficar marcado durante todo o curso”, explica a professora Miriam Pilar Grossi, coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) e do Núcleo de Identidades de Gênero e Subjetividades (NIGS) da UFSC. “Muitas vezes as mulheres concordam em participar de uma atividade que, no início, não é violenta, mas depois se transforma e então desistir é mais difícil”, completa.

Neste semestre, no entanto, calouros e veteranos terão novos argumentos para discutir a respeito das atividades de recepção dos novatos. Com o lema “trote é para brincar, não para maltratar”, a Cartilha de prevenção às violências sexistas, homofóbicas e racistas nos trotes universitários será lançada no primeiro dia de aula, 14/03, no Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFH), às 18h30.

Muitas mãos em favor da diversidade

A publicação foi concebida pelo NIGS – cerca de vinte alunos de graduação, mestrado e doutorado participaram da confecção -, contando com a colaboração de estudantes do segundo ano do Ensino Médio das escolas Jurema Cavalazzi (do bairro José Mendes, da Capital, onde estuda Charles Fernandes, criador da capa) e Idelfonso Linhares (Aeroporto), que tomaram parte da atividade através do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (Pibic) do CNPq voltado ao Ensino Médio, numa iniciativa pioneira em convênio com a UFSC.

O principal objetivo, de acordo com Miriam, é alertar os alunos sobre a realização de trotes violentos, preconceituosos e discriminatórios. “Geralmente as palavras de ordem envolvem piadas contra o homossexualismo, tratando as diferenças de forma negativa. Entendemos que uma universidade – principalmente pública – deve incitar a cidadania, ressaltando o respeito à diversidade”, justifica a professora.

Ilustrações e textos didáticos incentivam o trote solidário e as confraternizações em detrimento das atividades consideradas sexistas, racistas ou homofóbicas, vexatórias, violentas e humilhantes. A participação obrigatória em qualquer dessas brincadeiras também é condenada pela cartilha.

Conceituando e cercando o preconceito

O documento traz ainda conceitos sobre sexismo, racismo e homofobia, e contatos úteis àqueles que se sentirem violentados ou constrangidos, seja dentro da própria UFSC, como os da Ouvidoria e da Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis (PRAE), seja de organizações não-governamentais que atuam na defesa de direitos humanos ou órgãos do governo para os quais tais situações podem ser denunciadas.

A reunião dessas informações teve como ponto de partida pesquisa de campo realizada pela professora Miriam e seus alunos durante vários anos. “Obtivemos excelentes relatórios de observação. Os veteranos de hoje foram calouros ontem, e o histórico de humilhações vai se reproduzindo, já que, como passaram por aquela situação vexatória, desejam que outras pessoas vivenciem experiências semelhantes”.

Os argumentos da publicação estão amparados pela Lei Estadual nº 15.431/2010, que entrou em vigor em dezembro último e proíbe a realização de trotes nos estabelecimentos de ensino públicos e privados. Para essa lei, são considerados trotes condutas e práticas que ofendam, constranjam e exponham de forma vexatória os alunos. Ficam proibidas ainda as doações de bens e as tradicionais arrecadações de dinheiro que seguidamente acontecem nas sinaleiras no entorno da UFSC.

Barulho contra a humilhação

Junto com a cartilha, veteranos e calouros receberão um apito. O objeto tem dupla função; a simbólica – lembrar a forma como os movimentos feministas acusavam as situações de violência e solicitavam ajuda -, e a prática – incentivar os alunos a denunciar as atividades humilhantes realizadas durante os trotes.

A confecção da cartilha contou com o apoio de diversas instâncias da UFSC: Instituto de Estudos de Gênero (IEG), Laboratório de Estudos das Violências (Levis), Núcleo de Pesquisa Modos de Vida, Família e Relações de Gênero (Margens), o Núcleo de Estudos em Serviço Social e Relações de Gênero (Nusserge), o Coletivo LGBT da UFSC (Gozze), Laboratório de Estudos de Gênero e História (LEGH), Revista Estudos Feministas, Grupo de Ação Feminista (GAFe) e Agência de Comunicação (Agecom). Trata-se também de atividade apoiada pelo CNPq, por meio de projetos de pesquisa e de atividades de bolsistas de doutorado, mestrado, de graduação e de alunos do Ensino Médio da Grande Florianópolis que participam do projeto pioneiro de bolsas PIBIC de Ensino Médio na UFSC.

Mais informações: Profa. Miriam Pillar Grossi | miriamgrossi@gmail.com | Fone: 3721-9714, ramal 5
Mestranda Fernanda Moraes (PPGAS/UFSC) | fermoraesazeredo@gmail.com | Fone: 9900-1322
Doutorando Felipe Fernandes (DICH/UFSC) | complex.lipe@gmail.com | Fone: 3304-7564

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