Saudação a José Saramago

18/06/2010 19:53

Saramago foi nomeado Doutor Honoris Causa em 1999

Saramago foi nomeado Doutor Honoris Causa em 1999

“Eu nunca separo o escritor que sou do homem que sou, e até diria do cidadão que sou.”

A Universidade Federal de Santa Catarina concedeu ao escritor português José Saramago, em 18/08/1999, o título de Doutor Honoris Causa. A concessão desse título representou uma singular oportunidade de render justo e merecido tributo ao primeiro escritor da língua portuguesa agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura. Embora, como muito bem afirmou o escritor moçambicano Mia Couto, “antes deste Prêmio Nobel, já tínhamos recebido um prêmio maior, que era ter na nossa família um escritor do tamanho de Saramago”, e a família a que se referia era, obviamente, a grande família da língua portuguesa.

Saramago destaca-se na literatura ocidental como divulgador do moderno romance português aos mais diversos públicos, projetando a cultura de língua portuguesa para muito além das fronteiras de seu país. A inclusão de um autor de língua portuguesa entre os contemplados com o mais importante e prestigiado prêmio literário do mundo torna a língua portuguesa “mais visível” e “mais audível”, diz o autor de Memorial do convento, servindo, ao mesmo tempo, à “defesa e difusão” das culturas de língua portuguesa.

Por ocasião de sua morte, assim como o fizemos na homenagem prestada pela UFSC, relembramos alguns episódios da vida de Saramago e retomamos alguns tópicos do conjunto de sua obra, especialmente os romances, cujos personagens são sempre os excentrados da História, dominados e explorados.

José Saramago é de origem camponesa. Por falta de dinheiro, não chega a completar o curso ginasial, ou “liceal”, na expressão portuguesa. Até os 44 anos, sua vida tem pouca relação com a literatura. Foi serralheiro, desenhista, funcionário de saúde pública e depois editor. “Eu não me preparei para ser escritor. Sou escritor por acaso”, afirma Saramago. Ele gosta de lembrar que, até os 20 anos, não possuía nenhum livro. Tudo que lia tomava emprestado de bibliotecas públicas. Nessa época, ensaia sua estreia na literatura com o romance Terra de pecado, publicado em 1947. O livro não obteve sucesso, deixando em Saramago a impressão de que tinha pouca coisa a dizer e, então, fica em silêncio por quase vinte anos. Volta à cena literária em 1966 com uma coletânea de versos, Os poemas possíveis. Nessa época, por trabalhar numa editora, passa a estar mais próximo do mundo literário e a colaborar com jornais, quando, além de três livros de poesia, publica muitas crônicas e alguns ensaios políticos.

A partir de 1975, ocorre a grande viragem na vida de José Saramago. Aos 53 anos, é o diretor-adjunto do jornal Diário de Notícias, posto que teve de abandonar por imposição dos contra-revolucionários ao movimento que derrubara a ditadura salazarista um ano antes.

Saramago decide então fomentar o talento que o transformaria no mais popular romancista de seu país. Costuma dizer: “foi em 1980 que eu me tornei um escritor de verdade. […] Eu sou um escritor da nova geração.” Supondo-se que se começa a publicar com 20, 23 anos, “literariamente, então, eu tenho 45 anos. Sou um menino.” Assim, se do imaginário Livro das evidências citou o aforismo “Conheces o nome que te deram, não conheces o nome que tens”; se do Livro dos conselhos, também imaginário, citou: “Enquanto não alcançares a verdade, não poderás corrigi-la. Porém, se a não corrigires, não a alcançarás. Entretanto, não te resignes.”; a epígrafe do Livro das tentações, que poderá vir a ser escrito, imagina o escritor, será: “Deixa-te levar pelo menino que foste”.

Cabe explicar aqui as razões pelas quais Saramago torna-se um escritor de verdade em 1980, uma vez que antes já escrevera romances, poesia, crônicas, contos e teatro. Diz Saramago: “O tema que eu tinha estava claríssimo, era um romance neo-realista. […] Eu tinha uma história para contar, a história dessa gente, de três gerações de uma família de camponeses do Alentejo, com tudo: a fome, o desemprego, o latifúndio, a polícia, a igreja, tudo. Mas me faltava alguma coisa, me faltava saber como contar isso. […] Tinha o que contar, mas não sabia como.” Inicia a escritura, finalmente; o romance era “normalzinho”, mas isso não satisfazia o autor. O resultado não era bom. Deixa-se, então, envolver pela fala da gente com quem estivera nos últimos três anos. Deixa-se envolver pela oralidade e começa a escrever como todos os seus leitores já sabem: sem pontuação, ouvindo as vozes soarem dentro da cabeça. Levantado do chão passa a ser, então, o romance que marca essa passagem da escrita de Saramago, tanto em sentido temporal, quanto estilístico e de gênero. Sobre o título, fala o autor: “Do chão sabemos que se levantam as searas e as árvores, levantam-se os animais que correm os campos ou voam por cima deles, levantam-se os homens e as suas esperanças. Também do chão pode levantar-se um livro como uma espiga de trigo ou uma flor brava. Ou uma ave. Ou uma bandeira.” O romance é a saga de Domingos Mau-Tempo e de seus descendentes, percorrendo a história de Portugal no século XX até a Revolução dos Cravos, em 25 de abril de 1974.

Memorial do convento, publicado em 1982, fez de Saramago uma celebridade e consolida seu estilo inconfundível. É um texto multifacetado e plurisignificativo em que, a pretexto de narrar a construção de um convento na cidade de Mafra, durante o reinado de Dom João V, Saramago compõe uma epopéia da gente portuguesa. A história é recheada de traições na corte e dos trabalhos infindáveis do povo, gente como o soldado Baltazar Mateus, o Sete-Sóis, e Blimunda, a Sete-Luas. Um retrato a um só tempo satírico e pungente da alma lusitana.

Nos romances de Saramago, os nexos textuais entre ficção e história são constantes. Por exemplo, em O ano da morte de Ricardo Reis, publicado em 1984, “procede-se a um périplo revelador dos lugares de certa melancolia coletiva, mesmo quando interceptada pelos rituais do Estado Novo, e à deambulação interior de uma personalidade que, a partir do célebre heterônimo pessoano, cruza, num segmento de meses, a atmosfera política do País.” (Gerana Damulakis, A Tarde, 05-12-98). A frase “ Aqui o mar acaba e a terra principia”, que abre a narrativa, significa o fim do caminho que levou Ricardo Reis do Rio a Lisboa. E a paródia “Aqui, onde o mar se acabou e a terra espera” fecha o texto, enriquecida pela carga semântica de mais de quatrocentas páginas. É evidente a intertextualidade com o verso épico de Camões: “Onde a terra se acaba e o mar começa.” Vê-se com clareza que o romance transita por uma das linhas mestras da narrativa portuguesa contemporânea: a busca de uma nova identidade para um país órfão de sua História de portugueses marinheiros. Trazendo Ricardo Reis para Portugal, precisamente um mês após a morte de Fernando Pessoa, o autor constrói a metáfora de Portugal regressando a si mesmo.

Em A Jangada de Pedra, o escritor usa uma imagem fantástica. Uma série de acontecimentos sobrenaturais culmina com a separação da Península Ibérica, que se desprende do continente europeu, começa a vagar no Atlântico, rumo ao sul, ou seja, identificando-se com o novo mundo. Saramago reflete sobre a política de unificação européia e os dilemas da identidade nacional. A utopia é descentrar o eixo Norte-Norte, arrogante e dominador, ligando a Península Ibérica à América do Sul e à África, promovendo a fraternidade dos dominados, núcleo de sua obra ficcional.

Em Saramago é saliente a vinculação de seus textos à História, não com o intuito de reconstruí-la, mas reinventá-la, interrogando o passado para esclarecer o presente. Ao trabalhar uma outra História possível, não de Portugal, mas dos portugueses, o escritor é a voz dos que estão sem voz. Em História do cerco de Lisboa, a intenção é dialogar com a História, destacando-se a visão irônica do narrador, hábil em confundir e em dissimular, e a intenção desestabilizadora: “cada um de nós cerca o outro e é cercado por ele”. O acréscimo de um não à frase “Os cruzados auxiliarão os portugueses a tomar Lisboa” altera a História sem que o romance perca a sua referencialidade, e por esse fato é todo o passado que é alterado em função do presente que lhe confere outra ordem. A opção de Saramago é tomar a História como sujeito – para, depois, retirar esse sujeito do seu palco natural, consagrado, para dar-lhe outro sentido, uma nova ordem. O autor vê assim seu livro: “Em sentido amplo, embora a afirmação possa parecer algo pretensiosa, a História do cerco de Lisboa é um livro contra os dogmas, isto é, contra qualquer propósito de arvorar em definitivo e de modo inquestionável o que precisamente sempre definiu o que chamamos condição humana: a transitoriedade e a relatividade.”

Saramago, que escreve romances de rupturas com vários cânones e publica livros de nosso desassossego, consegue ser ainda mais polêmico ao abordar temas religiosos. O evangelho segundo Jesus Cristo, em que humaniza o Cristo, quase lhe valeu a “excomunhão”. Na época do lançamento, tem sua participação em um concurso vetada pelas autoridades portuguesas. O romance sobre a vida de Jesus encerra reflexões sobre grandes questões da tradição ocidental. Deus e o Diabo negociam sobre o mal, e Jesus Cristo contesta seu papel e desafia Deus. Nessa obra, o autor retoma o Cristo dos Evangelhos Canônicos e o Cristo banido dos Evangelhos Apócrifos. Tem-se o Cristo Histórico, o que nasceu, viveu e morreu na Palestina, num determinado período histórico, retomado em suas lacunas e construído na confluência de vários textos.

Sem repetir, mas repetindo-se – “Bem vistas as coisas, sou só a memória que tenho, e essa é a história que conto” – Saramago faz nascer em Ensaio sobre a Cegueira um mundo em que a própria realidade física, em seu aspecto visível, desaparece, mantendo-se os objetos e sua ordem como signos. “Por que, sendo nós seres dotados de razão, nos comportamos de maneira tão irracional?”, pergunta. A resposta é um alerta: “a dignidade do ser humano é todos os dias insultada pelos poderosos do mundo”. Mas “o livro é apenas uma pálida imagem de nossa realidade. A verdade é que o instinto dos animais defende melhor a vida do que a nossa razão, que, pelo contrário, tem servido para dominar, humilhar, explorar o outro. É evidente que o mundo é violento, não há nada a fazer. Mas nós acrescentamos à violência a crueldade, que é uma invenção humana.” Em Ensaio sobre a cegueira, o leitor não encontra nomes, mas sim o primeiro cego, a rapariga de óculos escuros, o velho da venda preta, o médico oftalmologista, a mulher do médico, ou aquela que não se sabe quem seja – todos anônimos. Todos os habitantes de uma cidade perdem a capacidade de enxergar, exceto a mulher do médico. Assume, então, o papel de líder político em meio ao caos das trevas. É a voz da resistência às diversas formas de opressão que se instalam na civilização dominada pela cegueira.

Interrogando-se sobre a relação do homem com o mundo, Saramago penetra no ambiente fechado e totalitário do Registro Civil, onde a presença ou a ausência de um nome (e de sua rasura) podem fazer desaparecer o Sujeito. Apesar do título, o romance Todos os nomes tem apenas um personagem com nome, um nome comum: José. José coleciona recortes de jornal sobre pessoas famosas, mas as notícias não são precisas e ele decide checá-las em labirínticos arquivos. José, ou todos os homens, tem manias e imensa carência. Todos os nomes é “a mais simples de todas as histórias”, “a que contém todos os nomes”, “dos vivos e dos mortos”.

Os livros de Saramago estão por toda parte, como “uma galáxia pulsante, e as palavras, dentro deles, são outra poeira cósmica flutuando, à espera do olhar que as irá fixar num sentido, ou nelas procurará o sentido novo” (História do cerco de Lisboa, p. 26). A escrita de Saramago, dotada de notável capacidade especular, seduz e estabelece dialogias e oposições. Ela harmoniza a elaboração formal com a prática digressiva da oralidade. Sobre Saramago, afirma José Manuel Mendes: “Ao abandonar regras de pontuação e investir em prosódica inconfundível, não se dissocia de projetos cujas implicações tangem uma corda profunda: fundir crônica, poesia, estratégia dramática e narração num plasma novo, fluido, que desafia hermeneutas e teóricos; lavrar o sobrenatural, o maravilhoso, o enigmático, como se, de fato, fossem ainda a margem tumultuária de nossa identidade e não sobretudo “a noite e o nevoeiro” com que, deslumbrados ou, em pânico, nos confrontamos. […] Desta maneira, intermediando o que mantemos secreto, inquirições, alegrias, potencialidades, clamores, agindo por dentro dos problemas individuais e coletivos, José Saramago desvenda o íntimo da condição humana e empreende, contra as leis do transitório, uma obra suprema.”

Tomando emprestadas as palavras do narrador de História do cerco de Lisboa, pode-se então afirmar: “Só não se acabou ainda de averiguar-se se é o romance que impede o homem de esquecer-se, ou se é a impossibilidade de esquecimento que o leva a escrever romances”.

Prof. Felício Wessling Margotti

Professor de Língua Portuguesa e Linguística da UFSC

Foto: Jones Bastos

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