Editora da UFSC publica obra inédita de Mallarmé no Brasil

02/06/2010 13:00

Ele representa para a literatura moderna e contemporânea o que Cézanne representa para a pintura. A obra do francês Stéphane Mallarmé marcou as artes e o pensamento vanguardista do século XX, a ponto de Michel Foucault dizer que esse “pequeno professor de inglês”, nascido em 1842, iniciou a literatura propriamente dita.

´Divagações`, o livro de ensaios com a exposição mais completa e radical do seu pensamento e o único realmente organizado por Mallarmé, reúne uma preciosa coleção de textos de classificação indefinível que são um enigma de tão profundos e belos. E é essa obra emblemática e monumental, pela primeira vez traduzida para o português e publicada no Brasil graças ao desafio hercúleo de Fernando Scheibe, que a Editora da UFSC, agora sob a direção de Sérgio Medeiros, escolheu para ser o carro-chefe de sua nova política gráfica e editorial com a qual pretende alcançar um padrão de excelência nacional e internacional.

Fruto de uma pesquisa de seis anos de pós-doutoramento de Scheibe na Faculdade de Educação da Unicamp, sob a supervisão do professor Joaquim Brasil Fontes e bolsa da Fapesp, a tradução permite que se revisitem hoje as ideias e as posições estéticas de Mallarmé. Autor considerado um divisor de águas entre a literatura romântica e moderna, o poeta-inventor é, no entanto, tradicionalmente refém de alusões genéricas ou fetichizadas. Em sua apresentação, o tradutor dialoga com a apresentação do autor no original: “Publicado na França em 1897, pouco tempo antes da morte do poeta, ´Divagações` reúne textos ´em prosa´ escritos por Mallarmé ao longo de toda sua vida.

(…) Embora seja uma grande bricolagem, um grande pasearse aqui e acolá ao longo de mais de trinta anos, “as Divagações aparentes tratam um tema, de pensamento único”. Qual?”, pergunta Scheibe. E ele mesmo responde: “As possibilidades políticas da poesia.”

Na aguardada tradução do “rodopio de textos” classificado pelo apêndice de Joaquim Fontes como monstruoso, na acepção grega de maravilha, unem-se poemas em prosa que o autor chama de “Anedotas ou poemas”. Fazem parte da coletânea ainda o resumo de uma novela fantástica inglesa; divagações sobre Wagner, Baudelaire e Poe, crônicas teatrais nominadas de “Rabiscado no teatro”; as seções “Quanto ao Livro”, “O mistério das letras” e “Grandes fatos diversos”, onde coloca em prática um jornalismo que “anote os acontecimentos sob a luz própria ao sonho”. Humor, poesia, filosofia, refinamento literário, erudição e uma agudez de espírito arrebatadores marcam esse compêndio onde as orações parecem mais aforismos, ao mesmo tempo densos e leves.

Frequentemente citado como o poeta de “Um lance de dados” ou “O virgem, o vivaz e o belo hoje”, Mallarmé teve sua prosa raramente considerada, embora seja “parte fundamental da formulação do trabalho do autor, tanto por ajudar a dar-lhe sentido quanto por dar corpo e estilo singulares a seu projeto de ‘poesia crítica’”, como assinala Marcos Siscar, em outra resenha que consta do apêndice da edição. Ora usado como fetiche do experimentalismo, ora acusado de hermetismo e esteticismo sem consciência política na recepção crítica de sua obra no século XX, Divagações desautoriza essas apropriações rasas. Siscar cita Henri Meschonnic: “Reler Mallarmé, sua prosa reflexiva, é um alívio depois de tantas glosas, porque seu jorro, seu gestual, permite-nos ouvir a inteligência e esta mistura tão própria de humor e ironia”, aos quais se acrescenta “uma inteligência da sociedade e do político”.

Pensadores como Walter Benjamin, Foucault, Derrida, Deleuze reconhecidos vanguardistas que construíram obras emblemáticas a partir da transformação do legado intelectual de outros autores. “Mas Mallarmé, assim como Baudelaire, Rimbaud e Nietzsche, figuram entre os profetas, porque anunciaram um tempo sem matéria antecedente, praticamente criando sua matéria-prima”, analisa o entusiasmado editor Sérgio Medeiros, finalista do Prêmio Portugal Telecom de Literatura.

Em 12 de julho a editora vai brindar os cinéfilos com o lançamento dos Ensaios Críticos de Rogério Sganzerla, o genial cineasta catarinense, diretor de O Bandido da Luz Vermelha. O pacote-presente denominado “Edifício Rogério”, patrocinado pelo Itaú Cultural e Pró-Reitoria de Pós Graduação, que inclui dois volumes de reflexão e crítica e será lançado em São Paulo com a participação de Gilberto Gil. Mallarmé, o abre-alas dessa reformulação ética e estética foi eleito como referência fundamental por grandes artistas e críticos brasileiros a exemplo de Augusto e Haroldo de Campos e Mário Faustino e inspira a obra de pensadores como Jacques Derrida, Alain Badiou, além de Foucault e tantos outros.

O namoro com Divagações começou quando a tradução ainda estava sendo gestada pelo jovem doutorando de Literatura da UFSC, que empreendeu um desafio evitado até por grandes especialistas e herdeiros da obra de Mallarmé. “Eu disse a Fernando Scheibe que quando concluísse o livro eu o ajudaria a encontrar editor”, conta. Ao assumir a direção da Editora da UFSC junto à Secretaria de Cultura e Arte, em março deste ano, foi Scheibe o primeiro autor contatado por Medeiros para estrear um projeto editorial que inclui traduções inéditas e arranjos novos de ensaios de Jean-Luc Nancy, Linda Hutcheon, Pierre Bourdieu, León Portilla, Mario Perniola, entre outros nomes internacionais que cederam direitos autorais para a editora catarinense. Todos primam por uma qualidade de edição, capa, revisão e diagramação impecável em papel pólen e paginação vertical. Nada mais justo do que eleger como estrela-guia dessa constelação o autor de textos – ou seriam versos ao ritmo da leitura? – que encerram uma vida feita da espera pelo encantamento da palavra literária, tomada pelo esforço silencioso de construir um livro em que a linguagem se integrasse perfeitamente ao objeto e com esse propósito reinventou o próprio livro:

“Agora mesmo, em abandono de gesto, com a lassidão que causa o mau tempo desesperando uma após outra tarde, fiz recair, sem uma curiosidade, mas parece-lhe ter lido a tudo eis já vinte anos, o afilado de multicores pérolas que a chuva folheia ainda, ao reluzir das brochuras na biblioteca. Muita obra, sob os vidrilhos da cortina, alinhará sua própria cintilação: gosto como no céu maduro, contra a vidraça, de seguir luzires de tempestade.” Fragmento de “Crise do Verso”, de Stéphane Mallarmé.

Divagações – Stéphane Mallarmé

Tradução e apresentação de Fernando Scheibe

Florianópolis: Editora da UFSC/Secretaria de Cultura e Arte, 2010

270 páginas

R$ 41,00

Por Raquel Wandelli / Jornalista na SeCarte/UFSC

Contatos: 9911-0524, raquelwandelli@reitoria.ufsc.br ou www.secarte.ufsc.br