
Cascaes dedicou a vida a divulgar a cultura açoriana
O menino corre ladeira abaixo. Os pés tocam rápido o chão de barro, mas são lentos em comparação à sua vontade de chegar. O encontro é marcado por risos e conversas empolgadas, porém o menino se mantém calado: só os adultos têm a palavra. Ele não se importa; em vez de falar, prefere escutar as histórias contadas pelos jornaleiros.
O sertão de São José, naquele ano de 1918, entretinha suas crianças com o cheiro da terra molhada, a passarinhada pulando de árvore em árvore e os pés de goiaba e laranja cheios de fruta. As muitas brincadeiras tinham vez quando a molecada não precisava auxiliar os pais na roça – naquele tempo, não se tinha filho pra bonito, mas sim para ajudar no trabalho.
Apesar de todas as atividades, a região parava com a chegada dos jornaleiros, que, depois dos mutirões de colheita da mandioca e do café, se reuniam com os moradores do local para contar dos causos vividos em suas andanças atrás de mais trabalho. A noite caía e o breu que envolvia homens e crianças servia de tela para o cinema imaginário que o menino Franklin vislumbrava a partir das histórias dos jornaleiros. Tintas coloridas faziam surgir na tela pescadores e bruxas, boitatás e balaieiros, gentes simples e outras cheias de segredos que habitavam a região de cultura açoriana.
O menino foi crescendo e as tintas coloridas se materializaram no preto traçado pelo nanquim. Os desenhos, soube-se depois, não eram obras isoladas, mas parte de todo um inventário documentado por Franklin Joaquim Cascaes – ou Seo Francolino, como os pescadores costumavam trata-lo: serviam de ilustrações para histórias do povo de origem açoriana. As esculturas em barro tinham a mesma função. “Ele ia a campo, pro Pântano do Sul, Ribeirão, confirmar essas histórias.
Ele fez ciência, e transformou esse conhecimento em arte. Cascaes entendia que o desenho seria agradável pras crianças, que não tinham o hábito da leitura. Quando ilustrava as histórias ele acreditava, e tinha razão, que o desenho – tão estranho -, ia te cativar para ler o conto. E Cascaes extrapola: faz por escrito, não satisfeito, ilustra, não satisfeito, faz a escultura. E a maioria das esculturas têm acessórios: balainho, peneirinha, reminho, canoinha, tudo isso ele fazia”, explica Peninha, ou Gelci José Coelho, diretor do Museu Universitário de 1996 até maio de 2008, grande admirador de Cascaes, incentivador e amigo do artista em seus últimos anos de vida.
Centenário – As histórias de Cascaes, no ano de 2008, quando ele completaria cem anos de vida no dia 16 de outubro – e já contabilizou 25 de sua partida no dia 15 de março –, são conhecidas
por toda a Ilha Bruxólica, por Santa Catarina, pelo Brasil afora e também por países de língua portuguesa, em grande parte pela divulgação que Peninha se incumbiu de fazer enquanto o mestre era vivo – trabalho que ainda desempenha com afinco e abnegação.

Peninha e a obra do mestre
Sempre disponível no Museu Universitário – quando não estava fora ministrando palestras sobre a cultura açoriana -, Peninha recebia turistas e jornalistas, professores e alunos, e recontava as histórias em seus mínimos detalhes. O broche da UFSC era fincado na camisa todos os dias, e ele ainda se diz encabulado na hora em que é solicitado a falar sobre o mestre. A timidez então dá lugar a um jeito de contar e encantar que, percebemos, é o segredo para que o nome de Cascaes tenha chegado a tantos lugares.
Talvez a magia das cores pintadas nas telas que os jornaleiros traziam ao menino Franklin tenham lhe acompanhado por toda a vida. A intensidade do relacionamento com a professora Elizabeth Pavan Cascaes lhe deixou fortes matizes de saudade quando ela partiu subitamente, em 1970. Abatido, o artista abandonou estudos, obras e tudo o que dizia respeito à temática que sempre o fascinou. Durante os treze anos que viveu sem Beth, Cascaes nunca se recobrou totalmente. Igualmente fortes, ainda que não tão brilhantes, foram as cores que lhe pintaram o discípulo, em 1973. O rapaz Gelci sempre se identificara com a obra de Cascaes, por ser seu conterrâneo, por ter familiaridade com as olarias e por também ter sido uma criança que cresceu envolto em causos açorianos. Numa época em que os desenhos e esculturas do professor Franklin eram desconsiderados pelos artistas em voga e pela própria academia, Peninha organizou exposições e divulgou seu nome por onde quer que fosse.
Tesouro – No dia em que encontrou os manuscritos de Cascaes, guardados no fundo de um armário junto de todas as roupas de Beth, quatro anos depois de sua morte, Peninha insistiu em lê-los. Cascaes condicionou: “se tu vieres aqui nos sábados eu leio pra ti”. “Ele queria companhia. Solitário, não tinha ninguém pra dialogar. Aí, monótono, lia as histórias, e eu me encantava! E fui cavando informação para descobrir mais a respeito do que ele contava. Passei a dizer que voltaria no domingo, para continuarmos a leitura. Com o tempo, ele começou a se mostrar satisfeito em ver que eu apreciava os contos e a amizade então foi surgindo”, relembra Peninha.
O museólogo conta que animar o professor era tarefa árdua. Seu ateliê vivia abandonado. Durante a organização de uma exposição, perceberam que um dos conjuntos estava incompleto. Peninha solicitou a Cascaes para fazer a peça novamente, e diante da recusa do mestre, provocou: “bem que eu estava desconfiado que essas obras não foram esculpidas pelo senhor, e sim por seus alunos, pois eu nunca vi nada ser feito aqui…”. A reação foi imediata. “Ele ficou furioso! Pegou uma argila velha, abandonada no chão, botou água e mandou: ‘amassa esse barro!’.
E eu amassei sem parar. Ele passava, apertava com o dedão e dizia que não estava bom. E eu continuava amassando, e ele não se dava por satisfeito. Mas eu não desistia, até uma hora em que ele colocou a argila em cima do torno, pegou os esteques e claf, claf, claf, apareceu a figura! Fiquei maravilhado, e comecei a incitá-lo, lembrando de figuras típicas, que foram surgindo, uma a uma, até que no fim da tarde o que ele havia produzido não era brincadeira…”.
O presépio montado todo ano na frente do Museu Universitário teve como primeira função chamar a comunidade à UFSC para conhecer suas obras. Feito com barba-de-velho, sementes e flores – como explica o museólogo, “já mostrava a necessidade de preservar a natureza da ilha” -, não surgiu naquele ano de 73, mas muito antes, confeccionado e exposto na Catedral pelo próprio Cascaes, na época em que Peninha ainda era menino. “Ele criou o hábito de montar exposições embaixo da Figueira: fincava os moirões na terra, em volta da árvore, e aplicava as figuras ali. Como eram peças estranhas, enchia de gente pra ver. Era tanta gente que a Rádio Guarujá, em uma dessas exposições, se instalou embaixo da Figueira para que as pessoas falassem, pela rádio, o que viam. E isso era a década de 60!”.
Questão de marketing – Mau tempo nunca foi desculpa para que Cascaes não divulgasse a cultura açoriana. “Ele tinha uma kombi sem janela, onde escrevia, na lataria, poemas de profundo amor pela Ilha. Nos dias de chuva colocava suas obras na kombi e ia para pontos estratégicos, como os pátios das escolas. A visão que esse homem tinha…quem é que não ia parar pra ler uma coisa escrita numa kombi?”, questiona Peninha.
Os anseios de poder levar a literatura oral a outros meninos, como ele foi um dia, é que impulsionaram todo o trabalho do professor Franklin. O discípulo Gelci, absorvendo seus conhecimentos, tomou para si a responsabilidade, também como forma de retribuir todo o aprendizado proporcionado pelo mestre. “Fui privilegiado em ter, durante dez anos, um professor ao vivo, exclusivo, orientador e mestre só pra mim. Ninguém teve uma universidade tão maravilhosa como a minha, ninguém teve!”.
Em 2000, o então estudante de Jornalismo da UFSC Francis Silvy aceitou a sugestão de Peninha e produziu o vídeo Embalaiá, sobre a confecção de balaios, apresentando-o em sua banca de conclusão de curso. O audiovisual traz o museólogo como entrevistador e personagem que, ao mesmo tempo, apresenta as técnicas e aprende um pouquinho mais com seus conterrâneos.
A repercussão do documentário é grande. “Ainda ontem eu estava na rodoviária, na banca de revistas, um garoto me viu e disse: ‘olha, eu sou teu fã!’, eu nem o conheço, respondi ‘mas eu não sou artista’. Ele tinha visto o filme dos balaios mais de dez vezes! E começou a contar detalhes e falas dos entrevistados… Então o vídeo alcançou seu objetivo, que é a nova geração valorizar esse conhecimento”. As manifestações a respeito do documentário são freqüentes. Os mais antigos param o museólogo para lhe assegurar que se sentiram prestigiados com a história, e não raras são as conversas sobre a obra que acabam em lágrimas saudosas.
Além de Embalaiá, foram realizados também Enxó da Ribeira, a respeito da construção artesanal de canoas a partir de um único tronco, e Religiosidade Popular, que explora as diversas expressões da religiosidade tradicional.
Novos tempos, novo museu – Atuando oficialmente no Museu desde 1975, quando ainda era denominado Museu de Antropologia, Peninha completou 12 anos na direção prevendo sua aposentadoria. A obra de Cascaes, toda registrada e organizada em ala especial, espera a finalização do Pavilhão de Exposições do Museu, que poderá abrigar mostras de fôlego. Morador recente da Enseada do Brito, no município de Palhoça, Peninha espera continuar, nessa região, o trabalho cultural que sempre desenvolveu desde muito cedo.
Eles quiseram ser jornaleiros. Meninos que foram, cada qual em sua época, influenciados desde pequetitos pelos contos fantásticos da Ilha, encontraram-se depois, numa parceria de vida, que tinha como objetivo a concretização da profissão do divulgar. Mestre e discípulo, separados, juntos e depois novamente separados, seguiram sempre em nome daquelas histórias que embalaram suas infâncias, a encantar outros meninos como eles.
Fragmentos bruxólicos da Ilha da Magia
As bruxas, Peninha logo avisa, são um fragmento da obra do professor Franklin. É que, como o assunto é envolto por mistérios, acaba atraindo maior interesse. E aí é que aconteceu um fenômeno curioso. “Cascaes vai a vários pontos da Ilha conversar com as pessoas a respeito das bruxas. E começa a ficar preocupado. ‘Eles estão esquecendo as histórias!’, ele dizia, porque nunca lembravam dos causos até o fim, deixando a narrativa pela metade”.
Foi preciso Cascaes ir até os Açores, em 1979, para entender o que se passava com os moradores da ilha. Relembra Peninha: “Ele tinha levado um questionário que abordava diversos itens, mas quando mencionava a literatura oral, os causos estranhos das bruxas, as pessoas pediam licença, ‘ai, um instantinho só que eu já volto’, e iam embora. Até o dia em que um homem, observando a cena, confidenciou: ‘ah, não se pode falar das mandrengas, porque atrai’. Aí entendemos que nossa gente jamais esqueceu das histórias: apenas não as contam para não chamar as bruxas. Não é impressionante?”.
“Um dia terrível” – As lendas bruxólicas se perpetuam, no entanto, porque significam uma forma de garantir o controle materno sobre a família. “Muitas dessas histórias nunca aconteceram. Essa prática é resultado da inteligência das mulheres da Ilha que, para impor uma educação repressora, criavam esses causos, metendo medo na gurizada. É assim ó: a mulher tem o dia inteiro ocupado, ela não pára. Quando a turma chega da roça, antes das horas mortas – às seis da tarde -, a ceia já está pronta. O filho, então, avisa: ‘ô mãe, eu vou cear mas depois vou na casa do Maneca‘. Só que as famílias eram distantes. A mãe respondia: ‘Que bom que tu vais. Eu fiz este beiju e queria mandar pra mãe do Maneca, mas não tive tempo de bater perna até lá, assim já entregas pra ela, e vê como é que eles vão’”.
No momento em que a família senta à mesa, continua Peninha, a mãe conta: “Tu não sabes o que aconteceu aqui hoje: não tem o Seu Jorge lá das Aranhas? Ele queria negociar um boi de engenho aqui e foi atacado por uma bruxa.”, e a história se desenrola no caminho que o filho terá que passar para chegar à casa de Maneca. “Foi um despautério, chamaram a benzedeira! A Dona Zica, aqui da localidade, não estava, tiveram que chamar outra lá não sei onde, hoje foi um dia terrível!”.
O incidente os faz lembrar de outros parecidos e, no final do jantar, a mãe consegue seu intento: “o rapaz se amua num canto, alega que está cansado e desiste da visita. A mãe não queria que ele fosse porque o filho volta tarde e no outro dia o trabalho na roça não rende”. A história é contada ao amigo para justificar a falta, e no fim do dia toda a localidade já está sabendo do ataque da bruxa.
Mães católicas não mentem – Peninha explica: “Por que todo mundo acreditou e ninguém questionou a história? Primeiro porque foi a mãe que contou, e mãe não mente. E ela é católica. Católica também não mente, porque é pecado. A história passa a ser uma verdade. Só que chega na outra casa com outro tom, né? E foi assim que as mulheres criaram imensas histórias, e o Cascaes registrou”. Mesmo inventando os causos, as mulheres têm medo de atrair as supostas bruxas. Para contá-las então, primeiro fazem uma reza braba de proteção.
A literatura oral sobre as bruxas ainda é prática corrente nos dias de hoje. Há que ligue pro Museu atrás de Peninha, pedindo auxílio porque as bruxas estão rondando a casa: o cavalo amanheceu com a crina e o rabo cheio de tranças. “Eu pergunto se eles têm alguma criança que ainda não foi batizada, então eles lembram: ‘ah, o filho do vizinho, é pequenininho ainda’”. O museólogo explica a relação: a crença se espalhou através da Igreja Católica, ainda nos tempos da Inquisição. “As mulheres detinham imensa sabedoria. Enquanto os homens caçavam, elas observavam a natureza. Com o passar dos anos as bruxas se tornaram as chamadas benzedeiras”.
Treze raio tem o sóli
treze raio tem a lua
Sarta Diabo prô inferno
questa alma não é tua.
Tosca marosca
Rabo de rosca
vassoura na tua mão
relho na tua bunda
e agulhão nos teus pés
Por riba do silvado
e por debaixo do telhado
São Pedro, São Paulo, São Fontista
por riba da casa São João Batista
Bruxa tatará-bruxa
tu não me entre nesta casa
nem nesta comarca toda
Por todos os santos dos santos, Amém.
*Reza benzedeira do livro “O Fantástico na Ilha de SC”, de Franklin Cascaes
Por Cláudia Schaun Reis /Jornalista na Agecom
Foto: James Tavares
Mais informações junto ao Museu Universitário: 48 3721 8821