Ecos do inumano no porão da memória literária
“Teve a impressão que da janela vinha uma claridade fria e fantástica trazida pela noite imemorial. Uma claridade indefinida, fantasmal, que apenas, como uma halo, circundava os objetos, ressaltando os seus contornos, sem revelar no entanto a essência e os detalhes de suas formas. As pessoas na sala mais adiante eram agora silhuetas que se agrupavam em várias posições. Silhuetas estáticas, como se a ausência da luz despertasse no íntimo de cada uma inquietações primitivas. Talvez por essa razão começassem a cantar num murmúrio um canto sem palavras, gutural, que lembrava o zumbido de infinitos insetos.”
(Silveira de Souza em Ecos no Porão)
Zonas de sombra, áreas de nebulosidade, penumbras, vultos, fantasmas… Humanos metamorfoseados em animais e insetos, seres híbridos, polimorfos, inumanos… Atmosfera misteriosa que revela a alma literária de um narrador em estado de permanente inquietude e assombro diante da vida, onde vagam personagens em luta eterna contra o esmagamento do indivíduo pelo meio… Esse universo de sonho e pesadelo, ecos e porões é o fio de Ariadne que guiou o escritor Silveira de Souza na seleção dos 30 contos reunidos em torno do primeiro volume da Antologia Ecos no porão, que a Editora da UFSC lança nesta sexta-feira, 22, às 17 horas em seu estande na 9ª Sepex (Semana de Ensino, Pesquisa e Extensão).
E por uma coincidência mágica daquelas típicas da literatura de Borges, essa criação expressamente kafikiana é lançada junto com outra produção de Silveira: uma tradução de 28 aforismos do próprio Kafka, direto do original alemão. Menos famosos do que os romances e novelas de autor tcheco, mas não menos emblemáticos e de tradução ainda mais desafiante, os pequenos pensamentos poético-filosóficos receberam o título de 21 (Des)aforismos, em co-edição entre a EdUFSC e a Bernúncia Editora. Trata-se, como na antologia de contos, também de uma seleção, no caso, dos 109 Aphorismen de Kafka, encontrados depois da morte do autor, alguns escritos a lápis. Desta vez Silveira guiou-se, segundo ele próprio, pelo critério da transgressão, espírito que pode ser sintetizado no fragmento 35 e torna sua obra um barco sem leme, de sentido impreciso e indomável: “Não existe nenhum possuir, somente um ser, somente um ser exigente até o último alento, até a asfixia”.
Traduzir é trair, diz o provérbio italiano — e é também criar. Ouvindo os ecos que chama de “deformações sonoras” das vozes de outros, deturpados pelo acento lingüístico, Silveira trai e recria Kafka, “influência consciente e inconsciente”, desde a leitura de Processo ainda na adolescência. “As respostas não me interessam”, fala o tradutor, em entrevista. “O que eu persigo são as dúvidas”. E voltando aos pensamentos desaforados e deformados, porque inclassificáveis, encontramos em Kafka, “influência consciente e inconsciente”: “No passado eu não compreendia por que não encontrava respostas às minhas perguntas; hoje não compreendo como podia acreditar que pudesse perguntar. Entretanto eu não acreditava, perguntava somente”.
A insatisfação contra a violência exercida sobre o indivíduo pelos sistemas constituídos não é, contudo, monopólio de Kafka. Silveira lembra que outros autores que fazem da literatura o lugar da tensão e da incerteza, sobretudo os russos, como Dostoievski, Gogol e Tchecov, foram movidos por essa questão e também o influenciaram, além da literatura fantástica de Borges, Cortázar e Edgar Alan Poe. Mas então, o que Ecos no Porão e 28 Desaforismos, Kafka e Silveira de Souza têm de mais forte em comum, além da angústia da influência dessa narrativa do início do século XX, assombrada e relutante contra o esmagamento do ser? Justamente no protesto contra a redução das possibilidades de existência a papéis rígidos e medíocres, a formatos físicos e psicológicos limitados e imutáveis, Silveira e Kafka vingam o ser em sua plenitude.
E por que vingam? Porque criam personagens híbridos, multiformes, pós-humanos, pós-morais, pós-gênero; com devir meio máquina, meio humano; meio humano, meio natureza, meio animal, prontos a virar rio, inseto, prensa, engrenagem, como já analisaram Deleuze e Guattari em Capitalismo e Esquizofrenia. Enfim, potencializam as possibilidades do sonho ou do pesadelo contra a clausura da vida burocrática ou da moral opressora, como em “O Cantochão e a Sombra” e os contos do livro O Cavalo em chamas, de 1981, de longe os mais transgressores e marcantes da antologia, separada por datas de publicação, que vão da década de 60 a 80.
Na visão não-antropocêntrica de mundo reside a grande originalidade de Silveira de Souza, nascido em 1933 em Florianópolis, conforme aponta seu editor, o diretor da EdUFSC Sérgio Medeiros, que o considera um dos melhores contistas da atualidade, apesar de pouco prestigiado em seu próprio Estado. Esse mundo de múltiplas possibilidades e devires pode ser vislumbrado por um ser que convive em condições de horizontalidade com seus “companheiros de ventre” (insetos, sapos, florestas, morcegos, pássaros): “(…) era tudo como a preparação para que gritos estridentes e longínquos (…) quisessem evidenciar sua existências como meus companheiros de ventre, aos quais nestas circunstâncias eu deveria forçosamente dedicar a minha atenção pelo simples fato de terem nascido como formas vivas e estarem ali como companheiros de ventre. ´Meus terríveis irmãos`, eu pensei, “agora eu sei que eles são os meus terríveis e desesperados irmãos do mesmo ventre”.
A descaracterização do personagem antropomórfico em favor desse olhar descentrado de si mesmo para todas as formas de vida orgânicas e inorgânicas recoloca em cena uma questão que já estava aparentemente resolvida no século XX. Eis aí a grande contribuição ética e estética de Silveira: “Toda literatura e filosofia do século XX questionou o antropocentrismo, mas Silveira realiza uma proposta de existência em um cenário pós-humano, em vias de superação da imposição do homem como centro do universo”, explica Medeiros.
Nesse sentido, sua literatura tem um tom quase profético, como aponta o editor, à medida que se antecipa às proposições filosóficas de vanguarda sobre a integração do homem com todas as formas vivas, que já estava em Kafka, com suas metamorfoses, e em James Joyce, com seu homem-ovo-homem-todos, grávido de “companheiros de ventre”, em Finnegans Wake. O pensamento contemporâneo de François Lyotard, Mário Perniola, Deleuze, entre outros, evidenciam o atravessamento do humano por toda existência orgânica e inorgânica, o que inclui os seres, mas também os objetos. Nessa atualização do dilema anterior, o século XXI aponta que a compreensão da relação igualitária entre as formas vivas e não vivas suplanta todas as lutas políticas anteriores, estabelecidas em cima de confrontos dicotômicos de categorias sociais isoladas. Fala o escritor:
– Sou muito interessado por literatura científica e tenho a percepção das coisas que estão ao nosso redor. De repente percebo que existe identidade entre a gente, a planta e os animais. Acho perfeitamente possível conversar com uma raposa, como fez Carlos Castañeda em um conto, assim como converso com meu cachorro e ele me responde. Parece surreal, mas é o aspecto mágico da realidade. Sempre se achou que o homem era a grande força entre os seres vivos e isso justificou todos os estados de opressão contra os animais, os gêneros, uma raça contra a outra, uma etnia contra a outra, uma classe contra a outra, o homem pelo homem. Hoje a ciência, principalmente a biologia, percebe que existem muitas aproximações entre o ser humano e outras formas vivas. Nós ainda desconhecemos muito do que habita o interior do ser humano.
Assim, na devastação das ideologias, dos sistemas, dos modelos antropocêntricos e narcisistas por devires homem-mulher-animal-natureza, Silveira e Kafka criam pontos de luz que nascem do paradoxo da escuridão e da falta de saídas: “Como se pode estar satisfeito com o mundo, a não ser quando nele se exile?”. E seria preciso evocar, além deste, um último desaforismo de Kafka, o de número 4, com seus outros ecos e porões: “Muitas sombras de gente já falecida ocupam-se somente em lamber as ondas do rio dos mortos, porque ele se origina de nós e conversa o gosto salgado de nossos mares. Então o rio, tomado de nojo, cria uma corrente contrária e empurra os mortos novamente à vida. Daí eles ficam felizes, entoam canções de agradecimento e acariciam o rio rebelde”.
Por Raquel Wandelli / jornalista, professora, assessora de Comunicação da Editora da UFSC
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