Especial Pesquisa: técnica pioneira testada na UFSC “silencia” vírus da mancha branca que afeta os camarões

Fotos cedidas pelas professoras
Desenvolvido a partir da dissertação de Cristhiane Guertler, junto ao Programa de Pós-Graduação em Aquicultura, o processo utiliza a técnica do RNA de interferência para “silenciar” o vírus. Os resultados não podiam ser melhores: mais de 70% dos camarões sobreviveram nos experimentos e a maioria deixou de ser portador do WSSV (sigla em inglês para o vírus da síndrome da mancha branca).
“A dissertação de mestrado poderia ser uma tese de doutorado”, destaca a professora do Departamento de Biologia Celular, Embriologia e Genética da UFSC, Luciane Maria Perazzolo, orientadora do trabalho que utiliza, pela primeira vez no Brasil, a técnica do RNA de interferência para ativar a defesa dos camarões contra o vírus da mancha branca.
Presente em todas as plantas e animais, o RNA de interferência é uma das defesas naturais do sistema imunológico. A descoberta do mecanismo, que permite “silenciar” genes com precisão, rendeu aos biólogos norte-americanos Andrew Fire e Craig Mello o Prêmio Nobel de Medicina de 2006. Nos invertebrados (caso dos crustáceos), o RNA de interferência tem uma importância ainda maior, já que esses animais não possuem um mecanismo de defesa adaptativo, portanto não podem ser vacinados.
Sistema antiviral
No Laboratório de Imunologia Aplicada à Aquicultura (LIAA) da UFSC foram realizadas as etapas iniciais do estudo para combate da mancha branca. Cristhiane produziu um RNA dupla fita com uma sequência homóloga ao gene que codifica uma proteína específica do vírus WSSV, chamada de VP28. Usualmente, organismos eucariontes (aqueles que têm células complexas) não possuem RNAs dupla fita de cadeia longa, sendo, contudo, moléculas padrão encontradas durante a replicação de muitos vírus. Assim, quando essa estrutura foi injetada no camarão, a resposta do seu organismo foi reconhecer essa composição como estranha e ativar o sistema antiviral chamado de RNA de interferência (RNAi).
O passo seguinte do experimento foi injetar o vírus da mancha branca no camarão. Quando isso ocorreu, os complexos enzimáticos do sistema RNAi se encarregaram de degradar a proteína do vírus, impedindo sua síntese. Assim, a formação de novas partículas virais ficou comprometida e a infecção regrediu até desaparecer nos crustáceos. Cristhiane explica que a carga viral da infecção foi propositalmente alta, para melhor avaliar a eficácia do método preventivo. “Todos aqueles que só foram infectados com o vírus, sem receber a injeção com o RNA dupla fita, morreram em cinco dias”, conta a pesquisadora.
A espécie de camarão utilizada para a pesquisa foi a Litopenaeus vannamei, por ser a mais cultivada no mundo, inclusive no Brasil. A morte rápida dessa espécie, em 85% das fazendas catarinenses de cultivo, surpreendeu os carcinicultores que nunca tinham sofrido os prejuízos da síndrome da mancha branca. O vírus apareceu em novembro de 2004, na cidade de Laguna, e acarretou em um prejuízo que chegou a R$6 milhões, em todo o Estado. Foi por esses acontecimentos que Cristhiane não realizou a parte experimental de sua dissertação em Florianópolis. “Não se pode fazer a infecção do animal em um lugar que possua mar”.
Biossegurança
A fase experimental do estudo foi realizada no campus do Instituto Federal Catarinense, em Araquari, Norte do Estado, que segue normas de biossegurança e é autorizado a sediar estudos com desafio viral pelo Ministério da Ciência e Tecnologia. Durante o período de janeiro a outubro de 2009, a mestranda fez o trajeto Florianópolis-Araquari diariamente, com pausas quinzenais entre uma experiência e outra.
Nesse período, 300 camarões foram testados e os resultados comprovam os benefícios da técnica do RNA de interferência: 219 sobreviveram e, destes, 80% não apresentaram mais o vírus da mancha branca.
O estudo foi todo realizado no país, mas teve uma ajuda fundamental do México. Há cinco anos, um trabalho experimental nos Estados Unidos demonstrou que o camarão possuía o RNA de interferência. Na época, a professora Luciane Maria Perazzolo não conhecia ninguém que trabalhasse com a técnica em Santa Catarina. Após um contato sem sucesso com o pesquisador que estava nos Estados Unidos, Luciane soube de outro trabalho que estava sendo desenvolvido na mesma área, mas no México.
A resposta não tardou e o professor Claudio Humberto Mejía-Ruíz veio para Florianópolis, onde ficou 20 dias ensinando a técnica do RNA de interferência ao grupo. “Se tivéssemos conseguido uma parceria com o professor que estava nos Estados Unidos, não dominaríamos a técnica, apenas a receberíamos pronta”, considera a pesquisadora.
Continuidade
Passado mais de um mês da defesa de dissertação de Cristhiane Guertler (a apresentação foi em maio), as pesquisas continuam. Um projeto foi recentemente submetido à Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) e, se for aprovado, o Laboratório de Imunologia Aplicada à Aquicultura poderá ampliar as análises e adquirir um aparelho que acompanha em tempo real a etapa de expressão dos genes de defesa antiviral do camarão.
A meta é também expandir o projeto para utilização mais prática, além do laboratório. Por enquanto, não é viável submeter um lote inteiro de camarões de cultivo à técnica antiviral, uma vez que cada animal teria que receber a injeção com o RNA dupla fita. Entretanto, a ação poderia ser feita com os camarões usados para reprodução.
“Queremos ampliar o projeto para sua aplicação no Nordeste, onde se encontra a maior produção de camarões de cultivo do Brasil e onde existe outra importante virose, a mionecrose infecciosa”, informa Luciane. Outra questão seria uma possível aplicação oral do RNA dupla fita, que facilitaria o trabalho em larga escala. Mas neste caso surgem novos desafios, pois o sistema digestivo do animal pode degradar a estrutura.
Para a equipe, os resultados confirmam o potencial dessa técnica no combate de viroses, inclusive aquelas que atacam o ser humano. Em vários países, já se verifica a possibilidade de utilizar a técnica com o vírus da AIDS, entre outros. Todas estas novas frentes de trabalho reforçam a importância do trabalho desenvolvido por Cristhiane, que assim como apenas outros três pós-graduandos brasileiros foi selecionada para participar do IV Curso de Introdução à Interferência por RNA (RNAi) e microRNAs, da Universidade de São Paulo (USP). Mais uma comprovação de que seu trabalho de dissertação é um sucesso nacional.
Mais informações: (48) 3721-5528 / 3721-8951 / 3721-5155 / luciane@ccb.ufsc.br/ cristhianeguertler@yahoo.com.br
Por Cláudia Mebs Nunes / Bolsista de Jornalismo na Agecom
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