O Ano da Morte de José Saramago – Em 18 de junho de 2010, ninguém morreu

23/06/2010 12:47

Ao chegar da UFSC fui informada por um telefonema que José Saramago havia falecido. Triste, olhei o exemplar do Dicionário de personagens da obra de José Saramago, obra na qual tenho trabalhado há vinte anos e que terminei na semana passada. Termino o Dicionário, Saramago morre… O ano de 2010 será conhecido como o Ano da Morte de José Saramago.

Fiquei alguns minutos pensando em nosso encontro no Rio de Janeiro, em Petrópolis, há uma década. Ele iria receber o título de Doutor honoris causa pela Universidade Federal Fluminense. Na véspera do laureamento, surpreendeu a todos com uma das suas peripécias. Ele daria uma palestra exatamente às 9 da noite, mas o palestrante que o precedeu falou inconvenientemente até as dez horas. Na hora de sua fala com o salão lotado, o mestre pegou o microfone e disse: “Não deixaram tempo para que o Nobel de Literatura falasse. Dou por encerrada a sessão”. Pobre daquele palestrante: passou para os anais da literatura como o homem que não deixou Saramago falar. Eis Saramago verdadeiro.

No outro dia, saiu antes do evento e abanava com as mãos para pegar um táxi. Quando o táxi se aproximava, vi um senhor ofegante correndo dos fotógrafos que o assediavam: era o escritor fugindo dos paparazzi. Abri a porta e lhe ofereci o táxi. Ele disse: “A senhorinha primeiro” e eu “O senhor primeiro”. Os fotógrafos desesperados se aproximavam e eu perguntei para qual hotel ele iria. Felizmente iria para o mesmo hotel que eu e pegamos o táxi juntos. Eis o Saramago gentleman.

Quando disse ao taxista que dirigisse devagar porque carregava um dos maiores cérebros da atualidade, diante da incompreensão do homem, Saramago riu. Quando dei meus dois livros escritos sobre sua obra ele acrescentou: “Mas a senhorinha é tão jovem!”. No outro dia pela manhã, tomamos um café juntos e eu que fazia regime comi todos os bolos do mundo, porque aquele homem me fascinava. Depois de décadas estudando o autor, eu tinha ali diante de mim um homem sábio.

Que dizer de sua obra? Magnífica e sobre a qual já foram escritas teses e mais teses. Ele reinventou a escrita, saramágica, com seus parágrafos enormes e sem pontuação. Criou uma Blimunda que via a alma das pessoas; criou um Caim que, viajante no tempo do Velho Testamento, questiona a justiça de Deus e destrói o mundo matando toda a humanidade na Arca de Noé e assim se vingando por ter sido preterido; criou Madalena que proferiu uma das frases mais teológicas da sua obra “Ninguém na vida teve tantos pecados, que mereça morrer duas vezes.” Com esta frase, ela impede que Jesus ressuscite Lázaro. Redimiu Madalena consagrando-a como a discípula amada, transformou o Diabo numa espécie de terceiro homem da Trindade, redimiu Judas. Eis o Saramago ateu declarado, mas apaixonado pela Bíblia e seus personagens. Para ele, Jesus era a chave para o humano e não para o divino.

Qual era a sua religião? Sua religião, sua crença maior chamava-se HOMEM. Filósofo e defensor do Antropocêntrico, afirmava em um de seus romances: “Que os homens são anjos nascidos sem asas, é o que há de mais bonito, nascer sem asas e fazê-las crescer.” Nas palavras do escritor e meu amigo Maicon Tenfen: Humanizou deus (com minúscula mesmo) e divinizou o Homem (com maiúscula).

Sua vida: família pobre, avó criador de porcos, pais humildes, mãe faxineira e pai analfabeto. Seu estudo, só até a escola técnica. Seu sonho frustrado: ter miopia e não ter sido maquinista. Seu maior prêmio: Nobel de Literatura em 1998. Ganhou também o Prêmio Camões em 1995.

Seus melhores romances: O Evangelho Segundo Jesus Cristo, Ensaio sobre a Cegueira, O ano da Morte de Ricardo Reis, Memorial do Convento, Caim. O crítico norte-americano Harold Bloom o conclamou como o maior romancista vivo da atualidade. Saramago foi consagrado pela crítica em vida.

Um desapontamento: a não indicação do seu romance O Evangelho Segundo Jesus Cristo a um prêmio Literário português. Setores conservadores da Igreja Católica pressionaram e o governo não indicou o livro. Por conta deste fato se auto-exilou em Lanzarote.

Sua maior crítica: o capitalismo. Seu maior desencanto: todas as esquerdas.

O homem mais sábio que conheceu: seu pai que era analfabeto. Um momento emocionante: Saramago chorando no final da exibição do filme Ensaio sobre a cegueira, dirigido por Fernando Meirelles.

Um momento romântico: o abraço em Pilar no aeroporto quando voltava da premiação do Nobel.

Sua segunda vida: começa exatamente em 1986 quando a jornalista espanhola Pilar del Rio, lê uma página de Memorial do Convento numa livraria, se apaixona por Blimunda e resolve entrevistar e conhecer o criador daquela mulher de papel. Tomam o café juntos e a espanhola de carne e osso se apaixona pelo criador de Blimunda. Casam-se um ano depois. Com 64 anos ele vive sua maior estória de amor.

Um de suas obras que também admiro trata da morte, coisa que para Saramago era natural: a diferença básica entre ser e não ser. O livro Intermitências da morte tem com enredo a estória da Morte que entra em greve. O romance começa assim: “No dia seguinte ninguém morreu.”

Se eu pudesse reescreveria a primeira linha deste romance: “No dia 18 de junho de 2010 ninguém morreu.” Mas não posso… O mundo ficará imensamente menor sem o Senhor – José Saramago (1922-2010).

Saramago não foi somente um escritor de Língua Portuguesa, ele foi escritor do mundo. Viveu e morreu dispensando todos os deuses. Não necessitou deles nem para a vida, nem para a doença, nem para a morte e foi feliz assim.

Por Salma Ferraz, professora associada da UFSC, mestre e doutora em José Saramago pela UNESP. É autora de O Quinto Evangelista (Edit. da UNB) e As Faces de Deus na obra de um Ateu (Ed. da FURB e UFJF). No prelo, ainda tem o Dicionário da obra de José Saramago.