Livro divulga trabalho com kit de sementes crioulas adotado por agricultores de Santa Catarina

A capa do livro e agricultores parceiros da iniciativa
“O livro se dirige aos agricultores em primeiro lugar, mostrando a importância da organização deles, pois esse trabalho só foi possível porque eles quiseram. Depois a políticos, como um documento que tem argumentos para formulação de políticas públicas”, explica o professor do Departamento de Fitotecnia do Centro de Ciências Agrárias da UFSC, integrante do Núcleo e Estudos em Agrobiodiversidade (NEABio), Antonio Carlos Alves. Ele divide a organização da publicação com Adriano Canci (técnico facilitador do Programa Microbacias 2 da Epagri, também coordenador do Instituto de Agrobiodiversidade) e Clístenes Antônio Guadagnin, (doutorando do Programa de Pós-Graduação em Sistemas de Produção Agrícola Familiar da Universidade Federal de Pelotas, também extensionista da Epagri de Guraraciaba).
O kit
O projeto kit diversidade foi implantado e continua sendo desenvolvido no município de Guaraciaba, localizado no extremo oeste de Santa Catarina. Um dos objetivos é melhorar as condições de vida dos agricultores da região. A implantação aconteceu a partir de necessidades levantadas junto às famílias e foi incentivada por diagnóstico realizado em 2005, a partir do projeto Microbacias 2. Esse levantamento revelou dados sobre a agricultura familiar em Santa Catarina que preocuparam: 75% dos agricultores haviam deixado de cultivar arroz e 50% não plantavam mais feijão para o seu consumo.
Na mesma época, durante um curso de agroecologia oferecido pelo Núcleo e Estudos em Agrobiodiversidade da UFSC, as famílias ouviram o relato de um caso interessante do Nepal (Ásia), onde comunidades e técnicos desenvolviam um trabalho de resgate de sementes e conhecimentos locais para consumo dos agricultores, chamado de kit diversidade. Inspirado nessa experiência, nasceu o Kit diversidade de Guaraciaba.
O Kit é uma caixa com pacotes de sementes. A composição foi definida em encontros com os agricultores, de acordo com suas preferências e a disponibilidade das plantas. As sementes são produzidas pelos próprios agricultores que ainda possuem variedades locais e conhecimento sobre seu cultivo.
A seleção levou em conta aspectos como importância alimentar e vontade das famílias de trabalhar com determinada espécie ou variedade. Em alguns casos pesaram características positivas da planta, como produtividade, resistência, simplicidade de cultivo e armazenamento, adaptação às condições locais e aos métodos simples de seleção, e a possibilidade de cultivar sem venenos.
A proposta foi implementada em reuniões do projeto Microbacias 2, desenvolvido em processo participativo com os agricultores. O kit foi discutido e colocado em prática numa parceria entre UFSC, extensionistas da Epagri, técnicos do Microbacias 2 e agricultores. O trabalho contou com o apoio de estudantes de graduação e de pós-graduação, professores e pesquisadores do Centro de Ciências Agrárias da UFSC que integram o Núcleo e Estudos em Agrobiodiversidade (NEABio).
Resultados
A publicação mostra que a partir da implantação do kit diversidade o percentual de agricultores que recorria ao mercado para obtenção de arroz baixou de 75% para 42%. Para o feijão a redução foi de 50% para 23%. A avaliação do projeto demonstra também que o impacto dessa mudança representa, no mínimo, 30% da renda bruta da maioria das famílias.
“Muitas famílias voltaram a cultivar alimentos que tinham deixado de lado há mais de 20 anos. O kit também resgatou hábitos alimentares saudáveis que haviam sido perdidos, como o consumo da fava e da ervilha”, lembram os organizadores do livro. Produzir comida em abundância e com qualidade está voltando a ser prioridade para muitos agricultores, destacam na edição.
A experiência também foi importante na aproximação entre o conhecimento acadêmico e das comunidades. A publicação destaca que as famílias de agricultores detêm conhecimentos sobre as sementes, as etapas e componentes do processo produtivo. Esses conhecimentos normalmente são aperfeiçoados a cada safra e na troca entre redes familiares e comunitárias de sementes e de saberes. Para os participantes da iniciativa, o kit fortalece essas redes comunitárias, sem desprezar o apoio da universidade.
“A busca da superação da falsa dicotomia estabelecida
entre o moderno e o tradicional e entre o conhecimento informal dos agricultores e o conhecimento formal acadêmico também pode ser verificada no projeto do kit diversidade”, destaca o professor Antonio Carlos Alves.
Soberania alimentar
“O kit diversidade envolve agroecologia, autosuficiência na produção de alimentos pelos agricultores, segurança alimentar e o resgate da auto-estima dos agricultores”, complementa o pesquisador. O projeto também cria oportunidades para discussões sobre a segurança e a soberania alimentar, a valorização da região e o desenvolvimento sustentável.
Segundo Alves, o cultivo de diferentes espécies vegetais e cultivares manejadas pelos agricultores é essencial para a conservação e ampliação da agrobiodiversidade. Também favorece a preservação do equilíbrio natural entre os inimigos naturais e os agentes causadores de danos às culturas. A distribuição e troca de sementes entre as famílias serve também de estímulo à manutenção e ampliação das relações sociais nas comunidades.
Mas, salientam os editores, os dados levantados nas avaliações e os depoimentos das famílias agricultoras revelam também que
a iniciativa deve ser associada a políticas para a agricultura familiar. “Conservar a agrobiodiversidade em posse dos agricultores
familiares servindo a estes e ao povo urbano pela oferta de
alimentos de qualidade é muito mais que lutar pelas sementes
crioulas e, certamente, vai além da promissora experiência do
kit diversidade”, alertam. Quando o livro estiver concluído, será comercializado e a renda revertida para os agricultores que participaram do trabalho.
Mais informações com o professor Antonio Carlos Alves, e-mail: alves@cca.ufsc.br / Telefone: (48) 3721-5323
Por Arley Reis / Jornalista da Agecom
Saiba Mais:
O meio rural de Santa Catarina
De acordo com o levantamento do IBGE (1997) (Censo Agropecuário 1995/96), o estado de Santa Catarina conta com cerca de 203 mil estabelecimentos agropecuários, que correspondem a aproximadamente 4% do total de estabelecimentos no Brasil. O Estado caracteriza-se pelo predomínio da agricultura familiar. De acordo com os critérios de classificação do Pronaf, em 2002 a agricultura familiar catarinense representava um universo de cerca de 180 mil famílias, envolvendo mais de 90% da população rural.
A estrutura fundiária do Estado é caracterizada pelo predomínio de pequenas propriedades rurais, com 18% dos estabelecimentos com área inferior a 5 ha, 47% entre 5 e 20 ha, 24% entre 20 e 50 ha, 6% entre 50 e 100 ha e apenas 4% com áreas maiores que 100 há. Embora a agricultura familiar catarinense ocupe apenas 41% da área rural, é responsável por mais de 70% da produção agrícola e pesqueira do estado.
Causas de abandono dos cultivos
Nas reuniões comunitárias para implantação do kit diversidade foram discutidos os motivos que levaram as famílias a deixaram de cultivar variedades mantidas basicamente para a alimentação de autoconsumo.
Entre eles estão:
– diminuição do tamanho das famílias pelo abandono da atividade agrícola;
– dedicação a atividades produtivas de maior expressão econômica como a cultura do fumo e a expansão da bovinocultura de leite;
– perda de determinadas variedades em função de adversidades climáticas;
– possibilidade de aquisição de produtos nos mercados locais
– diminuição das trocas de sementes entre as famílias
Variedade genética
O trabalho com o kit mostrou também a diversidade genética existente entre as 34 principais espécies vegetais crioulas cultivadas para a alimentação pelas famílias rurais do oeste catarinense. Entre estas espécies há mais de 200 variedades locais diferentes, mantidas pelos agricultores familiares. São cerca de 150 variedades de milho, incluindo o milho pipoca; 50 de arroz, em torno de 120 de feijão, centenas de mandioca e dezenas de hortaliças.
Cores
As variedades possuem diferentes tamanhos, cores e sabores. Há o milho roxo, branco, amarelo, laranja, multicolorido e rajado. O arroz preto, vermelho, branco e creme; o feijão mouro, preto, vermelho, branco e verde. Favas com vagens compridas e curtas; ervilhas beges e verdes, lisas e rugosas. Há espécies e variedades cultivadas somente pelos agricultores, sem similares no mercado, como o tradicional porongo, utilizado para fabricação da cuia para o chimarrão, e a esponja, utilizada para lavar louça e tomar banho.
Sabor especial
São espécies e variedades selecionadas e mantidas pelas famílias ao longo de gerações, por apresentarem sabor especial, por tradição mantida ao longo do tempo, por herança repassada através de gerações, para reduzir os custos de manutenção da propriedade. Por não serem transgênicas e serem saudáveis devido ao modo como são produzidas
Restrições a sementes crioulas
A publicação que divulga a experiência com o kit diversidade também reserva espaço para discutir os entraves que a legislação brasileira impõe para a produção de sementes de variedades crioulas. Um dos capítulos traz análises sobre a atual legislação de sementes e mudas no Brasil e seus impactos.
O material destaca dificuldades para a atuação da agricultura familiar em relação à aplicabilidade da Lei de Sementes e Mudas (Lei 10.711/03), de 2003. Uma delas é que sua formulação está em boa parte baseada nas atividades das grandes empresas
do setor agrícola-industrial e no mercado das commodities, o
que gera problemas quanto ao uso de sementes crioulas.
Entre eles:
– Recusa de acesso ao seguro agrícola, pois o mesmo exige que as sementes utilizadas estejam cadastradas no Zoneamento
Agrícola de Risco Climático do MAPA o que só é possível para cultivares registradas no Registro Nacional de Cultivares;
– Em caso de optar pelo Registro Nacional de Cultivares, o formulário pressupõe um alto nível de uniformidade genética, que não existe nas variedades crioulas;
– Proibição da comercialização de sementes produzidas por organização de agricultores da agricultura familiar;
Além de abordar o assunto, a publicação traz sugestões para superação dos impasses legais.
Fonte: Publicação ´Kit Diversidade – Estratégias para Segurança Alimentar e Valorização das Sementes Locais`