Na Midia: Presenças de Antelo

08/03/2010 09:45

Artigo de Maria Lúcia de Barros Camargo, Pró-Reitora de Pós-Graduação da UFSC, no Caderno de Cultura do Diário Catarinense, sábado, 6/03

Ausências, o pequeno grande livro de Raúl Antelo, deseja um leitor-autor, um leitor que se integre ao movimento de produção de novos sentidos, que seja surpreendido por produzir novos sentidos, que mantenha sobre o texto um olhar especial, aberto à vertigem. Generoso, nosso autor nos auxilia a entrar nesse movimento em busca de novos sentidos ao promover encontros insuspeitados, ao descobrir genealogias desconcertantes, ao produzir estranhamentos e surpresas nas relações que arma.

Ao trazer à presença do leitor estes textos até então dispersos, estes fragmentos, Raúl Antelo refaz o movimento paradoxal de “combinar dispersão e reunião”, reafirmando-se ele também como o intelectual de Blanchot, aquele que sabe inter-ler. Este saber se manifesta aqui não pela via autoritária da interpretação que congela os sentidos, mas pela produção de faíscas intermitentes, de choques, de desassossegos, exatamente por apresentar aquilo que sempre esteve aí, mas impossível de ser visto, cegos que somos.

Por trazer à presença do texto uma série de ausências, de abandonos –para usar um termo caro a Raúl Antelo –, as quais, retiradas do esquecimento a que estavam relegadas, exigem que esqueçamos o que estava assente, o que julgávamos saber. Afinal, o que reúne, numa mesma série de textos, Baudelaire, Patagônia, Rui Barbosa, Murilo Mendes e o modernismo de Sérgio Buarque de Holanda e Mário de Andrade? A questão do moderno e do antimoderno, poderemos responder sem maiores riscos de nos equivocarmos. Mas é muito mais do que isso.

Se esta série já é no mínimo curiosa, mais surpreendente ainda é nos depararmos, já no primeiro ensaio do volume, com uma releitura de As flores do mal, que se constrói, anunciadamente, a partir de dois princípios complementares – “nossa amnésia” é um fato, “permitam-me lembrar que” o antídoto – para construir, ou, melhor dizendo, para escavar e desentranhar “uma nova genealogia” que permita compreender não apenas a modernidade, mas a ideia, “à primeira vista paradoxal”, de que “é nas margens que melhor se realiza a modernidade”.

Esse movimento de rememoração é, sem dúvida, um procedimento de releitura do arquivo, de rearranjo do que sempre esteve lá, na Revue des Deuxs Mondes, à espera de outro leitor que pudesse inter-ler, que pudesse reordenar as séries, fazendo sair chispas desses reencontros inesperados: a floresta amazônica, esta floresta de símbolos, na descrição do geógrafo francês Reclus, a escravidão na Havana da Condessa e mestiça Mercédès Merlin, a teoria das correspondências do antimoderno e moderníssimo Baudelaire.

Estas aproximações põem em movimento uma rede proliferante de associações, inusitadas apenas porque esquecidas, já que lá estavam, à espera, naquele arquivo dos dois mundos, essa vitrina, como diz Antelo, que exibe a cultura que tornou possível os poemas de As flores do mal. Uma vez deflagrado o processo, a rede proliferante – sintoma – transita também no tempo, não apenas para reler a cultura da modernidade, mas para relê-la também como efeito diferido, para redescobri-la no presente, signos de nossos tempos. E é o prazer da redescoberta que Raúl Antelo nos propicia.

Indo da Amazônia à Patagônia, estes extremos do continente sul-americano, Raúl Antelo leva o leitor a se defrontar com o problema do significante vazio, do sem-sentido, da ausência, tudo que põe em ação o problema mesmo do sentido, ou de sua falta. E a encontrar aí também a proliferação, teórica e, mais uma vez, os paradoxos, e as redes a disseminar sentidos, a recuperar abandonos.

Mas, se é o vazio e a ausência, ab-sens, que estão em pauta nestes confins, estão presentes neste texto alguns dos frequentadores assíduos dos ensaios de Raúl Antelo, Roger Caillois e Walter Benjamin, estes “críticos da cultura[…] leitores de semelhanças imateriais, sujeitos que estimulam o reencontro, diferido, com aquela imaterialidade esquecida pela história. É a ideia de ‘ler o que nunca foi escrito’”, nos diz Raúl Antelo. Falando de Caillois e de Walter Benjamin, mas certamente falando de Raúl Antelo, como esse livro nos mostra inequivocamente.

Um dos grandes exemplos desse seu modo peculiar de exercer a crítica da cultura e a “arqueologia de nossa modernidade” está na releitura absolutamente surpreendente que faz de Rui Barbosa: encontrando marcas das discussões mais contemporâneas sobre a neutralidade. E, ao mesmo tempo, a presença das reflexões sobre o intelectual, agora a partir de Blanchot, fala de si falando do outro: o intelectual é aquele que, ao combinar dispersão e reunião, ao inter-legere, forma “novas constelações de sentido”. Assim, mais do que retirar do esquecimento alguns textos desconhecidos ou pouco estudados de Rui Barbosa, o que encontramos neste ensaio é um outro Rui que agora se nos apresenta, se torna presente, no presente, sem se tornar monumento.

Reler Murilo Mendes certamente não causa surpresa num frequentador dos textos de Raúl Antelo – na verdade, nem mesmo essa atualização de escritos de Rui Barbosa deveria causá-la – mas é o processo de leitura que é sempre surpreendente. Questões polêmicas, séries heterogêneas, filiações desconcertantes, ampla mobilização do sofisticado arcabouço teórico-crítico e incansável escavação dos arquivos, tudo se mobiliza para desentranhar sentidos e construir uma nova leitura que reavalia o valor do elemento religioso na obra de Murilo Mendes. Cabe registrar que este ensaio, apresentado pela primeira vez em 2001, já apresenta um “elogio da profanação” em termos muito próximos daqueles tratados por Agamben em seu livro de 2005. Antecipações, aproximações.

De Murilo Mendes e toda a rede em que foi inserido, o leitor chega ao último ensaio do livro, cujo título remete, de algum modo, ao conjunto: “Modernismo, repurificação e lembrança do presente.” Aqui, uma nova e sempre surpreendente rede de relações se constrói para discutir o déjà vu histórico cultural e “traçar a genealogia dessa lembrança do presente tão ativa a partir da Semana de Arte Moderna”. Para isso, o processo é o de trabalhar – desentranhar, diz Raúl – com os próprios textos programáticos da Semana.

E assim, aqui neste livro, está um desafio que nos propõe Raúl Antelo: formar novas constelações de sentido, colecionar benjaminianamente elementos heterogêneos, insuspeitada similaridade acompanhá-lo nesse estilo lacunar, e ao mesmo tempo generoso – em que ele dá as fontes, cita, mas não fecha interpretações. Fala de si falando do outro e, especialmente, insere o leitor na rede de aproximações, dando-lhe a possibilidade de presença ao mesmo tempo ativa e passiva na produção de novos sentidos.

POR MARIA LÚCIA DE BARROS CAMARGO

Pró-reitora de pós gradução e professora de teoria literária da UFSC, autora de Atrás dos Olhos Pardos (Argos/Unochapecó). Este texto é o prefácio do livro Ausências, de Raúl Antelo, publicado em 2009, pela Editora da Casa.