Frequentar fila, estacionar e estudar também podem ser atitudes antiéticas
A fila é enorme, e a fome também. É nessa hora que o famoso jeitinho brasileiro entra em cena. O cidadão dá uma voltinha pela fila do Restaurante Universitário à procura de cúmplices, digo, amigos, e torce para que eles estejam bem pertinho da porta de entrada. Sem disfarce nem vergonha, o espertinho engata uma conversa animada e se espreita para dentro da fila. Está feito. Ele passou na frente de centenas de alunos que estão com a mesma pressa, e a mesma fome.
Essa é uma cena diária e comum. O fato é que se criou uma cultura onde todos acham normal furar a fila, poucos reclamam dos furões ou negam um ‘espacinho’ para seus amigos. “O Brasil é extremamente permissivo, e é por isso que a situação continua acontecendo. Torna-se mais visível quem se opõe ao comportamento do que quem transgride, isso quer dizer que somos complacentes. As pessoas não se manifestam porque querem que ninguém reclame quando elas fizerem o mesmo”.
Motivado pela indignação de ver a elite intelectual tendo atitudes igualmente corruptas àquelas que questionamos dos governantes, o aluno de Psicologia Leonardo Pereira de Lima foi além do que geralmente vemos – pessoas passivas ou manifestações mudas. Em agosto de 2009 criou o blog http://respeiteafiladoru.blogspot.com. O título já é autoexplicativo. Entre textos reflexivos e provocadores, Leonardo propõe uma enquete: Entre 153 respondentes, 19% acreditam que furar filas não tem implicações morais, éticas ou concretas. Um aluno da quinta fase, que não quis se identificar, tem essa mesma posição: “A tradição da fila do RU é furar a fila do RU. Desde que você é calouro você aprende que ela não anda em linha reta, e sim para os lados. Não vejo relação entre fazer isso e ser corrupto ou antiético”.
A iniciativa de Leonardo não para por aí. O estudante realizou uma pesquisa em que aplicou questionários a 61 pessoas que esperavam na fila do Restaurante Universitário. Destas, 49 consideram que furar a fila é tolerável, e a justificativa mais aceitável é por estar atrasado, seguido de ter a companhia dos amigos. Refletindo o que observamos diariamente, quase 70% costumam ter esse comportamento. Esse não é um problema local: na Universidade de São Carlos a solução foi contratar guardas para fazer o controle, e na Universidade de São Paulo estão sendo distribuídas senhas. Aqui, por enquanto, a medida é de conscientização através de campanhas, que devem começar semestre que vem.
Falta de ética dá poder
Parece que a educação também está passando longe de alguns motoristas, que insistem em estacionar nas rótulas do Campus, atrapalhando a passagem do transporte coletivo. Nem as placas de proibido estacionar os intimidam. A Segurança do Campus, responsável por fazer a vigilância do local durante 24 horas, passa pelos carros deixando uma notificação de que eles estão irregulares.
Mas, no dia seguinte, lá estão eles de novo. Com a recorrência dos casos, a Universidade solicitou que a Guarda Municipal fizesse rondas nas rótulas, o que vem acontecendo quase que diariamente há cerca de cinco meses. Segundo o chefe de operações Joseney Pereira, no começo eles chegavam a multar 50 carros por dia. Hoje, é uma média de 20. Mesmo correndo o risco de que a imprudência pese no bolso, os números ainda não chegaram à zero.
É com iniciativa de algumas pessoas que a mudança começa. No segundo semestre deste ano, a Biblioteca Universitária relançou um movimento solitário a favor do silêncio. Observando o barulho excessivo e crescente, a equipe da BU resolveu resgatar a idéia de uma campanha feita em 1997, em parceria com o Departamento de Design. Logo na porta de entrada da Biblioteca há cartazes divertidos que alertam para o barulho com a representação de onomatopéias e da palavra Silêncio em dez idiomas. Para reforçar, os bibliotecários passam de mesa em mesa pedindo para os alunos baixarem o volume da conversa, quando necessário. Narcisa Amboni, diretora da BU, aponta os resultados da iniciativa: “No começo, a campanha foi muito positiva. O barulho diminuiu consideravelmente, mas hoje o resultado já se perdeu. É uma questão cultural, é preciso sensibilizar toda comunidade da importância de termos silêncio na Biblioteca proporcionando desta forma a reflexão e a pesquisa. Estamos revendo o que podemos na campanha, nós não desistimos”.
Essas transgressões não têm implicações jurídicas, com exceção do estacionamento nas rótulas, mas não quer dizer que são éticas. “Todos esses são exemplos de regras que colocam limites artificiais e que permitem a convivência harmônica. Nas filas, há uma regra preestabelecida. Quem fura está se dando bem em cima dos outros. Na Biblioteca Universitária, há uma regra da Instituição de que não se deve falar alto. E para os carros nas rótulas há uma lei do Estado, é uma conduta jurídica”, diz Jeanine Nicolazee Philippi, professora de ética do Departamento de Direito.
Seria pretensão tentar apontar todas as atitudes da nossa comunidade universitária que apresentam implicações éticas. Infinitos fatores também teriam que ser citados, como a falta de debate, as conversas nas salas de aula, e os rabiscos nos livros da biblioteca. É importante que consigamos identificar essas práticas e conscientizar de suas conseqüências. “A nossa maturidade está diretamente ligada à capacidade que nós temos de avaliar as nossas atitudes e perceber que elas afetam a vida dos outros. Nós não aprendemos a fazer isso. É cada um por si, não somos cooperativos.”, diz a professora de Psicologia Olga Kubo.
Segundo Jeanine, a malandragem está presente em todos os segmentos: alunos, professores e técnicos. “Os que levam vantagem se destacam por isso. Se colocar acima da lei é algo referenciado, dá prestígio, poder.” Enraizadas em nossa cultura, essas e outras atitudes são aceitas como normais e inconseqüentes. Enquanto nossos heróis forem os malandros, continuará imperando a famosa Lei de Gérson: nós devemos levar vantagem em tudo.
Por Tifany Ródio/ Bolsista de Jornalismo na Agecom
Fotos: Jones Bastos