
Fotos: Cláudia Schaun Reis/ Acervo IPHAN/NUER
A estrada de barro e pedras é igual em toda a sua extensão. As raras placas não indicam nomes de ruas, mas dos moradores – o mais antigo de toda a família – encontrados no fim de cada uma delas. O segredo para não se perder é seguir sempre as pedrinhas. Pegar um caminho sem elas significa sair da principal. A largura da estrada é suficiente para que um carro passe folgado, mas em vários trechos – principalmente os de curvas – só há mesmo espaço para um veículo.
São dez horas da noite. Paramos o carro na principal, a fim de captar sons noturnos que servirão para o vídeo-documentário. Além de nós, nada. Ou talvez muito. A estrada, o mato, o céu nublado. Uma vastidão que, se o céu estivesse limpo, não conseguiríamos enxergar. O costume da cidade nos faz pensar que talvez não fosse adequado deixar o carro ali no meio da estrada, mas lembramos que seria quase impossível alguém passar por ali àquela hora. Vemos luzes, mas não são de moradores: verdes, bailam entre nós, lumes que vagam.
Penso que estamos em janeiro de 2008, podemos nos comunicar com qualquer pessoa do planeta, em tempo real, através da internet; lembro dos celulares com câmeras, dos tocadores de música digital. Mas ali, na Invernada dos Negros, comunidade situada a 20 km de Campos Novos, cidade do oeste catarinense, as coisas parecem ser iguais há muito tempo.
Mudanças – A impressão é só minha. No dia seguinte confirmo mais uma vez que, para a comunidade da Invernada, muita coisa já mudou. É um domingo de festa, e a Associação dos Moradores recebe as famílias para um almoço de galinha, arroz, salada e polenta. Muitos vêm a pé, em caminhadas de 20, 30 minutos, uma hora ou mais; outros trazem os parentes em Fuscas e Chevetes. Nas paredes da Associação, eles vêem a si mesmos: as fotos foram batidas pela equipe de Raquel Mombelli – doutoranda do curso de Pós-graduação em Antropologia Social e pesquisadora do Núcleo de Estudos sobre Identidade e Relações Interétnicas (NUER) da UFSC – e escolhidas pela própria comunidade, que apontou aquelas com as quais mais se identificava.
Dentre as conversas, escuto comentários de que agora que a região tem estradas é que alguns deles se perdem. Com a mata tomando conta de tudo era mais fácil chegar aonde se precisava.
Numa das fotos expostas está Seu João. Ele trouxe a família para a festa, e também nos recebeu em sua casa no dia anterior para conversar sobre a vida que leva na Invernada. As histórias de Seu João e de outros moradores farão parte de um vídeo-documentário encomendado pelo NUER e pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e que está sendo realizado pela documentarista Claudia Aguiyrre. As fotos foram entregues à comunidade no dia da festa e, junto com o vídeo-documentário, integrarão o Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC), do IPHAN, a fim de constituir a história dos quilombolas – assim chamadas as comunidades remanescentes de quilombos, como a Invernada dos Negros – de todo o Brasil.
João Francisco Garipuna recebe a equipe que vai registrar sua história e ruma sem pressa para dentro de casa para trocar de roupa. Volta trajando camisa, calça e botas de borracha cortadas pela canela – que, descobrimos depois, é o melhor calçado para se usar na Invernada, principalmente nos dias chuvosos. Seu João trabalha com a terra desde menino. A casa onde mora foi construída no local onde seus bisavós já viviam. Teve dois filhos e os oito netos que moram no mesmo terreno, em casas próximas, trabalham na roça para dar de comer aos seus pequenos. “Sou pai e pai-velho”, explica, contando que criou os netos desde quando o pai deles lhes faltou. Todos eles plantam feijão e milho (os dois dão na mesma época, então precisam escolher um ou outro para plantar por vez), mandioca, batata-doce e “aveia para dar de comer à criação”.
Seu João é da época do Puxeirão. “A gente trabalhava a semana inteira de graça no terreno dos outros para nada. Por um prato de comida e um copo de cachaça”, relembra soltando uma risada
curta.
João Maria previu – Aos 78 anos, ele diz que “guardou poucas coisas na idéia” sobre a visita de João Maria à região. Conhecido como um dos três monges da Guerra do Contestado, na segunda década do século XX, João Maria permanece na memória da comunidade da Invernada.
“Meu bisavô o conheceu. João Maria dizia que ia chegar um tempo em que os pobres iam sofrer barbaridade, mas que depois tudo ia passar. A religião ia diminuir e a criação também, e os campos virariam mato e os matos virariam campo”.
Dona Roseli Garipuna, nora de seu João, só observa a movimentação toda em volta de sua casa. No outro dia é convidada a falar para a câmera sobre o poço de água do terreno. “Esse aqui é conhecido como o Poço do João Maria, porque ele passou por aqui e o poço ficou. Seu João diz que fosse onde ele pousava, se não tivesse água, acabava surgindo”. Ela conta que até hoje há pessoas que pedem um pouco da água para batizar suas crianças. Depois de falar do poço ela responde também às perguntas feitas ao sogro no dia anterior. “Faz 27 anos que vivo aqui”. Dona Roseli enviuvou com 30 e, aos 42, também cuida da criação, da casa e ajuda a criar os seis netos.
Cidade ou campo? – Giovani Garipuna é filho de dona Roseli, completou 18 anos e não pretende trabalhar na cidade. “Se não tiver vontade de fazer algo num pedaço de chão tem que ir pra cidade se virar, trabalhar de empregado, e o emprego é pouco. Quero ficar aqui. Se eu sair vou ter que pagar aluguel, começar tudo de novo. O jeito é tentar ficar, ver se de repente melhora”. Ele estudou até a 4ª série e depois parou porque a comunidade não possui escolas de ensino médio. Sério, sorri quando fala do que gosta de fazer para se divertir. “Nós vamos para o barzinho jogar caixeta, sinuca, mas eu gosto mesmo é de futebol. A gente tinha um time, mas agora acabou”. Quando Raquel conta que o time vai ser reorganizado, ele abre ainda mais o sorriso. “Que beleza! Vão fazer de novo!”.
Ainda que a dúvida sobre ir para a cidade o assalte de vez em quando, Giovani sabe onde quer ficar. “O mais legal é a convivência com as pessoas, as plantas e os animais. A gente nasceu e se criou junto, é o que a gente gosta de fazer”.
Casamentos em família – Seu Vino, hoje com 63 anos, já trabalhou na cidade, e preferiu voltar para a Invernada depois da aposentadoria. “Aqui a gente cuida das galinhas, dos porcos, e lá na cidade não tem nada pra fazer, só gastar”, explica, rindo. Valdevino de Souza é neto de Cândido Manuel de Souza, um dos escravos que herdaram as terras da Invernada, através de testamento. “Chegou num ponto que o fazendeiro olhou pra trás e disse que não era bem assim. O trabalho era duro, não tinha moleza. Se tivesse calçado ia, senão, ia sem mesmo. relembra Vino. Casado desde 1967 com Tereza de Souza, sua prima distante, Vino dá continuação a um hábito da comunidade: a partir dos escravos libertos, a Invernada foi se formando, nascendo e crescendo através das uniões dos filhos e netos dos alforriados. Os moradores da região, então, acabam sendo todos um pouco parentes de todos.
O testamento de Matheus José de Souza e Oliveira data de 1877, e deixa registrado o desejo de passar suas terras aos escravos. “Este é o meu testamento e ultima vontade; (…) Declaro que achando-me doente na Cama de moléstia que Deos me deu, porem achando-me em meu perfeito juizo e entendimento rezolvi á dispor de minha ultima vontade pela firma seguinte. Declaro que dei liberdade há tempo aos Escravos de nomes Margarida, Damazia, e Joaquim (…). Deixo por meu fallecimento não só aos escravos a quem já dei liberdade como aos que ainda se acham Captivos por meu fallecimento, e que ficarão livres pelo ultimo daquelle de nós que fallecer, a minha terça a qual lhes será dada em Campos e terras lavradias dentro da Envernada e na linha que divide com meu Irmão João Antunes de Souza. Declaro que desses terrenos elles nunca por si nem por seus descendentes poderão a vender, hypothecar, e nem alhear por forma alguma, nem mesmo será sujeito a Inventario, por morte de qualquer delles, visto Como elles e seus descendentes são apenas uzufructuarios, e assim irá passando de pais e filhos por morte daquelles que forem fallecendo.(…)”.
Depois dos anos 1970 a região da Invernada passou oficialmente a se chamar Corredeira, mas seus moradores não costumam utilizar esse nome. Desde 2005 as terras da Invernada estão em processo de regularização fundiária, através do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA/SC).
É na casa de Nair, irmã de Tereza, que pousamos. No dia anterior à festa, Tereza, Nair e Jandira ficam até tarde da noite preparando as galinhas e a polenta. Depois de todo o trabalho, Tereza se senta à mesa, come com as duas irmãs e o marido e nos desafia para uma partida de canastra. “Quando jogamos truco chegamos a subir na mesa”, conta com um ar de quem sabe todas as manhas do jogo. Não por acaso, nossa equipe perde as três rodadas.
Tereza tem dois filhos, um deles adotado. “Fazia três anos que estava casada e ainda não tinha engravidado. Soube de um menino recém-nascido que seria jogado no rio porque a mãe não o queria, então peguei. Oito meses depois engravidei”. O casamento com Vino foi realizado na cidade, “mas na Igreja foi aqui. A gente marcava com o padre durante a semana, depois da missa, para realizar a cerimônia no final da semana”.
Políticas públicas – Enquanto joga, Nair me explica como funciona a Arca das Letras: em sua casa há uma pequena estante com todo tipo de livros: infantis, romances, didáticos. “O responsável pela educação em cada comunidade deve solicitar à Eletrosul uma arca. Depois de retirada, ela fica na casa do responsável – que aqui na Invernada sou eu – e as pessoas vêm até aqui emprestá-los”. Nair também tem aproveitado bastante o novo móvel da sala. “Tem vezes que fico até de madrugada lendo. Eu não sabia o que significava o termo ‘políticas públicas’, então descobri um livro que falava a respeito. Agora entendo o que o pessoal da Associação de Moradores conversa”.
Na manhã seguinte à jogatina as mulheres acordam cedo. Sempre há muito trabalho a fazer. Além de Jandira, que vive na cidade, Tereza e Vino dormiram na casa de Nair, apesar de morarem ali pertinho, no terreno que vai se estendendo e se dividindo entre os irmãos e parentes. Antes de sair para casa alimentar a criação e colher verduras para a salada, ouço Tereza comentar com Nair sobre a partilha de legumes. “Perguntaram quem queria levar pepino. Eu não trouxe porque em casa tenho, graças a Deus. Se trouxesse, depois alguém que não tem poderia ficar sem”.
Ensinar e alimentar – A divisão dos alimentos se dá na Horta Comunitária dos Remanescentes dos Quilombos: o projeto da Caixa Econômica Federal e da Epagri estimula a comunidade a conhecer e adotar a agricultura orgânica. Ao chegar na horta somos recebidos por Antônio de Souza. Um aperto de mão e ele se apresenta: “eu sou conhecido pelo apelido de Nico”.
A horta funciona através do sistema de permacultura, que, dentre outros fatores, respeita o tempo certo para cada plantação se desenvolver, analisa quais culturas podem ser plantadas juntas, além de ser mais sustentável, mais permanente – daí o nome – para a comunidade e o planeta. “Nós semeamos, plantamos, colhemos e distribuímos no sábado. As pessoas pagam um real por mês para a conta de luz e a compra de alguma ferramenta”, explica Nico.
O objetivo principal, porém, não é a obtenção de alimentos. “Um agrônomo vem de tempos em tempos nos ensinar. Como é que planta, como é que colhe, como é que luta? Antes de comer, viemos aqui para aprender”. A variedade é grande: alface, couve, salsinha, cenoura: “orgânico é mais fácil de plantar. O veneno é tóxico, a terra nem aceita… Estão vendo como é que está? Uma maravilha!”, completa.
A Invernada se beneficia do trabalho de todos. O comércio existe, mas as relações em que ele se sustenta são outras. Freqüente é o Mercado de Trocas: durante uma manhã do fim de semana as mulheres, em sua maioria, se reúnem para compartilhar daquilo que é produzido em suas casas. Feijão, ovos, legumes, compotas e por vezes roupas e outros objetos são trocados entre elas. Depois das trocas, o que sobra é vendido.
Entre partos e benzeduras – Dona Maria Santa de Souza, aos 66 anos, também já trocou muito de seu trabalho. Várias gerações na Invernada nasceram por suas mãos. “Quantas crianças? Ih, tenho que fazer uma lista. Mas todas que eu ajudei a nascer nunca tiveram cólica”. Sua bisavó era Damásia, uma das escravas que herdou as terras. “Ela era uma nega véia muito disposta e brava. Tinha o pescoço grosso”. Miudinha e com um olhar muito meigo, dona Santa também é requisitada para auxiliar em diversos tipos de problemas. “Benzedura? Eu? De tudo! Nunca morreu uma criação de picada de cobra! E cada benzedura é diferente. Se eu fizer pra você vai ser diferente da que eu fizer pra ela. Duvido que vai ter palavra igual em cada uma”.
Invernada dos Negros tem suas visões, ou melhor, visagens, como eles mesmos chamam. Tesouros escondidos embaixo da terra? Vários são os relatos sobre espíritos rondando a região, que indicariam lugares onde se poderia encontrar um pote com ouro. Dona Santa lembra que um tempo atrás viu “um cão com os peitos amarelos dobrar atrás de uma árvore e sumir. Nunca encontrei um pote com ouro, mas se algum dia achar, eu vou dividir ”.
Talvez o tesouro seja mesmo aquele chão, macerado diariamente pelas pisadas de homens e mulheres às voltas com a criação, revolvido pelas mãos escuras em busca do aconchego para mais algumas sementes. O ouro da Invernada dos Negros é o passado, o presente e, quem sabe, o futuro plantado e germinado pelos remanescentes do quilombo da Invernada dos Negros.
Por Cláudia Schaun Reis/ Jornalista na Agecom