Especial Enchentes: Trauma da tragédia atinge adultos e crianças

15/12/2008 10:21

Fotos: Juliana Kroeger

Fotos: Juliana Kroeger

Já faz 19 dias que as chuvas arrasaram seu bairro, na Pedra de Amolar, nas encostas do Morro do Baú, mas Carla Laís Schmitt, 15 anos, ainda não consegue dormir. Separada da mãe, que preferiu ficar mais perto de casa, com o tio, e do pai, que está viajando, ela se encontra fora de perigo, abrigada por amigos no centro de Ilhota, o município mais atingido pelas cheias em Santa Catarina, mas tem sinais visíveis de trauma psicológico. Quando a chuva reinicia, a cada minuto ela apóia a palma da mão aberta sobre o assoalho pra sentir se há umidade. Por experiência, sabe que depois de a água entrar em casa é questão de poucos minutos pra tudo ficar submerso. “Tenho medo de dormir”, revela.

Enquanto seleciona cabisbaixa produtos de higiene pessoal entre as toneladas de donativos do Centro de Recolhimento e Triagem da Defesa Civil, as cenas do dia da tragédia passam como em um filme pelos olhos tristonhos dessa menina de descendência alemã. Eram 21h30min de domingo, quando ouviu um estrondo de origem ignorada. Na escuridão total, ela e o irmão deixaram a casa com água pelo pescoço e se refugiaram na propriedade de amigos. No caminho, bateram-se em rochas e feriram-se no roseiral. Ela fala das manchas roxas que ainda lhe cobrem as costas e as pernas. Pela manhã, retornaram à residência dos pais e o que viram? “O morro tinha desabado sobre nossa casa e a dos vizinhos. Nunca vi uma coisa dessas, nem em filme”.

Ser professora em outra cidade – Seu drama pessoal é apenas engate para lembrar o drama de pessoas próximas, todas enredadas em histórias tão ou mais trágicas do que a sua, porque marcadas pela morte. Foram 15 perdas, entre amigos e parentes soterrados ou levados pela correnteza. É o avô que morreu com o neto nos braços, a mulher grávida atingida por uma viga, dois amigos lançados contra o morro, três famílias inteiras soterradas, a colega de aula que bateu a cabeça contra uma rocha… Sem experiência com outras enchentes, Carla quer esquecer o que houve e reconstruir a vida. Sonha em concluir o ensino médio e estudar para ser professora, mas bem longe de Ilhota.

Pouco distante dali, no abrigo de Baú Baixo, Altino Richartz, 59 anos, agricultor, também vaga de um lado para outro como Carla. Seus olhos estão vidrados de pavor. Trazem a marca de quem sofreu a violência de perder, no mesmo dia, oito membros da família. Faz questão de discriminar todos eles, com precisão e objetividade. Em sua propriedade, morreram a mulher e a filha, de 27 anos, ao lado de quem permaneceu por nove horas aguardando socorro. Ela teve a perna presa sob a laje e conseguiu pedir ajuda pelo celular, mas faleceu a caminho do hospital. O irmão, o filho e a mulher foram soterrados em outra casa e o genro, mais uma filha e o neto, em uma terceira. Perdeu a casa e o terreno no Braço do Baú e não tem idéia por onde vai recomeçar a vida. “Ronca trovoada fico todo arrepiado”, diz esse homem de poucas palavras e olhar assustado.

Richart predominam na lista de desabrigados – Afixada na entrada desse alojamento, uma lista estampa os nomes de 285 desabrigados de Ilhota. Pelo menos um terço deles pertence à família Richart ou Richartz e outras variações de grafia para os integrantes do mesmo tronco. Deste total, 150 fazem refeições no local e retornam para casa à noite e 70 estão alojados em tempo integral porque suas residências estão interditadas pela defesa civil. A maioria retornou ao trabalho na segunda-feira passada, dia 8, segundo Márcio Fábio, enfermeiro do Programa de Saúde Familiar, que coordena o abrigo. Uma turma de voluntários paulistas promove atividades de entretenimento para as 32 crianças, que estão de férias com o encerramento forçado do ano letivo, mas não há suporte psicológico para os adultos. Os parentes e amigos demonstram preocupação e respeito com Altino, cuja dor acreditam ter uma dimensão maior do que a deles. Com o aparecimento de um surto de diarréia e o registro de 38 de casos, a equipe da Vigilância Sanitária do município veio ao abrigo repassar orientações sobre a utilização da água e a higiene pessoal.

O trauma da tragédia não está restrito aos que perderam familiares ou foram diretamente atingidos. As crianças parecem ser as mais sensíveis. No bairro da Velha, paramos para fotografar a paisagem desfigurada de um morro muito íngreme, onde quatro grandes casas de alvenaria desabaram em dois dias. Encontramos Rita de Cássia Reis, 38 anos, moradora de um prédio em frente, caminhando pela calçada. Ela conta que a filha, de 12 anos, ficou muito traumatizada com tudo que viu e olhava a janela a cada cinco minutos com medo de outras casas caírem. Para protegê-la, preferiu que perdesse o ano letivo e mandou-a para São Paulo, onde está fazendo terapia. “Assim ela fica longe desse cenário e dessas lembranças horríveis”.

“Por que vou morrer soterrada?” – No domingo, logo depois do desabamento da primeira residência, que parecia a mais segura, Rita e a filha acompanhavam da sacada a chuva caindo sobre o morro desprotegido e gritavam para as outras famílias que saíssem da área. Nesse dia, a rua foi interditada e a família de Caroline teve que passar a noite fora de casa. Sem conseguir compreender os momentos de pavor que vivia, entre a iminência do morro atravessar o outro lado da rua e engolir tudo em frente e do rio que passa aos fundos transbordar, perguntou à mãe: “O que eu fiz pra Deus; por que vou morrer soterrada?”. A mãe conta que pediu ajuda à defesa civil, mas ouviu que não havia mais nenhum caminhão disponível. “Não tinha o que fazer, estávamos entregues à própria sorte”. Funcionária das Casas Bahia, em Brusque, Rita já comunicou ao marido, que trabalha no bairro, sua decisão: a família não vai permanecer no local, porque da janela do seu apartamento o cenário a faz reviver o terror das cheias. “Até caixão arrancado pelas águas do cemitério aos fundos nós vimos descendo pela rua”.

Difícil medir o tamanho do trauma para o pequeno Júnior Ramos, de 11 anos, que perdeu o amigo de infância da mesma idade, filho do empregado do pai, dono de uma pequena fábrica de lajotas. Seu cenário não é menos desolador: na entrada da rua, no Bairro da Velha, em Blumenau, acumulam-se os entulhos que vieram sendo arrastados desde o alto do morro, formando um enorme aterro sanitário. Em meio aos escombros cobertos de lama, se reconhecem pertences pessoais, bonecas, vasos sanitários e até um computador. Nessa área, 11 casas desabaram e tudo que restou delas foi parar na boca da rua. Em cima é só lama e aterramento de todo tipo de vida…

“Ainda não conseguimos dormir em casa” – Essas casas abrigavam pelo menos seis pequenas empresas de latoaria e facção que empregavam em torno de 70 pessoas. Cinco moradores morreram, entre eles o pequeno Cassiano Lazarino, amigo de Júnior, que morava nos fundos da empresa de seu pai, na casa dos empregados. A família estava em casa orando pelas vítimas das cheias quando ouviram o primeiro estrondo e o pedido de ajuda do empregado Vildomar Lazarino. O patrão, Amarildo Ramos, conseguiu retirar o funcionário e sua mulher, que foi empurrada contra o barranco e fraturou a bacia, mas não encontrou o menino antes da construção desabar. Cassiano só foi localizado no dia seguinte, pelos bombeiros, preso embaixo da geladeira e soterrado pela lama. Quem conta é a mãe de Júnior, Sandra Ramos. “Ainda não conseguimos dormir em casa. Já tentamos, mas quando ouvimos o barulho da chuva tudo vem à tona. Meu filho se culpa por não ter salvado o amigo. Ouve barulho de casas desabando e diz que se estivessem brincando juntos isso não teria acontecido…” O corpo da criança foi levado para o Paraná, de onde é a família, mas a mãe, hospitalizada, não pôde comparecer ao enterro na quarta-feira, 10.

Apesar do prejuízo de R$ 300 mil com a perda do galpão da fábrica, de equipamentos e estoque, Amarildo diz que a grande perda foi a vida dos amigos e dos empregados. Abraça a companheira e diz que vai reconstruir tudo. “Não sou nascido aqui, mas como minha esposa, que é blumenauense, aprendi a ter fibra e força de vontade. Não vamos nos abater, nem perder a auto-estima”. Essa gente que sobrevive das cheias parece ser mesmo feita de outro barro. Comove quando chora e também quando sorri. Emociona quando se entrega à tristeza e quando exibe firmeza e quer dar a volta por cima.

Por Raquel Wandelli/ professora de Jornalismo, editora do jornal-laboratório Fato&Versão e pesquisadora do Programa Hipermídia Aplicada da Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul); jornalista do Ministério da Previdência e doutoranda em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). E-mail: raquelwandelli@gmail.com

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