Especial Enchentes: Moradores reencontram realidade na zona vermelha de Ilhota

Fotos: Juliana Kroeger
Assim como o quintal, cercado pelo exército como área vermelha, a construção de madeira revela uma habitação humilde e pequena que estampa a dignidade e o cuidado próprios da cultura dos imigrantes alemães. Em frente ao muro, uma parede de entulhos de concreto, terra, restos de vegetação e árvores caídas margeiam toda extensão da rua, produzindo uma visão assustadora que contrasta com a cena doméstica pueril. A porta principal, escancarada pela força da lama, deixa entrever e imaginar a vida privada dessa família de agricultores da zona rural de Ilhota, cujo paradeiro os vizinhos desconhecem.
Como uma bomba – Um mundo suspenso de porta-retratos, quadros e lembranças afetivas foi impiedosamente invadido pelas águas e pelo barranco: os quartos, de uma organização impecável, desceram pelo menos um metro do nível do chão, enquanto o assoalho da sala sofreu aclives e declives acentuados, como se uma bomba tivesse explodido por baixo da casa. O sofá de tecido florido foi virado de pernas pra cima e a lama barrou o acesso aos fundos da casa, que perigosamente recosta na soleira do Morro do Baú, condenado pela Defesa Civil. Mais uma chuva de grande volume, outra parte do gigante de barro que habita a montanha pode descer e varrer do mapa os vestígios do que era o bairro mais próspero de Ilhota, o Braço do Baú.
Tudo aos arredores da “casa dos sete anões” concorre para justificar a expressão “cenário de guerra” que os próprios moradores, inclusive as crianças, gostam de repetir com o horror e o susto ainda estampado nos olhos, mas de mangas arregaçadas para o trabalho de reconstrução. Inconformados com a proibição do exército e da defesa civil de terem acesso às suas casas, empresas e lavouras, decidiram não mais esperar pelo sinal verde das autoridades, prometido sempre para o dia seguinte. Com uma fome irrefreável de fazer a vida retomar o seu curso, homens e mulheres ameaçaram na quarta, 10, rebelar-se e mobilizar sua gente recolhida nos abrigos para forçar a entrada na zona de perigo do Morro do Baú. Alegando que o rigor estava se restringindo aos moradores porque forasteiros e profissionais de mídia tinham acesso fácil, conseguiram flexibilizar um pouco a barreira para começar a pôr em ordem suas empresas, supermercados e fábricas situados nos dois quilômetros do primeiro patamar da área interditada.
E foi assim que nossa pequena equipe – formada por Dauro Veras, free-lancer a serviço do jornal Valor Econômico, de São Paulo, a fotógrafa e repórter Juliana Kroeger, correspondente da Caros Amigos, formada em Jornalismo pela Unisul e mestranda em História, o aluno da sexta fase de Jornalismo da Estácio de Sá, Vicente Figueiredo – e eu testemunhamos o primeiro dia do reencontro de alguns habitantes com a realidade de suas vidas após 19 dias do bombardeio de lama e chuva.
Pé descalço para poupar chinelo – Acompanhados por uma chuvinha fina e intermitente e pelo dono de confecção de toalhas profissionais Nelson Richarts, conseguimos ultrapassar por duas horas a barreira militar da zona vermelha com nossas galochas, câmaras fotográficas e olhar de perplexidade. Os relatos que trazemos a partir de hoje reverenciam a fibra e o espírito comunitário inigualável dessa gente que sobreviveu à tragédia. As histórias que se seguem são dedicadas especialmente a esse humilde empresário-guia que, com o pé descalço sobre a lama para poupar o chinelo de dedo, lavou nossas galochas para que prosseguíssemos com mais conforto a missão jornalística rumo aos abrigos de Baú Baixo e, no dia seguinte, em direção aos bairros destruídos de Blumenau. Ele próprio nos deu, com seu exemplo de humildade e obstinação, a certeza que queríamos: essa gente que planta contos de fada no quintal só precisa de um pouco de apoio dos governos e do sistema financeiro, outro tanto de autonomia de organização para que, por seus próprios méritos, em pouco tempo consiga reconstruir a paz, à beira da montanha ou em outro lugar.
Por Raquel Wandelli/ professora de Jornalismo, editora do jornal-laboratório Fato&Versão e pesquisadora do Programa Hipermídia Aplicada da Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul); jornalista do Ministério da Previdência e doutoranda em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). E-mail: raquelwandelli@gmail.com
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