Solidário com as minorias

28/10/2008 10:20

Poucos intelectuais catarinenses mantiveram, ao longo da vida, a postura crítica e a coerência exibidas pelo antropólogo Sílvio Coelho dos Santos, falecido no último domingo, dia 26, aos 70 anos. Antes de morrer, como fazia há duas ou três décadas, ele continuava denunciando as perversidades de um sistema que alija as minorias da possibilidade de acesso à cultura e à ascensão social. Suas baterias eram assestadas contra o caráter cada vez mais egoísta e menos solidário da sociedade brasileira. Com a imensa lição dada pelo despojamento dos índios, com quem trabalhou de Sul a Norte, ele ainda se surpreendia com a intolerância das elites no país.

“Vemos com preocupação a grande resistência às políticas de ações afirmativas, traduzidas pelas cotas aos negros e índios, dentro das universidades, que são uma extensão da sociedade”, disse ele ao jornal Notícias do Dia, em reportagem publicada no dia 5 de setembro deste ano. Um dia antes, Sílvio realizou sua última atividade na UFSC, participando do Círculo de Leitura, no Espaço Cruz e Sousa da EdUFSC.

Autor de seis livros que abordam a questão indígena, que foi objeto de suas pesquisas desde a juventude, Sílvio afirmou na entrevista que a Constituição de 1988 abriu espaço para o reconhecimento da existência de 200 povos indígenas no Brasil. Contudo, não se cumpre atualmente o que diz a abertura do texto legal, que define o Brasil como um país pluriétnico e multi-societário, tanto que no rumoroso caso da reserva Raposa Serra do Sol, em Roraima, “meia dúzia de arrozeiros se apossa de uma área enorme e ainda encontra apoios de autoridades”.

As aventuras dos gibis e livros que Sílvio Coelho leu na infância foram trocadas pelas aventuras na selva em 1962, quando ele entrou para a Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro, e fez um ano de especialização em antropologia. Foi quando, com menos de 24 anos, teve o primeiro contato com a Amazônia e suas tribos indígenas, na fronteira com o Peru e a Colômbia, numa expedição antropológica que jamais esqueceu. Voltou em seguida, com formação diferenciada, na condição de professor iniciante da UFSC. Era o início da carreira acadêmica, que depois se desdobrou para uma antropologia de caráter social, oito livros publicados e uma vida dedicada ao estudo das relações entre índios e brancos no Brasil.

Um pioneiro no campus – Sílvio Coelho foi do tempo em que os meninos iam ao cinema nas sessões de domingo à tarde e, depois do filme, trocavam gibis de seus heróis em quadrinhos. Muito cedo, mudou-se com os pais para uma chácara na Agronômica, numa época (anos 40) em que esta área era tipicamente rural. Depois, começou a estudar na escola Lauro Muller e no grupo escolar Dias Velho. Ali, precoce, tornou-se líder de seu grupo quando redigiu o jornalzinho da escola, tomando os primeiros contatos com os livros e a literatura.

Sílvio queria ser engenheiro, mas a família – seu pai foi sapateiro e depois sócio de lavanderia – não tinha recursos para sustentá-lo fora do Estado. Assim, formado no antigo Clássico e no Científico, começou a dar aulas, substituindo um primo que se mudou para Curitiba. Trabalhava de graça na formação de soldados do Batalhão Militar, apostando numa contratação posterior. Acabou passando num concurso para orientador pedagógico da prefeitura da Capital e fez outros “bicos”, inclusive no Colégio Catarinense, onde aprendeu a conviver com o que chamou de “pedagogia do medo” implantada, à época, pela direção da instituição.

Mais tarde, foi chamado pelo professor e historiador Oswaldo Rodrigues Cabral para trabalhar com ele na faculdade de Filosofia, que funcionava na rua Esteves Júnior e foi a primeira a mudar-se para o campus da Trindade. Foi um sufoco, porque não havia uma biblioteca especializada (os livros eram emprestados pelo professores) e os ônibus se arrastavam por um acesso de estrada de barro e poeira até a recém-criada UFSC. “Na época, só tinha o sábado para namorar, porque os domingos eram usados para preparar as aulas da semana”, contou ele na entrevista ao Notícias do Dia.

A ÚLTIMA ENTREVISTA

Abaixo, um resumo da entrevista feita pela Agecom com Sílvio Coelho dos Santos para divulgar sua participação no Círculo de Leitura de 4 de setembro de 2008:

Quais foram as suas primeiras leituras e que lembranças guardou delas?

Sílvio Coelho dos Santos – Minhas leituras iniciais foram os gibis, seguidos pelos livros de aventuras, como os da coleção Terramarear, Tarzan e outros neste gênero. Nos fins de semana, trocava gibis com os amigos no cinema, velha prática entre a criançada. Mesmo numa casa de poucos livros, era estimulado a ler pela mãe. No quinto ano primário, fui escolhido para redigir o jornalzinho do colégio (G. E. Dias Velho), e nessa função tinha contato freqüente com o diretor da Imprensa Oficial do Estado, que funcionava na rua Tenente Silveira. Lá, eu e meus colegas ganhávamos muitos livros. Era uma época de declamações, de leituras de Monteiro Lobato, e esse ambiente – e o seguinte, no ginásio – estimulou meu contato com a área de Ciências Humanas, que acabei abraçando mais tarde.

A opção pela antropologia ajudou ou inibiu um contato mais íntimo com a literatura?

Sílvio – Sempre li muito, mas das aventuras dos livros passei para a aventura das expedições antropológicas, das pesquisas de campo. Minhas leituras, por razões óbvias, tenderam para a área da antropologia, e quando lia textos mais leves, para me distrair, optava por uma literatura mais comprometida socialmente. Foi assim que devorei os livros da primeira fase de Jorge Amado, quando este tinha uma postura crítica e era filiado ao Partido Comunista. Um de meus gurus é Darcy Ribeiro, que sempre praticou uma linha mais aberta na antropologia, em sua tentativa de interpretar o Brasil.

Falando em literatura, quais são seus autores prediletos?

Sílvio – Na literatura brasileira, gosto dos clássicos, como Guimarães Rosa, e em Santa Catarina busquei textos que me mostrassem o lugar que eu estava pisando, o que ocorre até hoje. Também leio os amigos, como Almiro Caldeira, morto no ano passado, do qual a EdUFSC vai lançar no próximo dia 6 (de setembro) o romance O lume da madrugada. Outro tema que sempre me atraiu foi o do Contestado, por meio de autores como Maurício Vinhas de Queiroz, que é excepcional, e Guido Wilmar Sassi, um dos melhores do Estado na área da ficção. Há pouco, li Paulo Pinheiro Machado, que organizou um volume com leituras contemporâneas do episódio do Contestado. Também acabei de ler 13 Cascaes, com contos de autores catarinenses sobre a vida e obra do folclorista Franklin Cascaes.

Qual foi a maior lição que tirou de sua militância na antropologia?

Sílvio – Vivemos numa sociedade colonialista, violenta e que não respeita os que são desprovidos de recursos econômicos e representação política. Se a população negra é tradicionalmente desprestigiada e nunca se liberta, com os índios é pior ainda. Um exemplo de intransigência são as resistências às políticas de ações afirmativas dentro da própria universidade. Como somos uma extensão da sociedade, é possível ter assim uma dimensão do problema. Lembro-me de que nos anos 40 a Ilha de Santa Catarina era mais solidária. Na época, os açorianos tradicionais que pescavam tainhas sempre mandavam às viúvas e às famílias pobres o seu quinhão de peixe. Hoje, isso não existe mais. Quem sai da universidade, por exemplo, pensa somente na carreira e no dinheiro que vai ganhar, sem qualquer compromisso social.

Foto: Jones Bastos/ Agecom