Popol Vuh ganha tradução para o português

09/11/2007 15:50

O Popol Vuh é conhecido como a Bíblia das Américas e já havia ganhado várias edições pelo mundo, sendo traduzido mesmo em japonês. O lançamento da versão integral deste clássico texto ameríndio traz finalmente, para o português, uma contribuição fundamental para entender a cultura maia, que ainda se preserva nas comunidades atuais, tendo representantes influentes como a líder Rigoberta Menchú, ganhadora do Nobel da Paz em 1992.

O professor e poeta Sérgio Medeiros (CCE/UFSC) e o pesquisador Gordon Brohterson (Universidade de Stanford, Califórnia, EUA) são os organizadores da edição bilíngue, que além do texto em português, inclui o texto maia-quiché e preciosos comentários ao longo de 490 páginas.

Breve entrevista com o professor Sérgio Medeiros

Como surgiu a idéia de traduzir o Popol Vuh para o português?

Sergio Medeiros – Tenho uma proposta de resgate de textos ameríndios. Publiquei Makunaima e Jurupari – sobre mitos amazônicos e O Dono dos Sonhos sobre mitos do Centro- Oeste. Trabalho com cosmogonias. No momento estou trabalhando com cosmogonias incas. Nas universidades brasileiras falta um centro de cultura mesoamericana. A USP agora tem o seu centro, mas o Brasil deu as costas para estes estudos. Os EUA estão muito mais adiantados. Espero que, aqui na UFSC, um dia seja criada uma disciplina no Curso de Letras sobre Literatura Ameríndia e contemporânea.

Qual a importância do Popol Vuh no contexto indígena da América Latina? De que ele trata?

Sérgio Medeiros – É a única versão que restou da narrada em quiche dos maias da Guatemala, após a invasão espanhola do século XVI. Havia maias da montanha e da planície. O texto original desapareceu e o que restou parece provir dos maias das montanhas da Guatemala.

É um poema (8.580 versos) em dísticos, como as filas do milho, que conta a história da criação dos homens. São poemas interligados que falam de ciência, política e filosofia.

Os maias ainda hoje seguem do Popol Vuh as adivinhações, as noções de tempo, os rituais fúnebres, as noções de ecologia. O quiche é uma língua viva, falada e ensinada em escolas do México e Guatemala.

O Popol Vuh inspirou muitos escritores e artistas plásticos: Borges (Argentina), Miguel Angel Astúrias ( Guatemala/ Prêmio Nobel), Diego Rivera, entre outros. Alguns surrealistas também se interessam por esta cosmogonia.

Como foi o processo de tradução?

Sérgio Medeiros – Foi um trabalho de três anos, do meu pós-doutorado, em que passei temporadas trabalhando em colaboração com o professor Gordon Brotherston, da Universidade de Stanford, Califórnia, EUA. A tradução partiu da edição em inglês (também bilíngüe ),de Munro Edmonson, especialista já falecido. Ele fez a tradução para o inglês com glossário, que facilitou nossa tradução. Nossa edição também é bilíngüe, incluindo o texto maia-quiche original. Além disso tecemos, também comentários sobre a obra.

Como foi o lançamento?

Sérgio Medeiros – O lançamento, dia 20 de setembro, na livraria da Vila (Vila Madalena, São Paulo), foi emocionante, com a presença da índia Maria Jacinta que lia o texto em maia quiche – uma língua bem musical. Falei sobre “Os mundos do Popol Vuh, cosmogonia maia-quiche”.

…“Temos aqui um poema que começa falando da linguagem que olvida a comemoração, o louvor dos deuses, e termina, como veremos, falando da linguagem que comemora, que entoa o hino de veneração, satisfazendo assim uma necessidade premente dos espíritos ou dos agentes celestiais”

Citei, do início do primeiro canto do Popol Vuh, um fragmento importante, o qual se passa na época em que os seres humanos ainda não habitavam a Terra. Havia a Mãe e o Pai (o texto sempre menciona os caracteres femininos em primeiro lugar) e, criados por eles mesmos, os animais. Os animais grandes e pequenos saíram diretamente do pensamento e da palavra dos deuses, não foram modelados numa matéria qualquer, como sucederá depois, no período humano. “E quando eles pensaram/ E falaram,/ Repentinamente aquilo aconteceu/ E foram criados/ Veados / E pássaros” (p. 55). Antes, só havia árvores e arbustos silenciosos. A partir de agora, uma voz, ou muitas vozes poderiam ser ouvidas na Terra. Os deuses buscavam, como diz outro trecho do poema, uma “recompensa em palavras”, por isso criaram os viventes (p. 65). O fragmento diz:

VI

Então também aos veados

E aos pássaros

Disseram Tzakol

E Bitol,

A Mãe

E o Pai.

“Falem, então,

Clamem, então.

Não gorjeiem,

Nem gritem.

Tentem se entender

Entre si,

Dentro de cada espécie,

Em cada grupo”,

Ao veado foi dito,

E aos pássaros,

Panteras,

Jaguares,

Serpentes



“Agora digam então

Nossos nomes.

Adorem-nos, sua Mãe

E seu Pai.

Agora então digam isto:

Hu r Aqan,

Chipi Ka Kulaha,

Raxa Ka Kulaha,

U Kux Kah,

U Kux Ulev,

Tzakol,

Bitol,

Mãe

E Pai.

Falem então,

E nos chamem.

Adorem-nos,

Foi-lhes dito.

Mas eles não puderam falar como homens.

Apenas aparentá-lo fazê-lo.

Eles só emitiram um ruído;

E apenas grasnaram.

A expressão da fala deles não se desenvolveu.

Ao contrário, deram gritos, cada um separadamente (pp. 57-59).

Ainda outra parte da minha fala:

…Sabemos que os deuses não precisavam modelar uma matéria para criar os viventes. Estes também poderiam sair de seu pensamento e de sua fala. O planeta Terra, aliás, foi criado dessa maneira: “Só a palavra deles causou a sua criação/ Para criar a Terra, “Ulev” (“Terra”), eles disseram./ Imediatamente ela foi criada” (p. 51). O poder do pensamento e da palavra parece comprovar, segundo entendo, aquilo que o Popol Vuh afirma a respeito dos deuses, ou seja, que eles eram sábios. “Grandes sábios eram eles/ E grandes pensadores em sua essência,/ (…)” (p. 49). Na verdade, se considerarmos os nomes dos criadores, dos pais e mães, veremos que estes se chamavam, por exemplo, Tzakol, ou Construtor, Bitol, ou Modelador, Alom, ou Portador, Qaholom, ou Gerador. Assim, essas entidades, ou forças criadoras, que se chamam Gerador e Modelador, Portador e Construtor, e que eram também grandes sábios e pensadores, podiam tanto criar a partir da palavra, do pensamento, quanto modelar a matéria, fazendo bonecos que depois se movimentariam, ou não, como seres humanos.

Destaquei passagens do poema – a criação dos viventes – que sugerem que a idéia de criar algo implicava uma prática, uma concretização, e que isso redundava, naturalmente, na modelação, no trabalho sobre uma matéria qualquer. Pensamento e modelação são, porém, complementares nessa cosmogonia. Em alguns casos, no entanto, a modelação não seria necessária e a criação independeria dela. Num trecho do seu ensaio, Gordon Brotherston afirma que a “intensa meditação” de Hu r Aqan e Quq Kumatz teve, como principal conseqüência física, a formação da crosta terrestre. Pode-se concluir que havia, nos tempos primordiais, uma relação direta entre o ato de pensar e a ação efetiva, o ato de pensar podia equivaler, então, a “fazer”, a “criar”.

Quais os próximos planos de tradução?

Sérgio Medeiros – Meu projeto é traduzir mais uma cosmogonia, a que está registrada em outro texto clássico ameríndio: o manuscrito Huarochiri , de autor anônimo (conhecido como o Popol Vuh dos Andes).

Serviço:

Popol Vuh – Sérgio Medeiros e Gordon Brotherson (organizadores)- Editora Iluminuras, 490 páginas. R$62,00 (preço médio)

Por Alita Diana/jornalista da Agecom

Para conhecer mais sobre o professor Sérgio Medeiros:Professor e poeta Sérgio Medeiros é o convidado do 29º Círculo de Leitura