INICIAÇÃO CIENTÍFICA: trabalho discute relações familiares de travestis
Apesar do tema travestis ser recorrente em pesquisas acadêmicas, a maioria dos estudos enfoca a questão da prostituição, colaborando para a manutenção de um senso comum acerca do assunto. Diferencia-se a pesquisa da estudante de Ciências Sociais Fernanda Cardozo. Em seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), ela abordou o aspecto das relações familiares de um pequeno grupo de travestis de Florianópolis. O trabalho “Identidade e família em foco: parentesco e parentalidades de travestis em Florianópolis/SC” foi apresentado, nesta quarta-feira, no XVI Seminário de Iniciação Científica da UFSC.
Fernanda lembra que as travestis (a pesquisadora faz questão de ressaltar de que o termo deve ser usado no gênero feminino) são o maior exemplo acadêmico de que sexo e gênero são coisas diferentes. Enquanto sexo é a denominação do corpo anatômico (que, no caso é o de um “macho”), o gênero é uma questão cultural, assim o que vale são as representações de masculinidade e de feminilidade criadas para dar sentido a essas diferenças anatômicas. Travestis têm, portanto, o sexo masculino e o gênero feminino.
A dificuldade que a sociedade encontra para lidar com essa dicotomia é a principal causa de um sentimento, comum entre travestis, de que certos espaços são inconciliáveis com os seus estilos de vida. Esse sentimento é o principal responsável por afastar essas pessoas precocemente da vida acadêmica e de fazer com que se sintam inaptas para abraçar outras carreiras que não as já estereotipadas, como as relacionadas aos cuidados com a beleza (cabeleireiras e manicuras) e a prostituição.
Afastando-se do lugar comum, o trabalho de Fernanda buscou entender, dentro da estrutura familiar, quais são as nomenclaturas e funções atribuídas às travestis, pesquisando os laços de parentesco e de filiação que unem travestis de camadas populares a crianças pelas quais sejam direta ou indiretamente responsáveis. A pesquisa qualitativa, de caráter antropológico, envolveu, além da pesquisa bibliográfica, entrevistas e observações de campo, que ajudaram a aproximar a pesquisadora do mundo das personagens estudadas.
Além do interesse acadêmico, a estudante se interessou pelo aspecto político da pesquisa. “Não dá pra fazer uma pesquisa pensando apenas em reproduzir esse trabalho para uma comunidade acadêmica. Você tem que conseguir dar conta das demandas sociais. Eu não consigo pensar em fazer ciência sem estar ligada ao mundo real e sem estar engajada, de um jeito ou de outro”, ressalta Fernanda.
A pesquisadora contou, então, com o auxílio da Associação das Travestis da Grande Florianópolis (ADEH Nostro Mundo). Foram as integrantes que colocaram Fernanda em contato com os quatro agrupamentos familiares que viriam a compor seu trabalho. Com a observação das travestis e seus familiares, a estudante percebeu que é na relação com as crianças que ocorre o maior trânsito entre as nominações femininas e masculinas. O exercício do cuidado pelas travestis, por exemplo, é qualificado como uma função tradicionalmente feminina, mas a desinência (ou termo) de gênero com a qual as crianças são ensinadas a se referir às travestis é masculina.
De acordo com Fernanda, a nomeação das travestis segue uma espécie de divisão entre espaços públicos, nos quais elas exigem que seja reconhecida a sua identidade feminina, e espaços privados, onde há permissão para que o nome masculino seja usado. “Elas dizem que se trata de uma questão de respeito aos pais, que lhes deram o nome e não teriam, portanto, a obrigação de tratá-las pela identidade feminina”, explica Fernanda. A aceitação por parte dos familiares, no entanto, não é totalmente livre de preconceitos.
A estudante afirma que, embora exista uma relação afetiva sincera entre os familiares e as travestis, o discurso de aceitação é sempre relacionado com a lógica do “mal menor”. Ter um filho travesti, por exemplo, seria melhor do que ter um filho “bandido” ou “drogado”.
O maior empecilho para a aceitação das travestis na sociedade, segundo Fernanda, está na ampla divulgação de discursos hegemônicos. “Certas instâncias midiáticas se apóiam em determinadas representações estigmatizadas e acabam reforçando o preconceito”. Como um êxito de seu trabalho, a estudante aponta o fato de ter conseguido levantar uma discussão sobre as travestis partindo de uma análise racional, entendendo as diferenças individuais nas suas especificidades, e não simplesmente partindo de conceitos morais.
O TCC de Fernanda foi resultado de dois anos de trabalho junto ao Núcleo de Identidades de Gênero e Subjetividades (NIGS) e integrou a rede de pesquisas “Parceria Civil, Conjugalidades e Homoparentalidade no Brasil”, coordenada pelos professores Miriam Grossi, do Departamento de Antropologia da UFSC e orientadora da pesquisa; Anna Paula Uziel, do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e Luiz Mello de Almeida, do Instituo de Ciências Humanas e Letras da Universidade Federal de Goiás.
Mais informações:
Fernanda Cardozo – nandacardozo@yahoo.com.br
Núcleo de Identidades de Gênero e Subjetividades (NIGS) – 48 3331-9890
www.nigs.ufsc.br
Por Daniel Ludwich / Bolsista de Jornalismo na Agecom