Jornadas Bolivarianas revelam singularidade da revolução venezuelana
Um violino tocando, dolente, trechos de Villa-Lobos, Bach, Tom Jobim, Zininho. Poemas de César Vallejo, Mario Benedetti, Ferreira
Gullart, Neruda. Máscaras, risos, paixão, debates. De tudo isso teve um pouco na primeira edição das Jornadas Bolivarianas,
promovida pelo Observatório Latino-Americano, em Florianópolis, Brasil. Três dias de discussão e análise acerca do processo
bolivariano na Venezuela. Comunicação, educação, petróleo, democracia participativa, utopia, movimentos populares, Constituição.
Um mosaico de temas que levaram o público a compreender um pouco mais das singularidades da América Latina.
No primeiro dia foi lançado, oficialmente, o Observatório Latino-Americano, que terá, a partir de agora, o compromisso de
disseminar um pensamento crítico latino-americano rompendo com a solidão de professores, estudantes e técnicos-administrativos
que, ainda de forma isolada, pensam o continente. Segundo o coordenador do projeto, o professor de Economia Nildo Ouriques, é
preciso acabar com o colonialismo que faz com que, para um pesquisador, a glória suprema seja brilhar na Europa. “Queremos
discutir e construir a segunda emancipação da América Latina, para que ela se transforme, seja solidária e socialista”.
Nildo frisou ainda que, no OLA, há apreço pela teoria e pela política. “Fazemos os dois, queremos romper com essa idéia de que
não dá para caminhar junto. Vamos arriscar as convicções, nos expor, assumir posição, mas tudo isso amparado na boa teoria”.
Lembrou ainda que a universidade, assim como o pensamento de muitos teóricos e estudiosos, também é colonizada e se deixa
seduzir por novidades. Mas os problemas da América Latina ainda são os mesmos e é sobre eles que há que se debruçar.
Durante a abertura das Jornadas foi apresentada a página do OLA, disponível na rede mundial de computadores, que pode ser
acessada no endereço www.ola.cse.ufsc.br. Foi também apresentado o vídeo “A revolução não será televisionada”, produzido por
jornalistas irlandeses durante o golpe de estado de 2002, na Venezuela. O trabalho mostra como os golpistas agiram e a reação do
povo venezuelano que saiu às ruas para defender a Constituição Bolivariana exigindo a volta do presidente.
No documentário de hora e meia pode-se ter uma boa versão dos fatos, visto que os jornalistas estiveram dentro do palácio
Miraflores, tanto no momento em que Chávez foi aprisionado quando durante os dois dias em que durou o governo Carmona. As
cenas falam por si.
A democracia liberal não nos enche
Elegante, com um enorme anel de ouro na mão direita e um riso simpático que lhe aperta os olhos quando flui, o embaixador da
Venezuela no Brasil, Julio Garcia Montoya nem um pouco se enquadra na idéia brasileira de um general, mas é o que é. Com larga
folha de serviços no exército venezuelano, agora cabe a ele a tarefa de representar o seu país na terra de Lula. Elogiou muito a
iniciativa das jornadas porque, segundo ele, é a primeira experiência desse tipo de que tem notícia, que procura conjugar a criação
de consciência e o pensamento bolivariano.
Montoya começou a sua fala dizendo que o primeiro dever de um cidadão é o de fidelidade à República e o do ser humano é o da
busca da felicidade. Assim é na Venezuela. “A República precisa de homens e mulheres comprometidos com um estado soberano
e nosso país marcha na busca da felicidade. Nossa Constituição estabelece que é o povo quem vai re-fundar a República
protagônica e participativa, sob o signo de Simón Bolívar”. Montoya também formulou seu conceito de bolivarianismo: é uma
dor-de-cabeça para o império, para o capital, que sempre escamotearam o direito do povo de ser soberano. É um modelo
contra-hegemônico, afirma, e um projeto ofensivo na consolidação do poder popular.
O embaixador ainda discorreu sobre as especificidades da Venezuela que levaram Chávez ao poder. Um país onde os partidos
políticos estavam esgotados, o movimento sindical atrelado e o povo clamava por mudanças. Quinto maior exportador de petróleo,
dono de grandes riquezas, era impossível continuar vivendo na miséria em que estava jogada a maioria da população. Foi essa
conjuntura que tornou possível a vitória desse projeto ainda em formulação, que não é marxismo, não é comunismo, não é
socialismo, nem democracia liberal. É o bolivarianismo, jeito original de ser venezuelano e latino-americano, na senda do mestre de
Bolívar que, lá no 800 já ensinava: “É preciso ser original. Basta de copiar a Europa”. E agora aí está.
Montoya deixou claro que a paixão não pode ser quantificada e é isso que está levando o povo venezuelano, organizado num
movimento que ocupa cada canto do país, a ser uma força em torno da fidelidade à República e na busca da felicidade. “As
pessoas, no referendo revocatório, foram às urnas, ficaram horas nas filas, disseram sim ao Chávez, porque acreditam no projeto
bolivariano. Para se ter idéia, em um ano, as missões de educação já alfabetizaram mais de um milhão de pessoas, para que
possam ler e ser críticos. Porque não pode haver protagonismo sem consciência crítica. O dia 15 de agosto foi um triunfo da
Constituição e mostrou que os venezuelanos sabem que, hoje, são sujeitos da política.
O embaixador entende que a quarta República morreu, “que descanse em paz” e agora é hora de apostar no futuro. Disse que o
governo está acertando o social e logo vai atacar no plano econômico. Este ainda não foi vencido porque há que tocar em
interesses das elites e isso não é coisa fácil. Basta ver a ferocidade com que a mídia privada da Venezuela ataca o presidente e o
projeto bolivariano. ” Mas, se não houver mudança não haverá avanço algum. Por isso estamos trabalhando com a terra, a pesca, a
pequena indústria”. É que a Venezuela vive quase que exclusivamente do petróleo e é preciso re-inventar tudo outra vez.
“Entendemos que a economia precisa estar à serviço do homem e não o contrário, por isso vamos potencializar a capacidade
organizativa do povo para impulsionar a vida”, diz o embaixador.
Montoya finalizou dizendo que o modelo de globalização proposto pelo norte significa submissão e isso é contrário à soberania
venezuelana e latino-americana. Por isso é preciso que os países não fiquem isolados. “Devemos ser um bloco hegemônico não
para a conquista, mas para transmitir o valor da auto-determinação dos povos”. Para o embaixador, a democracia tal como se
apresenta no modelo liberal não serve mais. “Não nos enche o coração. Na Venezuela, queremos participar”.
Entre os presentes ficou um certo mal estar quando Montoya afirmou que aos venezuelanos está posto um dever moral: o de ser
bolivariano, e que, quem não aceita isso está livre para partir. Algumas falas trouxeram à memória o “ame ou deixe-o” do período da
ditadura no Brasil. Questões para polemizar, mas, sempre percebendo de que espaço geográfico e temporal está se falando. Já
outras falas respaldaram o sentimento de que há que proteger a revolução.
Fonte: Elaine Tavares – jornalista no OLA