Artigo discute transformações do conceito de sociedade civil na América Latina
Como lembra Gramsci em Città futura, “se a sociedade atual é ainda capitalista, isso significa que o capitalismo é uma força que ainda não se esgotou historicamente” e precisa ser superado. Com esse complemento à reflexão do pensador marxista italiano Antonio Gramsci, a professora Ivete Simionatto, do Departamento de Serviço Social da UFSC, encerra artigo em que discute a sociedade civil e as lutas sociais na América Latina.
O trabalho traça um panorama das principais expressões da sociedade civil na América Latina entre o final da década de 1990 e início dos anos 2000. A análise tem suporte na teoria de Gramsci, que resgatou o conceito de sociedade civil e o renovou para interpretar as transformações nas sociedades capitalistas.
Na introdução do texto a professora lembra que a partir das últimas décadas do século XX a ideia de sociedade civil foi disseminada sob perspectivas diversas e até mesmo opostas. “Permeado de grande ambiguidade, o renascimento da sociedade civil nos anos 1970 converte-se em novo ideal e potente slogan político, interferindo além do debate teórico e acadêmico, na prática política e nas lutas sociais”, destaca.
Segundo ela, nessa fase o conceito tornou-se terreno fértil para a afirmação dos “novos movimentos sociais” e suas pautas de luta – demandas afastadas do movimento operário, enfraquecido frente à crise da social-democracia e do chamado socialismo real (aquele que foi colocado em prática em alguns países).
“A sociedade civil renasce como esfera autônoma, situada entre a economia e o Estado, representação da pluralidade de movimentos sociais, redes, grupos informais e diversas expressões de associativismo, espaço para o desenvolvimento de novas formas de solidariedade, cooperação, ampliação da esfera pública e da defesa da cidadania”, descreve a professora.
Seu texto destaca que na América Latina, especialmente no Brasil e na Argentina, a categoria sociedade civil adquiriu um relevante estatuto para ser pensada como espaço, fora do regime militar, de possibilidade de reinserção na cena política de organizações populares, partidos de esquerda, sindicatos e associações combativas.
Grande política
Mas também se configurou uma concepção de sociedade civil que retira das relações entre Estado e sociedade os conflitos e a disputa entre projetos de classe. ”A sociedade civil despolitiza-se, deixa de configurar-se como terreno da “grande política”, de sujeitos coletivos que buscam interpelar e alterar o Estado, transformando-se em arena desqualificadora das demandas sociais mais globais”, avalia.
As tendências de “direita”, alerta, serviram-se da sociedade civil como campo representativo de interesses privados e corporativos. Fizeram uso desse conceito como suporte a suas reformas neoliberais, intensificadas ao longo dos anos 1990. Sob esse ponto de vista, a pesquisadora faz uma crítica quanto à posição da sociedade civil como um dos pilares da hegenomia neoliberal.
“A sociedade civil surge como um Terceiro Setor, situado entre o Estado e o mercado, cujo papel não é apenas limitar seu poder, mas também substituí-lo em várias de suas funções. Associada a esse arranjo teórico-prático e político, destacou-se como um dos pilares da hegemonia neoliberal na construção de consensos que suprimiram a legitimadade do Estado no enfrentamento da “questão social””, considera.
Em sua opinião, o neoliberalismo exerceu, dessa forma, nos planos ideológico e político, um alto poder disciplinador sobre a sociedade civil, moldando grande parte das organizações aos interesses do grande capital.
Pequena política
Segundo a docente, não há lugar, nesta perspectiva de sociedade civil, para a disputa da hegemonia, visto que a preocupação não é a construção de um novo Estado, mas obter o apoio do mesmo através do acesso aos fundos públicos destinados à maximização de benefícios privados.
Nesse cenário a política não desaparece, mas se dilui, torna-se pragmática, converte-se em “pequena política”, em política de pequenos grupos centrados em questões parciais e cotidianas, articulados em torno de “pactos sociais” que criam obstáculos à organização de lutas mais amplas.
Depois de contextualizar diferentes épocas e “perfis” da sociedade civil, o artigo destaca que suas expressões na América Latina permitem apontar pelo menos três direções e hipóteses. A primeira evidencia uma perspectiva de sociedade civil construída sob os fundamentos da ideologia neoliberal, com destaque para as organizações do Terceiro Setor conservador, orientadas pelos organismos internacionais e agências multilaterais.
A segunda direção engloba organizações, movimentos sociais populares e práticas associativas voltadas à defesa dos direitos sociais, da cidadania e da democracia através do fortalecimento dos espaços políticos-institucionais. As agendas e pautas dessas organizações explicitam fortes críticas ao modelo neoliberal, sem, contudo, apontar para propostas de luta que tenham como horizonte a superação do projeto capitalista.
”A sociedade civil, nesse espectro, desempenha, sem dúvida, um papel importante na organização de interesses e na ativação democrática, mas com pouco significado em termos de unidade política”, considera a pesquisadora.
Na terceira direção, situam-se os chamados movimentos de resistência. Na visão da pesquisadora, sob essa perspectiva podem ser vislumbradas duas tendências. A primeira engloba os movimentos altermundistas (relacionados aos protestos no inicio dos anos 2000 contra o FMI, OMC e o Banco Mundial e a realização dos Fóruns Sociais Mundiais.), com protestos e manifestações contrários à globalização neoliberal e a busca de alternativas ao capitalismo. A luta política aparece convertida em ética e desobediência civil, de contestação ao sistema, mas com reduzidas “capacidades de direção ético-política”.
Superação
A segunda tendência abarca os movimentos de contestação mais orgânicos, como os sindicatos, o MST, os movimentos indígenas, com perspectivas de classe mais definidas ainda que articulações com os governos tenham provocado ranhuras na independência de classe, na organização interna e no aumento de filiados, complementa.
“Nesta conjuntura, em que a dinâmica dos conflitos sociais adquire novas expressões sob o abalo do neoliberalismo e dos limites do capitalismo, a pressão social e política das forças populares desempenhará um papel central na recuperação do poder político da sociedade civil, especialmente do papel dos institutos representativos dos trabalhadores.”, avalia.
Em sua opinião, a sociedade civil desempenha um papel importante mas não como campo de interesses particulares e corporativos. “Superar a identificação da sociedade civil com o Terceiro Setor e as ONGs supõe retomá-la como esfera da “grande política”, o que implica a criação de alianças estratégicas entre a classe trabalhadora e os movimentos sociais, com vistas a ampliar o horizonte emancipatório, elevando ao máximo de universalidade o ponto de vista dos grupos subalternos”, destaca a professora.
O artigo ´Sociedade civil e lutas sociais na América Latina: entre a harmonização das classes e as estratégias de resistência` será publicado no livro Capitalismo em Crise, Política Social e Direitos, pela Editora Cortez. A obra está no prelo.
Mais informações: ivete.simionatto@pq.cnpq.br
Por Arley Reis / Jornalista da Agecom
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