Projeto criado há quase seis anos pelo poeta Alcides Buss, o Círculo de Leitura de Florianópolis chega neste mês de maio à marca de 50 edições – raridade num Estado onde poucas iniciativas na área cultural completam um ou dois aniversários. E, para comemorar o feito, o convidado é o jornalista Rogério Pereira, editor do “Rascunho”, principal suplemento literário do país. Ele vem de Curitiba e conversa com interessados em leitura às 18h desta quinta-feira, 27, na Sala Harry Laus, da Biblioteca Universitária da UFSC, em Florianópolis.
Rogério Pereira nasceu numa família pobre e sem estudo do Oeste de Santa Catarina, que se mudou para a capital paranaense quando ele tinha seis anos de idade. Sem livros em casa, ele se considera um leitor tardio, mas foi de tal maneira atraído pela literatura que, hoje, lê cinco livros por semana. A carreira jornalística começou quando era office-boy do Gazeta de Notícias, aos 13 anos. “Quando descobri [a leitura], funcionou como uma das poucas portas para uma libertação”, disse em entrevista. O sonho de jogar futebol para vencer na vida – comum a milhões de crianças – foi substituído por uma carreira próxima aos livros, tanto que seguiu no jornalismo e depois fez mestrado em literatura.
O “Rascunho” foi produto vitorioso de sua persistência, porque acabou de completar 10 anos (em abril) e, mesmo sobrevivendo com dificuldades, granjeou o respeito de escritores, leitores, editores e intelectuais em geral. É um veículo independente, ousado nas críticas e que reúne colaboradores importantes, como Affonso Romano de Sant’Anna, José Castello, Fabrício Carpinejar e o próprio Rogério Pereira, que abandonou a chefia de redação do jornal Gazeta do Povo para se dedicar exclusivamente ao projeto do suplemento.
O jornal tem 32 páginas, mais de 40 colaboradores por edição, tiragem de 5 mil exemplares e cerca de 10 mil leitores. Não é muito, mas num país de poucos leitores chegar a esse público, e durante uma década ininterrupta, pode ser considerado uma façanha. Seu editor não foge às polêmicas e até acha saudável que elas existam no “Rascunho”, porque “o importante são os livros, não a vaidade de quem os escreve”. Mesmo com toda essa intimidade com os livros, Rogério Pereira não é de circular no meio literário. Ele dá sempre esse conselhos aos críticos, especialmente os mais jovens: “Mantenha-se o mais distante possível dos escritores; dedique-se apenas aos livros”.
Conversas enriquecedoras – Professor de literatura aposentado e poeta com mais de 20 livros publicados, Alcides Buss destaca o papel de seus colaboradores mais próximos no Círculo de Leitura, como Arno Blass, Moacir Loth e Regina Carvalho, mas é ele o principal responsável pela longevidade do projeto. Desde o início, e por muito tempo, as reuniões eram realizadas na Editora da UFSC (da qual Alcides era diretor), depois foram para as livrarias Livros & Livros e Saraiva (uma edição cada) e, agora, o evento acontece na Biblioteca Universitária, sempre na última quinta-feira de cada mês.
Desde que foi concebido, o Círculo funciona de forma a permitir ao convidado e aos presentes discutirem informalmente sobre os livros que estejam lendo, as leituras do passado e as influências de outros autores sobre o seu trabalho. Escritores e jornalistas como Salim Miguel, Oldemar Olsen Jr., Fábio Brüggemann, Inês Mafra, Mário Pereira, Maicon Tenfen, Cleber Teixeira, Dennis Radünz, Rubens da Cunha, Renato Tapado, Raimundo Caruso, Nei Duclós, Marco Vasques, Zahidé Muzart, João Carlos Mosimann, Mário Prata e Tabajara Ruas foram alguns dos participantes das etapas anteriores do projeto.
“Ele chegou tão longe por causa do comprometimento das pessoas, pela dedicação e entrega de seus colaboradores e pelo apoio da Agecom/UFSC, Centro de Comunicação e Expressão e Biblioteca Universitária”, diz Alcides Buss. “No início, a intenção era envolver os funcionários da EdUFSC no processo de leitura, depois o projeto se tornou independente e continuou difundindo a chama da leitura, produzindo efeitos em espiral, se expandindo e se consolidando”.
Todos os meses, um convidado de honra, geralmente apaixonado pela leitura, fala de sua formação como leitor depois que todos os presentes usam a palavra, sentados em círculo. Quase nunca são mais de 20 pessoas, mas as discussões costumam ser muito agradáveis e enriquecedoras. “É uma socialização da leitura”, define Alcides ao falar da dinâmica das reuniões. A maioria dos presentes aprecia a boa literatura e raramente é atraída por best-sellers ou livros que figuram nas listas dos mais vendidos. Ele comemora o sucesso do espaço atualmente utilizado pelo Círculo: “A BU é bem localizada, confortável, silenciosa e tem o tamanho ideal para nossos encontros”. Sobre o convidado da 50ª edição, Alcides é direto: “Ele ajudou a recuperar a crítica literária, que estava quase morta no Brasil”.
ENTREVISTA COM O CONVIDADO
Como foram suas primeiras experiências em relação à leitura? Em sua casa, na infância e na adolescência, havia um ambiente de estímulo ao contato com os livros e o conhecimento?
Rogério Pereira – Venho de uma família de pequenos agricultores do Oeste de Santa Catarina, próximo a Chapecó. Cheguei a Curitiba em 1979, aos seis anos de idade. Toda a minha formação deu-se na capital paranaense. Meus pais praticamente nunca estudaram. São analfabetos funcionais. Nunca leram um livro sequer. Em nossa casa não havia livros. Nas escolas públicas onde estudei, as bibliotecas eram muito precárias. No entanto, trabalho desde os 10 anos de idade. Aos 13 anos, entrei na “Gazeta Mercantil” como office-boy. Lá, mantive contato com jornalistas, que me incentivaram a ler. Decidi apostar na leitura (nos estudos) para reverter uma situação social muito precária. Deu certo. Comecei a ler com dedicação muito “tarde”, por volta dos 16, 17 anos. Nunca li literatura infanto-juvenil. Comecei com Dalton Trevisan, João Antonio e Rubem Fonseca. Consegui cursar filosofia e jornalismo, com uma pós-graduação na Espanha. Sem qualquer romantismo, acho que devo a minha vida à literatura, aos livros.
Mesmo começando tarde, que leituras e autores foram mais marcantes?
Rogério – Como respondi anteriormente: Dalton Trevisan, Rubem Fonseca e João Antônio. Dois livros me marcaram muito, ambos de Rubem Fonseca: “A grande arte” e “Vastas emoções, pensamentos imperfeitos”. Também cito “Malagueta, Perus e Bacanaço”, do João Antônio. Até hoje, tenho muito carinho por estes autores. No entanto, não são os meus preferidos. Há outros que ganharam corpo e espaço em minha biblioteca afetiva. Fiz desta época inicial uma fase de descobertas. Gastava muito dinheiro em livros, vivia atrás de promoções. Descobri muitos autores. Os livros comprados naquela época em bancas de revistas têm um espaço privilegiado em minha imensa biblioteca atual.
Num tempo tantos apelos (na mídia, na internet), como vê a relação dos jovens de hoje com os livros e a leitura?
Rogério – O Brasil é o país imenso e desigual. Não há nenhuma novidade nisso. No entanto, a vastidão do país e a peculiaridade de cada região dificultam uma análise mais ampla sobre esta questão. Eu tendo a acreditar que a internet é uma aliada da literatura, da leitura, não uma inimiga. Nunca se escreveu tanto como agora. Todo mundo com acesso à internet escreve e lê o tempo todo. É claro que não se pode mensurar a qualidade desta produção. Mas a internet criou a possibilidade de acesso à informação, à literatura. Onde tudo isso vai parar é uma grande interrogação. Em relação ao livro de papel (este ser quase anacrônico para a juventude), ele sempre terá seu espaço. Acredito que os jovens serão cada vez mais refratários a este objeto “antiquado”. Mas é difícil fazer qualquer previsão em relação a tudo isso.
Na mesma linha, de que forma seleciona suas leituras, diante de tantas possibilidades e da avalanche de edições de livros no Brasil?
Rogério – Faço vários tipos de leitura: por obrigação (a trabalho), por curiosidade, por necessidade, por prazer… Estou sempre lendo vários livros ao mesmo tempo. Na semana retrasada, por exemplo, li cinco livros. Acho um bom número. Acompanho o mercado editorial muito de perto nos últimos 10 anos. Recebo praticamente todos os lançamentos. Isso gera, sem dúvida, uma grande agonia. É mesmo uma avalanche. É impossível acompanhar o ritmo do mercado editorial. Mas, com o tempo, fui construindo minha biblioteca ideal, minha biblioteca afetiva. Nela, sempre haverá espaço para novos autores, novos livros, novas descobertas. Sou um leitor muito curioso. A literatura move a minha vida e se confunde muito com ela, o tempo todo.
Com a possibilidade de acessar a leitura por meio de outros suportes, estaria o livro, de alguma forma, ameaçado?
Rogério – Não. De forma alguma. Estes novos suportes somente ampliam as possibilidades de acesso à literatura. O rádio, a TV, o cinema, a internet convivem muito bem. Sem rancores ou desavenças. Os livros sobreviverão. Tenho certeza.
Que tipo de leitura prefere hoje e o que está lendo no momento?
Rogério – Literatura, para mim, é vida. É transformar-se. Sempre busco no livro perguntas, nunca respostas. Busco inquietações. Busco humanizar-me cada vez mais. Portanto, procuro autores que, muito além de uma boa história (isso não é importante para mim), façam-me pensar, mexam com as estruturas que me mantêm vivo. Ao ler um livro, imagino-me diante de um abismo, pronto para um vôo cego. Então, busco autores capazes de provocar algum desconforto durante a leitura. Alguns nomes: Enrique Vila-Matas, Philip Roth e Amós Oz (entre os estrangeiros); Bernardo Carvalho, Luiz Ruffato e Raduan Nassar (entre os brasileiros). Cito aqui poucos exemplos de autores contemporâneos. Os clássicos são leitura “obrigatória” e sempre estou às voltas com eles.
No momento, estou lendo diversos livros: acabo de ler “Esquimó” e “King Kong e cervejas”, ambos do Fabrício Corsaletti; “Moça com chapéu de palha”, do Menalton Braff; “Contos mais que mínimos”, da Heloisa Seixas. Todos por obrigação de algum trabalho. Também li há pouco “Paisagem com dromedário”, da Carola Saavedra. Por prazer, estou lendo “A humilhação”, do Philip Roth, e “Doutor Pasavento”, do Enrique Vila-Matas. Ando às voltas com a releitura de “Vidas secas”, do Graciliano, e “Lavoura arcaica”, do Raduan Nassar. Também leio os poemas do irlandês Seamus Heaney e da norte-americana Mariane Moore. Entre uma pausa e outra, leio crônicas, contos e poemas esparsos. Leio o tempo todo.
Fale um pouco da experiência vitoriosa do “Rascunho” e por que sobraram tão poucos jornais literários no país (ou seja, por que eles costumam durar tão pouco?).
Rogério – O “Rascunho” é uma aventura que deu certo. Em abril, completou 10 anos. Tudo graças ao empenho dos colaboradores. Mas é sempre com muita dificuldade. O grande problema é que o mercado não acredita numa publicação de natureza puramente literária. Os veículos culturais mais amplos têm também muitas dificuldades. Em geral, publicações literárias duram pouco por este desinteresse do mercado publicitário. Há leitores para este tipo de veículo. Mas, para sobreviver, é preciso dinheiro. O “Rascunho” deu muita sorte nestes 10 anos, mesmo sem nunca ter utilizado qualquer tipo de lei de incentivo. Mas sou um otimista: acredito que o cenário literário brasileiro é muito mais promissor do que era há cinco anos. Hoje, temos um mercado em franco crescimento, muitas editoras, feiras em todo o país, uma quantidade imensa de autores produzindo. Não é o cenário ideal, mas é um cenário em expansão. Espero que o “Rascunho” mantenha-se durante muitas décadas ainda e possa presenciar a construção de uma sociedade mais próxima dos livros.
Contatos com Rogério Pereira podem ser feitos pelo fone (41) 9957-9841. Alcides Buss, criador do Círculo de Leitura, pode ser contatado pelo fone (48) 9972-3045.
Por Paulo Clóvis Schmitz / Jornalista na Agecom