
Anamaria: abordagem da mídia é simplista
“Quando pensava em tráfico de mulheres, eu associava imagens de mulheres sequestradas e presas em casas de prostituição. Essa ideia de violação grosseira de direitos humanos me incomodava. Em 2006, preparando o projeto para o mestrado, decidi estudar esse tema justamente pelo fato de não lembrar ao certo como eu tinha concebido aquela imagem do tráfico de mulheres para exploração sexual”.
É assim que Anamaria Marcon Venson explica a escolha do tema de seu mestrado. Com a dissertação ´Rotas do desejo: tráfico de mulheres e prostituição como estratégia migratória na Folha de São Paulo e no El País (1997-2007)`, orientada pela professora Joana Maria Pedro, junto ao Programa de Pós-Graduação em História da UFSC, Anamaria investigou como a imprensa abordou esse assunto na última década.
“Procurei bagunçar, desordenar, decompor certas imagens comumente reconhecidas sobre o tráfico e que são veiculadas na mídia, sem deixar de reconhecer exclusões e violências, para tentar mostrar a complexidade desse problema”, explica a mestre em História Cultural.
Em sua pesquisa Anamaria analisou grandes jornais como a Folha de São Paulo, de maior circulação no Brasil, e o El País, de maior difusão na Espanha. Foram contabilizadas 253 notícias relacionadas ao tráfico de mulheres entre 1997 e 2007. No El País 70 e na Folha de São Paulo 174.
“Os jornais abordaram o tráfico em torno daquela velha armadilha de vítima enganada ou puta oportunista, que é simplista e não dá conta de explicar a complexidade dessas migrações”, avalia a pesquisadora. Segundo ela, entre as 174 notícias publicadas no jornal brasileiro, 78 tratavam principalmente de operações policiais relacionadas ao tráfico. “Esse dado, somado à análise das publicações, mostra que o assunto é problematizado, de modo geral, como uma questão moral e de polícia”, destaca Anamaria. Na Espanha, El País deu visibilidade a contextos em que migrantes vítimas de tráfico estariam sendo obrigadas à prostituição. Falou também de deportações.
“Os dois jornais multiplicaram explicações sobre como essas mulheres teriam sido vítimas de sua própria tolice, enganadas por homens e também resgatadas por outros homens. A Folha de São Paulo tratou de redes de migração para prostituição que funcionariam muitas vezes por força de engano, e de mulheres que faziam da prostituição uma estratégia migratória tratando-as como oportunistas”, analisa Anamaria.
Em sua dissertação ela cita a Pesquisa Sobre Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para Fins de Exploração Sexual, que mapeou as rotas de tráfico no Brasil e indicou que a Espanha é o principal destino de brasileiras adultas. Lembra também outros estudos que mostram os motivos pelo qual a Espanha é alvo da migração de brasileiras para trabalhar na indústria do sexo. Entre eles estão fatores econômicos, vontade de conhecer lugares novos e de certo glamour, e até mesmo um desejo de fugir de padrões de gênero percebidos como mais rígidos e discriminatórios no Brasil.
“Isso não significa que o tráfico internacional de pessoas, naquele sentido que pressupõe coação, violência, intenção de exploração, não exista. O problema é que migrações voluntárias, prostituição voluntária, prostituição forçada, tráfico e turismo sexual sejam confundidos e tratados como se fossem a mesma coisa, apagando a diversidade e a complexidade dessas situações”, considera Anamaria, que atualmente integra o Instituto de Estudos de Gênero da UFSC. Em 2008, seus estudos sobre o tráfico internacional de mulheres conquistaram o terceiro lugar na categoria graduados, no I Prêmio Libertas: Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Brasil.
O concurso foi promovido pelo Ministério da Justiça em parceria com o Escritório das Nações Unidas contra Drogas e Crime (UNODC) e a Organização Internacional do Trabalho (OIT). De acordo com os organizadores, o objetivo é incentivar a reflexão sobre este crime que é hoje a terceira atividade comercial ilícita mais lucrativa do mundo, ficando atrás somente do contrabando de drogas e armas. Os idealizadores do concurso pretendem incorporar os trabalhos como subsídios para novas políticas públicas.
Mais informações com a pesquisadora pelo e-mail anamariamarcon@yahoo.com.br
Por Maria Luiza Gil / Bolsista de Jornalismo na Agecom
Leia mais sobre o trabalho de Anamaria na entrevista:
Maria Luiza Gil: Você pode sintetizar algumas das análises decorrentes dos textos publicados na Folha de São Paulo e no El País?
Anamaria Marcon: Minha intenção inicial foi investigar como a imprensa problematizou o tráfico internacional de mulheres na última década. Essa análise me obrigou a estudar e a refletir profundamente acerca daquilo que entendemos como prostituição, trabalho sexual, mercado do sexo, e mesmo acerca de nossas ideias sobre as mulheres, sobre a sexualidade e sobre feminismos.
O fato de que a modalidade de tráfico mais noticiada nos jornais que pesquisei ter sido o tráfico de mulheres para exploração sexual não constitui simples evidência da realidade, mas é efeito de certa maneira de entender as mulheres, a prostituição e as migrações contemporâneas. Essas referências são efeito e reforço de um modelo de gênero muito problemático, em que se imagina que homens são mais capazes de decidir migrar voluntariamente, enquanto mulheres são construídas como vítimas passivas.
O próprio Protocolo de Palermo, normativa internacional que define o tráfico e que vigora desde 2003, coloca mulheres ao lado de crianças como pessoas que precisam de proteção especial, oficializando certa ideia de vulnerabilidade feminina. Esse entendimento tem sérias implicações práticas, pois ao mesmo tempo em que mulheres são infantilizadas, violências contra migrantes homens são apagadas e mesmo negadas. Por certo que esse modo de conceber as mulheres é estrategicamente utilizado tanto pelos governos para justificar políticas de controle da mobilidade das pessoas, quanto pelas organizações de combate ao tráfico para arrecadar financiamento, quanto pelos traficantes e mesmo pelas mulheres que se envolvem nessa atividade, que jogam o jogo da vítima quando julgam conveniente.
Maria Luiza Gil: A imprensa é culpada por essa imagem pré-concebida de que a mulher é sempre vítima nesses casos?
Anamaria Marcon: De modo geral, enquanto o jornal brasileiro tratou de redes de migração para prostituição junto ao discurso que noticiou repressão policial e moral à prostituição, enquanto na Espanha falou-se de exploração sexual de migrantes ao tempo que se falou de deportações.
É importante enfatizar que eu não procurei nos jornais uma explicação ordenada do tráfico, mas justamente o contrário. As ideias sobre o tráfico de mulheres que circulam em nossa sociedade são elaboradas em função de certos objetivos, são atravessadas por um cálculo. A discussão sobre o tráfico é movida por diferentes interesses, como por exemplo o lobby feminista, os direitos humanos, países que recebem migrantes preocupados com as fronteiras nacionais, preocupações com o crime organizado.
Então, aquilo que se entende como tráfico de pessoas não é resultado da escolha ou da decisão de um sujeito individual ou de um grupo. Não é sozinha que a editoria de um jornal, ou um grupo de funcionárias do governo, ou quem seja, decide vitimizar ou criminalizar as envolvidas em redes de tráfico ou mesmo definem quem elas são. Desse modo, a editoria tem em mira notícias que vendam o jornal, os governos têm em mira uma resposta a cobranças da sociedade e às relações internacionais, operadores dos direitos humanos pretendem diminuir as violências que acontecem no curso do tráfico, valendo-se, algumas vezes, de distorções discursivas conscientes para atingir seus objetivos.
Essas articulações, encadeando-se, invocando-se e se propagando, encontrando em outra parte apoio e condição, esboçam finalmente dispositivos de conjunto. Assim, a manchete midiática, o depoimento daquela envolvida, a fala da juíza e da delegada, o discurso acadêmico, as conferências de profissionais do sexo, a opinião da pesquisadora, todos esses discursos se encadeiam para constituir o fenômeno do tráfico. O que eu procurei fazer foi bagunçar, desordenar, decompor certas imagens comumente reconhecidas sobre o tráfico e que são veiculadas na mídia, sem deixar de reconhecer exclusões e violências, para tentar mostrar a complexidade desse problema contemporâneo.
Maria Luiza Gil: Em sua opinião, por que esses jornais dão aos leitores a ideia de que as mulheres que vão se prostituir no exterior são forçadas e enganadas?
Anamaria Marcon: Tentei mostrar que os jornais constituíram o tráfico em foco de atenção em torno daquela velha armadilha dicotômica vítima/débil – puta/infratora. Os textos dos jornais não estão desassociados do momento histórico do qual são produtos e há, portanto, uma intrínseca conexão entre tais contextos e os contextos históricos nos quais estão inseridos.
O discurso midiático tenta seduzir ou induzir à leitura sobre um ponto de vista, elabora argumentos que possam convencer as pessoas de que determinada informação é importante, mas, ao mesmo tempo, de maneira circular, também joga com ideias correntes na sociedade para chamar a atenção de quem lê. Não podemos esquecer que o jornal é, acima de tudo, um produto, é vendido como mercadoria. O texto jornalístico se apropria de valores do público-alvo para vender sua produção, utiliza estratégias para nos convencer da importância de determinada informação e se apropria de valores constituídos nas relações sociais para induzir à leitura, mas, ao mesmo tempo, produz os objetos que recorta, reinventando a cultura.
Portanto, nada aqui é visto como evidência. Os dois jornais que pesquisei multiplicaram explicações sobre como essas mulheres teriam sido vítimas de sua própria tolice, enganadas por homens e também resgatadas por outros homens. Mas, ao mesmo tempo, a Folha de São Paulo, especificamente, tratou de redes de migração para prostituição que funcionariam muitas vezes por força de engano e também falou de mulheres que faziam da prostituição uma estratégia migratória tratando-as como “oportunistas”. Esse entendimento é efeito e reforço daquilo que certa parcela da população está pensando, afinal os textos dos jornais estão sempre em jogo com as expectativas de leitores e leitoras.
Vários estudos recentes e aprofundados vêm mostrando que essa noção dicotômica de vítima enganada ou puta oportunista, usada para explicar movimentos transnacionais de mulheres para inserir-se no mercado sexual, e que é veiculada também nos jornais que analisei, é simplista e não dá conta de explicar a complexidade dessas migrações.