´Um guapo del 900` é o próximo filme exibido dentro do Ciclo de Cinema Argentino: entre gaúchos e compadritos. A apresentação acontece na próxima quarta-feira (20/05), às 16h, no auditório do Centro de Comunicação e Expressão(CCE), e a entrada é franca.
Após o filme haverá debate com os professores Fábio Lopes e Rosana Kamita.
Informações: 3721-9288, ramal 203 ou nucleoonetti@cce.ufsc.br
Sobre o filme
Por Claudio Celso Alano da Cruz/ Professor de literatura da UFSC
Un guapo del 900, filme a ser apresentado às 16h do dia 20/05 pelo Ciclo de Cinema Argentino – entre gauchos e compadritos, no
Auditório Henrique Fontes do CCE da UFSC, foi dirigido por um dos maiores cineastas argentinos, Leopoldo Torre Nilsson, que dividiu o roteiro com Samuel Eichelbaum, autor da peça homônima que serviu de base para o filme.
Enquanto peça, já havia estreado vinte anos antes, em 1940, obtendo um grande sucesso, tendo se convertido de imediato num clássico do teatro argentino.
Cabe lembrar que a figura do guapo, uma espécie de versão urbana, ou melhor, suburbana, do mítico gaucho da região do pampa, já vinha sendo configurada há algumas décadas no âmbito da cultura portenha, a começar pelo poeta Evaristo Carriego que, no seu único livro publicado em vida, Misas herejes, de 1908, ofereceu a primeira configuração mais consistente dessa personagem. O poema em questão chamava-se justamente “O guapo”, que viria a ter uma influência decisiva no jovem Borges dos anos de 1920, bem no momento em que elaborava o que depois a crítica iria chamar de sua estética das orillas(margens), ou seja, uma poética que tinha a sua base na representação do subúrbio ou arrabalde portenho. Hoje falaríamos em zonas periféricas da cidade.
Essas orillas ainda guardavam muito do campo argentino em termos de valores e mesmo de algumas profissões, já que eram nessas margens da cidade que se concentrava toda uma atividade ligada ao abate de animais para o abastecimento de uma Buenos Aires em rápida expansão e
crescimento, em vias de se tornar uma das maiores concentrações urbanas do planeta. É neste ambiente tão dinâmico quanto instável que irá se destacar a figura do guapo, também chamado de compadrito, entre algumas outras denominações. Esse tipo suburbano reunirá em torno de si uma série de características que podemos considerar como sendo uma mescla singular de elementos ligados à tradicional cultura argentina (o que chamaríamos hoje de uma Argentina profunda) com aqueles vinculados à sua acelerada modernização. Assim. por exemplo, à coragem e à destreza no uso do cuchillo (faca ou punhal), próprias do gaucho, iria se juntar nesse verdadeiro aristocrata da periferia uma particular elegância suburbana e a desenvoltura coreográfica – com seus nervosos cortes e quebradas – de quem estava criando, justamente naquele momento e lugar, uma das danças mais sensuais do mundo: o tango.
Neste caldo de cultura, em que a pobreza típica dos arrabaldes portenhos podia conviver, senão com a riqueza, com alguns dos refinamentos da cultura francesa, por então um verdadeiro ópio consumido em generosas porções pela elite de Buenos Aires, emerge, como uma espécie de “herói cultural” das classes menos favorecidas, o guapo. Antes de escrever alguns contos com essa temática, que se tornariam universalmente conhecidos, em especial o célebre “Hombre de la esquina rosada”, Borges foi um dos primeiros a teorizar sobre tal figura. Reivindicou para ela, em textos ensaísticos dos anos de 1920, nada mais nada menos do que sua equivalência em termos urbanos daquilo que o gaucho havia representado para o mundo rural.
O processo pelo qual Borges desenvolveu essas idéias ao longo de sua obra é por demais extenso para ser tratado aqui, mas o certo é que pela época em que Samuel Eichelbaum está escrevendo Un guapo del 900, o tema já tinha ganho um grande destaque. E, transcorridas algumas décadas desde o seu aparecimento enquanto tipo característico do meio social portenho, era motivo de reflexões e representações nas mais variadas áreas da cultura argentina. Em especial na área do tango, que atingia então, pode-se dizer, o seu ponto mais alto em termos de fama e de aceitação, tanto na Argentina como no mundo.
No entanto, do ponto de vista estritamente dramático, a representação do guapo parece ter atingido na peça escrita por Eichelbaum o seu ponto mais alto. Chega-se com Ecumênico – o guapo do título – a uma representação cabal dessa figura. Não estamos mais frente às tão frequentes quanto ligeiras e superficiais tentativas de sua apreensão pelo sainete portenho, típica peça curta das primeiras décadas do século passado que se particularizou pela recriação do ambiente suburbano de Buenos Aires. Muito menos frente às inumeráveis “fotografias” da personagem vinculadas pelo tango que, por melhor que fossem suas letras – e algumas se imortalizariam – não conseguiam, pela brevidade própria do gênero canção – um aprofundamento maior. Mesmo Borges que, nestes anos quarenta, estava em pleno desenvolvimento da sua particular representação dessa figura, não demonstrava interesse maior pela psicologia da personagem. Coisa, aliás, que nunca o preocupou, como sabemos.
Pois foi exatamente ao enveredar por essa zona ainda inexplorada que Eichelbaum conseguiu iluminar aspectos que não haviam sido desenvolvidos por nenhum criador. O dramaturgo argentino iria dar ao guapo aquilo que ele não tinha nas suas demais representações até então, ou seja, uma “alma” cabalmente configurada, com suas contradições, fragilidades e hesitações. Mesmo que encobertas, como cabia a um guapo típico, por aquela coragem inteiriça que fez a sua fama.
Além da personagem principal, há pelo menos mais duas criações inesquecíveis a serem lembradas, demonstrações também da capacidade de Eichelbaum de criar “personagens de carne e osso”, como se diz nos bastidores teatrais. Trata-se da mãe do protagonista – uma espécie de Mãe Coragem do subúrbio portenho – e do caudilho a quem Ecumênico serve de guarda-costas. Na verdade, a figura histórica do então chamado guapo de comitê, perfeitamente exemplificado por Ecumênico, era muito mais do que isso. Sua importância política advinha, antes de qualquer coisa, do prestígio que desfrutava no bairro, em primeiro lugar pela sua coragem, que envaidecia a todos do lugar. Mas era daí também que exercia um controle férreo sobre os votantes. E ai de quem lhe desobedecesse! Seu punhal, ritualmente trazido na cava do seu vistoso jaleco (casaco curto), costumava, tão só pela sua lembrança, convencer os que hoje chamaríamos de “indecisos” a votar no seu candidato. E não poucas vezes até aqueles decididos a votar no candidato contrário.
Enfim, naquela época, em torno de 1900, o jogo eleitoral argentino não era propriamente um “jogo de damas”… Pelo menos até o ano de 1912, quando foi aprovada a Lei Sáenz-Peña, que instituiu para sempre o voto secreto. Até então todos escolhiam seus candidatos “a céu aberto”, dizendo em alto e bom som em quem estavam votando. O guapo era, portanto, uma figura essencial no jogo político, já que ele é que controlava – e pressionava a punhal, literalmente – o voto de cada morador do bairro que lhe cabia controlar. É claro que, por sua vez, ele recebia toda a proteção do caudilho para quem “trabalhava”. Tal proteção incluía não só a instância propriamente econômica, mas até a policial e judicial, sempre que necessário. E como eram necessárias em tempos de eleição!
Este, portanto, o ambiente em que transcorrem as ações da peça teatral e, seguindo-a fielmente, do filme dirigido por Torre-Nilsson, que tem entre seus maiores atrativos uma bela e competente reconstituição cinematográfica do subúrbio portenho de 1900. Só por isso já valeria a pena assisti-lo. Mas há muito mais, a começar pela brilhante atuação de Alfredo Alcón, que mereceu, na época, quatro prêmios. De fato, deve tê-los merecido. Ao criar o seu Ecumênico Lopes, deixou registrado para sempre uma das melhores representações dessa mítica figura da cultura argentina: o guapo.