Estudo internacional projeta fenômenos extremos com maior frequência e intensidade no RS
As enchentes catastróficas que assolaram o Rio Grande do Sul entre abril e maio de 2024 trouxeram à tona a vulnerabilidade da região diante de fenômenos climáticos extremos. As chuvas recordes afetaram cerca de 90% do estado e 2,3 milhões de pessoas, com 640 mil delas perdendo suas casas. Um estudo publicado na última semana por pesquisadores de diversos países projeta que eventos desta categoria na região se tornarão mais frequentes e intensos no futuro. O agravamento se deve, principalmente, às consequências das mudanças climáticas e do fenômenos El Niño associadas à falta de investimentos em um sistema de proteção. Para os autores, o episódio expôs a necessidade urgente de aprimoramento da infraestrutura contra enchentes e de atenção às desigualdades sociais que agravam os impactos de desastres naturais.
> Acesse a íntegra do relatório (em inglês)
A professora Regina Rodrigues, do Departamento de Oceanografia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), foi uma das autoras da colaboração internacional produzida pelo World Weather Attribuition, que reuniu representantes do Brasil, Reino Unido, Estados Unidos e Holanda. O relatório descreve que o estado gaúcho registrou chuvas persistentes, equivalentes a três meses em um período de duas semanas, com uma média de 420 mm entre 24 de abril e 4 de maio. O volume acumulado levou a níveis históricos dos rios e colocou 12 barragens sob pressão, apresentando risco de rompimento. As inundações ocorreram em grande parte do estado, mas foram particularmente intensas em Porto Alegre, a capital e maior cidade do estado, situada à beira do Lago Guaíba, onde este foi o início de maio mais chuvoso em 63 anos.
“Em algumas regiões, especialmente na ampla faixa central dos vales, planaltos, encostas e áreas metropolitanas, as chuvas acumuladas excederam 300 milímetros (mm) em menos de uma semana. Por exemplo, no município de Bento Gonçalves, os volumes atingiram 543,4 mm. De 29 de abril a 2 de maio, quando as chuvas fortes se fixaram sobre o Rio Grande do Sul, os acumulados variaram entre 200 mm e 300 mm. Na capital, Porto Alegre, o volume atingiu 258,6 mm em apenas três dias. Esse valor corresponde a mais de dois meses de chuva, em comparação com as médias climatológicas de 1990-2020 para abril (114,4 mm) e maio (112,8 mm)”, informa o documento.
O estudo destaca ainda que, das quatro maiores enchentes já registradas em Porto Alegre, três ocorreram nos últimos nove meses, a maior tendo ocorrido em maio de 2024 e a segunda maior em 1941. Entretanto, ao comparar os eventos de 1941 e 2024, os pesquisadores indicam que no primeiro episódio foram necessários 22 dias para o nível da água no Lago Guaíba atingir 4,76 m acima dos níveis normais. Enquanto este ano, em somente cinco dias o Guaíba excedeu 5 m.
Os assentamentos informais, as aldeias indígenas e as comunidades quilombolas foram particularmente atingidos pelas enchentes. A baixa renda dessas populações foi um fator crucial na extensão dos danos, destacando a necessidade de uma abordagem mais inclusiva e equitativa na mitigação de desastres. Segundo os pesquisadores, um dos fatores críticos para o impacto foi a redução de investimentos e manutenção do sistema de proteção contra enchentes de Porto Alegre. A capital do estado não havia experimentado um evento significativo de inundação recentemente, o que levou à falha do sistema ao enfrentar enchentes de 4,5 metros, apesar de sua capacidade declarada de suportar até 6 metros de água.
Aumento da probabilidade de ocorrência
Para conduzir a análise, as chuvas extremas foram caracterizadas por dois eventos principais: um de quatro dias e outro de dez dias. Ambos foram considerados extremamente raros no clima atual, com a previsão de 100 a 250 anos para o período de retorno, que é o intervalo estimado entre ocorrências de igual magnitude de um fenômeno natural, como chuvas, ventos intensos e granizo, por exemplo.
O relatório determina ainda que o fenômeno climático El Niño-Oscilação Sul (Enso) desempenhou um papel significativo na variabilidade da precipitação observada, consistente com pesquisas anteriores. A região é impactada por episódios deste tipo de evento, que resultam em inundações no sul do Brasil, Uruguai e norte da Argentina. Embora sejam mais fortes durante a primavera e o verão, precipitações intensas podem também ocorrer nas demais estações, como as enchentes do Rio Itajaí-Açu registradas em julho de 1983.
Para avaliar o papel das atividades humanas neste cenário, os autores combinaram dados observacionais com modelos climáticos e avaliaram as mudanças na probabilidade e intensidade das chuvas fortes nos respectivos intervalos. A conclusão foi que as mudanças climáticas dobraram a probabilidade de ocorrência de ambos os eventos e aumentaram a intensidade em 6-9%. Para projeções futuras, com um clima de 2˚C de aquecimento global relativo ao período pré-industrial, a probabilidade desses eventos ocorrerem seria de uma vez a cada 20 a 30 anos, com um aumento na intensidade de cerca de 4% em comparação com os dias atuais.
Segundo o estudo, as leis de proteção ambiental no Brasil, que deveriam proteger cursos d’água e limitar mudanças no uso da terra, não foram consistentemente aplicadas. Isso levou ao avanço sobre áreas propensas a inundações, aumentando a exposição de pessoas e infraestrutura aos riscos de enchentes. Além disso, embora previsões e avisos das enchentes estivessem disponíveis quase uma semana antes, muitos dos afetados não receberam os alertas ou não compreenderam a gravidade da situação.
“A comunicação de risco precisa ser melhorada para garantir que as previsões levem a ações que salvem vidas. É essencial continuar aprimorando as estratégias de resiliência e as medidas de planejamento urbano, como a realocação de cidades inteiras e a implementação de novas barreiras e diques. A prefeitura de Muçum, por exemplo, planeja realocar cerca de 5.000 residentes e reconstruir 40% da cidade em um novo local”, traz o relatório.
A gentrificação de resiliência
As enchentes também expuseram a distribuição desigual da infraestrutura de proteção, perpetuando desigualdades nos ambientes urbanos. Áreas habitadas por populações de baixa renda enfrentam maiores riscos de inundações e impactos associados, criando uma armadilha de pobreza. O estudo afirma que é essencial evitar a “gentrificação da resiliência”, isto é, a reconstrução que pode aumentar os custos e marginalizar ainda mais as populações pobres.
Os resultados indicam que o Rio Grande do Sul está prestes a enfrentar impactos mais frequentes e severos relacionados a enchentes no futuro, principalmente se não houver investimentos em respostas para mitigação e adaptação. “Investimentos futuros em proteção contra enchentes devem integrar considerações sociais, econômicas e ambientais no planejamento urbano para ajudar a criar cidades mais inclusivas e resilientes”.
Além disso, é fundamental tratar das inadequações na manutenção da infraestrutura existente, garantindo que possa suportar os extremos climáticos projetados. O desenvolvimento de mapas de risco de enchentes seria útil para identificar áreas vulneráveis e planejar intervenções adequadas, assim como a implementação de novas barreiras e diques são algumas das medidas que devem entrar em discussão.
Repercussão do estudo
O estudo internacional, intitulado Mudanças climáticas, El Niño e falhas na infraestrutura por trás das enchentes massivas no sul do Brasil (em inglês: Climate change, El Niño and infrastructure failures behind massive floods in southern Brazil), repercutiu em diversas publicações da imprensa nacional e estrangeira e no site do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI). Confira a seguir os links da divulgação do estudo em alguns veículos:
> The Guardian – Devastating Brazil floods made twice as likely by burning of fossil fuels and trees
> The New York Times – Deadly floods in Brazil were worsened by climate change, study finds
> France 24 – Climate change made historic Brazil floods twice as likely: scientists
> Folha de S.Paulo – Mudança climática tornou chuva no RS duas vezes mais provável, aponta estudo
> O Globo – Mudanças climáticas tornaram a tragédia no Rio Grande do Sul duas vezes mais provável, indica estudo internacional
> Estadão – Quanto El Niño e mudanças climáticas pioraram as chuvas no Rio Grande do Sul? Estudo traz resposta
> MCTI – Mudança climática dobrou a probabilidade de ocorrência de chuvas extremas no Sul do Brasil
Jornalista Maykon Oliveira | maykon.oliveira@ufsc.br
Agência de Comunicação | UFSC