Professoras da UFSC comentam falhas de metodologia e sexismo de artigo publicado em revista científica
Há pouco mais de duas semanas, um estudo publicado na revista científica Nature Communications, uma das mais conceituadas do mundo, gerou indignação na comunidade científica e uma onda de protestos, notas de repúdio e abaixo-assinados exigindo a retratação do periódico e a retirada do artigo. O trabalho em questão foi conduzido por três pesquisadores do campus de Abu Dhabi da Universidade de Nova York e se propõe a analisar a influência das relações de orientação sobre o desempenho acadêmico de jovens cientistas. O estudo apresenta uma série de falhas metodológicas, mas o principal objeto das críticas foram suas conclusões machistas, que reforçam estereótipos e a perpetuação de desigualdades de gênero na ciência.
O trio utilizou dados de mais de 200 milhões de artigos científicos publicados em um período de mais de 100 anos para identificar relações entre orientadores e orientandos. Em seguida, acompanhou o “sucesso profissional” dos últimos, baseado no número de citações de seus artigos ao longo do tempo. Os resultados indicaram que a orientação por cientistas renomados (conceito também definido com base no número de citações) faz com que os pesquisadores iniciantes tenham maior chance de êxito na carreira. O mesmo não acontece, segundo os responsáveis pela pesquisa, quando a orientação é feita por uma mulher: ter mais mentoras estaria associado a um pior desempenho posterior, e o índice se agrava quando a pessoa orientada é outra mulher. O artigo afirma ainda que, ao orientar mulheres em vez de homens, as supervisoras também sairiam perdendo, com uma redução de 18% em suas citações. Os autores, por fim, sugerem que mulheres devem procurar a orientação de homens e declaram que políticas de promoção da diversidade, “por mais bem-intencionadas que sejam, podem prejudicar a carreira de mulheres que permanecem na academia de maneiras inesperadas”.
No texto Como validar o machismo estrutural com uma publicação mal feita, publicado no site de divulgação científica Bate-Papo com Netuno, a professora da Coordenadoria Especial de Oceanografia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Juliana Leonel expõe alguns dos principais problemas metodológicos do estudo e questiona a responsabilidade do corpo editorial da revista. Entre os apontamentos, estão a definição de sucesso com base somente na publicação de artigos científicos e a relação de orientação delimitada apenas pelo fato de um pesquisador “sênior” ter publicado com um pesquisador “júnior” – o que caracteriza, na verdade, uma relação de coautoria, que pode se dar entre colegas de mesmo nível ou com financiadores, por exemplo. O próprio conceito utilizado para pesquisadores “sênior” ou “júnior” também é questionável, pois se baseia no tempo que decorreu desde a primeira publicação de um artigo científico por aquela pessoa, desconsiderando licenças de saúde, maternidade ou qualquer outra pausa na carreira. Os autores também não deixam claro como trabalharam com as limitações dos métodos que estimam o gênero em função do nome, e, além disso, o banco de dados utilizado apresenta problemas, como a possibilidade de um mesmo pesquisador ter múltiplos registros.
“A primeira falha é a escolha da base de dados, que não é adequada. Se você já escolhe uma base de dados que não é adequada, tudo que você analisar a partir daqueles dados fica prejudicado”, comenta a professora do Departamento de Física da UFSC Debora Peres Menezes, que, aliás, enumera vários dos mesmos problemas apontados por Juliana. Um dos mais sérios para ela, contudo, é o viés embutido na análise. “Eles estão olhando os dados para enxergar o que querem enxergar. Eles fizeram um estudo de 100 anos. 100 anos atrás, algumas universidade proibiam as mulheres de estudar, quanto mais de serem professoras e orientadoras. Já é uma escolha manipulada”, enfatiza.
Muitas das questões observadas por elas, bem como por outras dezenas de cientistas, foram registradas também pelos revisores do periódico. “Apesar dessas coisas que estou levantando e de várias outras que os revisores do artigo levantaram, o paper foi publicado. Isso foi uma decisão editorial. E quando isso é uma decisão editorial de uma revista tão renomada, preocupa, porque não é revista de opinião”, ressalta Débora. “É difícil entender o que aconteceu. Não acho que foi um descuido”, complementa.
Devido à grande quantidade de críticas que recebeu, especialmente pelas redes sociais, dois dias após a publicação, a Nature Communications publicou um aviso, no qual informa que está reavaliando o estudo. Para Débora e Juliana, contudo, isso não basta. “O artigo deve ser retirado, um pedido de desculpas deve ser feito, e o corpo editorial da revista precisa rever suas políticas de diversidade e inclusão, pois situações como essa não podem se repetir. Infelizmente, não é a primeira vez que situações como essa ocorrem na própria revista que, ano passado publicou (e não retirou) um artigo de eugenia”, afirma Juliana. Ela defende ainda que o periódico se posicione, pois é responsável pela informação disseminada. “Veja o caso da publicação que fraudou resultados para ligar a ocorrência do autismo a vacinas que foi publicado em 1998, o artigo foi removido uma década depois e o pesquisador (médico) líder da pesquisa perdeu a sua licença. No entanto, o dano já tinha sido feito e até hoje temos pessoas que citam esse artigo (desconhecendo que ele foi removido) como justificativa para ser contra a vacinas e/ou que não vacinam seus filhos”, salienta.
Débora alerta, ainda, para os riscos do que chama de pseudométodos científicos. “São, na verdade, falsos métodos científicos. Sempre digo que tem alguns inimigos da ciência, e o pior dos inimigos da ciência é um cientista tresloucado, que conhece os métodos. Isso é muito perigoso, porque ele sabe como publicar, onde publicar, os meandros das coisas, e pode ser capaz de distorcer um estudo e transformá-lo em algo completamente absurdo. Mas a ciência é robusta, e esses estudos são revistos.” Exemplos dessas manipulações são as inúmeras pesquisas realizadas, principalmente até o século 19, para validar atitudes racistas e sexistas.
Machismo na ciência
Para Juliana o artigo representa um retrocesso e mostra como estamos longe de combater o machismo estrutural: “Eu não imagino que esse trabalho vá afetar diretamente as mulheres na orientação (tanto na escolha de orientadoras como no aceite de orientandas), mas pode afetar indiretamente caso programas de pós-graduação ou agências de fomento usem essa ‘análise’ em seus editais/avaliações. Não me surpreenderia se, no cenário político atual, agências de fomento usassem as recomendações do artigo nos critérios de distribuição de bolsas e outros recursos”. “Acho que é uma tentativa de manter o status quo. Parece até uma tentativa meio desesperada de manter uma situação que está começando a mudar, muito lentamente”, adiciona Débora.
Juliana destaca ainda que, mesmo que não houvesse problemas metodológicos, o artigo falha em não discutir todos os motivos que poderiam levar ao menor sucesso das cientistas: “Artigos de homens são mais aceitos que os de mulheres pelo simples fato de serem homens (há um estudo em que o mesmo artigo foi submetido duas vezes para a mesma revista, um com um autor e o outro com uma autora, o primeiro foi aceito, o segundo não). O mesmo vale para avaliação de projetos e quando concorrem por uma vaga de emprego, as mulheres são as mais afetadas pelo terceiro turno de trabalho (atividades domésticas e de cuidado com filhos e outras pessoas da família), a parentalidade afeta muito mais a produção das mulheres (muito raramente o período de licença maternidade é considerado nas avaliações de projetos e progressão funcional ou para concorrer a bolsas), e muitos outros fatores. Ao aceitar o artigo sem que essa discussão fosse levantada no mesmo, há um fortalecimento do machismo estrutural”.
Ela cita a própria experiência como exemplo: na data da entrevista, estava preparando um projeto de pesquisa para submeter a um edital, no qual um dos pontos considerados na avaliação é a produtividade do cientista, basicamente avaliada pela quantidade de artigos publicados nos últimos anos. “No entanto, o edital não leva em consideração que em 2020 estive seis meses em licença maternidade. Ele também não considera que, devido à pandemia, agora trabalho de forma remota (assim como meu companheiro) ao mesmo tempo que tenho que cuidar do meu bebê. Logo, serei avaliada (e cobrada) da mesma forma que alguém que não tem filhos ou que não participa da criação deles. Se eu não publico, não consigo financiamento para pesquisar, não consigo orientar estudantes e não terei resultados a serem publicados, ou seja, entro em um ‘loop negativo’.” O projeto Parent in Science publicou recentemente dados que demonstram como a pandemia impacta mais a carreira das mães que a dos pais – problema ainda mais grave entre mulheres negras.
Desigualdades de gênero começam a afetar meninas ainda na infância e permeiam toda a trajetória das cientistas, destaca Débora. Uma de suas principais evidências é a baixa quantidade de mulheres nos níveis mais altos da carreira. Em um texto publicado no site do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a pesquisadora Fernanda De Negri revela que as mulheres são cerca de 54% dos estudantes de doutorado no Brasil, mas representam apenas 24% dos beneficiários de um subsídio do governo concedido aos cientistas mais produtivos do país (a bolsa produtividade) e 14% da Academia Brasileira de Ciências. “Várias universidades têm secretarias ou comissões voltadas para equidade, diversidade e inclusão. Há inúmeros artigos e estudos que mostram que o ambiente mais diversos é mais produtivo, retém melhores ideias e é mais lucrativo até nas empresas. É importante que as mulheres sejam inseridas nesse ambiente se a gente quiser melhorar”, realça Débora.
Camila Raposo/Jornalista da Agecom/UFSC