SUS 30 anos: ‘modelo é admirado no mundo, mas a própria população não o defende’

30/04/2019 18:56

Auditório do CSE recebeu seminário sobre o SUS. Foto: Pipo Quint/Agecom/UFSC

“Um modelo mundial de sistema público de saúde, admirado, estudado e seguido nos mais diversos países do mundo, mas que a própria população pouco se mobiliza para defender”, com essas enfáticas palavras Marco Aurélio Da Ros, professor aposentado do Departamento de Saúde Pública da UFSC (SPB/CCS), sintetizou o atual cenário dos Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro.

Marco Aurélio formou a mesa do seminário sobre os 30 anos do SUS, com o tema “Reforma Sanitária: múltiplas leituras, diálogos e controvérsias”, realizado a partir das 8h30 desta terça, 30. O evento reuniu no auditório do Centro Socioeconômico da Universidade Federal de Santa Catarina (CSE/UFSC) estudantes de graduação, pós-graduação, residentes, professores e técnicos para debater o SUS. Ao lado de Marco Aurélio estavam Clair Castilhos, também professora aposentada do Departamento de Saúde Pública da UFSC, e Flávio Magajewski, ex-secretário municipal de Saúde de Florianópolis (1992-1996) e professor da Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul). Em comum, os três componentes da mesa têm ativa participação junto ao movimento de Reforma Sanitária que originou o modelo mundial de sistema público de saúde que é o SUS.

Reforma Sanitária e as origens do SUS: “Saúde é democracia”

O evento organizado pela disciplina de Serviço Social e Saúde, ministrada por Tânia Krüger, e pela Residência Multiprofissional em Saúde da Família (realizada em parceria entre a UFSC e a Secretaria Municipal de Saúde de Florianópolis), iniciou com as falas dos integrantes da mesa. Os três são referências locais do amplo movimento de Reforma Sanitária que formulou as bases para o SUS e na ocasião contaram um pouco da história deste movimento e comentaram o atual contexto do SUS.

Marco Aurélio da Ros, Flávio Magajewski, Tânia Krüger e Clair Castilhos. Foto: Pipo Quint/Agecom/UFSC

Clair Castilhos deu destaque ao caráter democrático da Reforma Sanitária. Inspirada no movimento de Reforma Sanitária italiana da década de 1960  e fortemente influenciado pela declaração da Organização Mundial de Saúde (OMS), redigida em reunião realizada em Alma-Ata em 1978, e que preconizava a saúde como direito universal de todos os seres humanos até o ano 2000, o movimento de Reforma Sanitária organizou, a partir dos anos 1970, diversos sujeitos sociais em defesa da criação de um sistema universal de saúde .

Não era, no entanto, um movimento restrito ao acesso à saúde. Clair relembra que o lema da Reforma Sanitária brasileira era “Saúde é democracia”. Com isso, foi trazido à tona que o direito à saúde somente faz sentido quando articulado a uma concepção de direitos humanos e de uma sociedade igualitária, justa e livre.

Clair deu relevo ainda ao caráter amplo da Reforma Sanitária, que desde a “crise do milagre” – emergida no fim da primeira metade da década de 1970 quando o regime militar em curso já não conseguia atingir o crescimento econômico de sua primeira década e a carestia se espraiava pelo país – reunindo estudantes, profissionais de saúde, movimentos sociais e comunitários em torno da pauta de que a saúde era mais que a ausência da doença, englobando todos os elementos da vida como trabalho, lazer, moradia e alimentação, por exemplo. Assim, o chamado conceito ampliado de saúde foi forjado por um amplo movimento social que emergia em pleno embate pelas retomada das eleições diretas, que não foram realizadas de 1960 a 1989.

Marco Aurélio corroborou com Clair, ressaltando que a relação entre saúde e democracia é indivisível da constituição do SUS. Criado por uma miríade de sujeitos ligados umbilicalmente à luta pela democracia no Brasil, o Sistema foi formado a partir da consideração de que saudável é uma sociedade democrática e igualitária. É, portanto, um projeto de sociedade. E este caráter se expressou até à aprovação dos artigos que criaram o SUS na Constituição Federal de 1988. Aprovado por emenda popular assinada por mais de 400 mil cidadãos em apenas 15 dias, os artigos 196 a 200 da Carta Magna preveem a saúde como um direito universal, de dever do Estado, e prestada não somente como cura e/ou prevenção de doenças, mas ancorada em políticas sociais e econômicas, dentro do conceito ampliado de saúde.

A implantação e os avanços do SUS

Flávio Magajewski apontou que a implantação do SUS refletiu não somente o sucesso prático da Reforma Sanitária, mas também o êxito teórico de sua concepção de que defender a saúde para todos é também defender uma sociedade mais justa e igualitária, independente do modelo econômico adotado por esta sociedade. Exemplos de modelos universais de saúde são muitos nos mais diversos países, de nações socialistas, a social-democráticas até os países capitalistas mais liberais. Além disso, os modelos universais têm demonstrado sucesso tanto nações pobres e periféricas quanto nas nações mais ricas e centrais, como Inglaterra, França e Canadá.

No Brasil, Flávio argumentou que é importante considerar que o SUS ainda está em implementação. Regulamentado por lei própria em 1990, dois anos após à promulgação da Constituição Federal, portanto, o sistema trouxe ganhos inimagináveis. “A saída de uma política de saúde em que o Ministério da Saúde apenas fazia campanhas preventivas e de vacinação e com o financiamento curativo destinado aos IAPs [Institutos de Aposentadorias e Pensões, reunidos, a partir de 1966 no Instituto Nacional de Previdência Social – INPS] para um sistema, que é muito mais que um instituto, é um sistema organizado de forma federativa, que envolve municípios e Estados e atende a todos os brasileiros, é algo sem precedentes. Principalmente em um país periférico e desigual como o Brasil. Só aprovamos um projeto tão amplo porque não imaginávamos que poderia ser impossível”, destacou Flávio.

O ex-secretário municipal de saúde ainda apontou para as conquistas aos usuários dos sistema de saúde, que hoje são cobertos por tratamentos gratuitos “onde antes as pessoas que tinham que fazer rifas e vender animais para fazer tratamentos de saúde”, além de desenvolvimentos que são referência mundial como os transplantes e a cadeia de frio de um país continental e quente que tem permitido a imunização por vacinas para a população brasileira.

E a imunização é também o exemplo utilizado por Flávio para argumentar em defesa do SUS: “A despeito da atual precariedade, todos nós que construímos o SUS vivemos como profissionais de saúde antes do SUS. E era o caos. As pessoas tinham acesso à saúde vendendo animais, fazendo rifas e outras formas precárias de acesso à saúde. E foi essa população que conquistou um conjunto de bens e serviços universais estruturados e caros, porque é saúde gratuita, mas não é barata. Mas por quê as sociedades desenvolvidas assumem a saúde como um projeto de responsabilidade pública, com França, Inglaterra e Alemanha? Porque isso é bom para todos. E este é um grande argumento em defesa do SUS, pois, no Brasil, se esperava por ofertar saúde apenas aos mais ricos, mas saúde é indivisível. E um exemplo disso é a vacina. Não adianta vacinar somente um grupo, porque nem esse grupo terá saúde se não estiverem todos saudáveis”.

Os desafios do SUS: “quando tudo está perdido, é preciso começar de novo”

As conquistas do SUS, entretanto, passam por grandes dificuldades. Segundo Clair, “o SUS está sob risco há muitos anos. O princípio da universalidade foi suplantado pela judicialização da saúde, com juízes prescrevendo medicações, internações etc., dada a falta de recursos. A relação público-privado que aparece na Constituição Federal como complementar, com o SUS contratando aquilo que lhe falta, foi também desmontada pelo subfinanciamento, avançando, inclusive na gestão privada de hospitais públicos, via Organizações Sociais. Por fim, o federalismo também é ponto de debate. Na Constituição, SUS e SUAS [Sistema Único de Assistência Social] respeitam os entes federativos, que adentram as políticas por adesão. Mas tudo isso está em xeque. O afunilamento da prestação de serviços de saúde em uma crise de subfinanciamento se reduziu à defesa do SUS, esquecendo-se da Reforma Sanitária, que é mais ampla que o sistema que ela preconizou. Ao mesmo tempo, defender o SUS é também uma defesa do Estado brasileiro em seu caráter mais democrático, pois o SUS é uma política de Estado. A crise atual nos coloca a urgência de articular a Reforma Sanitária em seu caráter teórico e político em um movimento necessário de radicalização da democracia”.

Marco Aurélio sugeriu formas de defesa: “quando tudo parece perdido, é preciso começar de novo”. Com isso, o professor aposentado da UFSC e ainda professor na Unisul, apontou para a necessidade dos profissionais da saúde, estudantes, residentes, movimentos sociais e a população usuária voltarem aos conselhos de saúde e participarem da política de saúde. Denunciar o subfinanciamento é importante, mas vital é defender o projeto de sociedade que sedimentou o projeto do SUS, uma sociedade democrática, justa, igualitária e até mais feliz, porque felicidade é também saúde.

 

Gabriel Martins/Agecom/UFSC

Fotos: Pipo Quint/Agecom/UFSC

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