Repórter premiada aborda jornalismo investigativo e humanizado em aula magna na UFSC

26/03/2018 19:28

Foto: Júlia Mallmann

“Diante da pilha de corpos, o sargento sentiu as forças de seus braços se esvaírem. Percebeu que homens e mulheres haviam morrido entrelaçados uns aos outros, caídos entre as portas dos sanitários individuais na tentativa alucinada de buscar ar na janela do basculante — que também estava lacrada.

Nenhum treinamento o havia preparado para lidar com a dor que sentiu no momento em que foi tomado pelo mais humano dos sentimentos: a compaixão.

— Nós não salvamos ninguém — repetia, em choque — Não salvamos ninguém.”

O trecho encerra o primeiro capítulo do novo livro da jornalista premiada Daniela Arbex, formada em Comunicação Social pela Universidade Federal de Juíz de Fora (UFJS), e há 20 anos repórter do jornal Tribuna de Minas. Em “Todo dia a mesma noite”, Daniela refaz os passos das vítimas, dos familiares e dos profissionais envolvidos no resgate do incêndio da boate Kiss, em Santa Maria (RS). A tragédia, que ocorreu na madrugada do dia 27 de janeiro de 2013 e completou recentemente cinco anos, é considerada a segunda maior tragédia em número de vítimas na história do país.

Convidada pelo Departamento de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) para a aula magna do semestre nessa segunda-feira, 26 de março, Daniela apresentou os momentos mais significativos de sua trajetória profissional. A jornalista relembrou seus anos de faculdade, quando fez a primeira reportagem de jornalismo investigativo, falou do privilégio de emprestar os ouvidos àqueles que são invisíveis para a sociedade, além de contar os bastidores de seus outros dois livros. Entre eles, a grande reportagem “Holocausto Brasileiro”, publicada em 2013, que revela o genocídio de mais de 60 mil pessoas no maior manicômio do Brasil, criado em 1903 em Barbacena, Minas Gerais. A maior parte das vítimas, cerca de 70%, não apresentava qualquer diagnóstico psiquiátrico. Eram apenas pessoas consideradas indesejáveis pela sociedade da época. Esse livro, assim como o “Cova 312”, lançado em 2015, rendeu a Daniela vários prêmios nacionais e internacionais.

Foto: Júlia Mallmann

O auditório de 120 lugares ficou lotado de olhares atentos e inspirados, que se encheram de lágrimas ao saber dos detalhes da apuração sobre a tragédia na Boate Kiss. Daniela recebeu a sugestão de pauta de um colega de trabalho mas, no primeiro momento, descartou a possibilidade. “Foi por puro preconceito, por achar que tudo já havia sido explorado sobre aquela história.” Mas ao falar por telefone com a mãe de uma vítima, que depois veio a ser uma das personagens do livro, a jornalista sentiu algo especial, sentiu que precisava ouvir aquelas pessoas.

De 2013 até agora a história daquela madrugada que mudaria para sempre a cidade universitária de Santa Maria havia sido contada diversas vezes, mas com um único foco: a impunidade. “Dar visibilidade é diferente de ouvir, é preciso humanizar a história.” E assim, a escritora humaniza os 242 mortos, humaniza o sentimento das famílias, e humaniza os profissionais da saúde e bombeiros que naquele dia também vivenciaram os piores momentos de suas vidas, e nunca antes haviam sido ouvidos.

Emocionada, Daniela mostrou ao público um vídeo feito com os personagens da tragédia durante um reencontro para a leitura do livro. Para a jornalista, foi seu trabalho mais difícil, exigiu-lhe muito psicologicamente, toda sua empatia e compaixão como nunca antes. Em suas próprias palavras, “a dor de Santa Maria é ainda hoje uma dor em movimento, ela não acaba, mas só o jornalismo permite que certos encontros aconteçam.” E relembrou a fala da mãe de uma das vítimas: “você trouxe minha filha contigo.”

Em “Todo dia a mesma noite” a jornalista não aponta dedos, não julga e não expõe culpados, mas evidencia mais uma vez o poder de uma investigação jornalística: “Construção de memória coletiva é uma forma de buscar justiça.”

Camila Saplak/Estagiária de Jornalismo da Agecom/UFSC

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