Professora da UFSC homenageada pela contribuição à Antropologia brasileira
A professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Carmen Rial foi homenageada na 30ª Reunião Brasileira de Antropologia com a medalha Roquette Pinto pela significativa contribuição à Antropologia brasileira. O prêmio da Academia Brasileira de Antropologia, entidade que presidiu entre 2013 e 2015, emocionou Carmen: “Não há reconhecimento maior do que aquele que vem dos pares. Uma trajetória, a gente faz com os colegas”. A carreira dela, que atua no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social e no Doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas da UFSC e já orientou dois vencedores de Prêmio Capes de Tese na área Interdisciplinar, começou no radiojornalismo em Porto Alegre e hoje é desenvolvida em Florianópolis, mas com pesquisas multi-situadas, que caracterizam seus trabalhos sobre globalização, seja estudando fast-food ou jogadores de futebol.
Atualmente, Carmen é vice-presidente do Conselho Mundial de Associações de Antropologia, que reúne mais de 50 associações de diferentes países.
Início no Jornalismo
A Antropologia não foi a primeira escolha de Carmen. Ela iniciou na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) estudando Biologia e Jornalismo (PUC e UFRGS). “Eu tinha voltado dos Estados Unidos fascinada com a ideia de cibernética e, como não existia este curso no Brasil, achava que se combinasse (estes cursos), eu faria cibernética. Evidentemente, isto não se provou assim”. À época, meados dos anos 1970, “o contexto político da ditadura militar era muito presente e a oposição não se dava na Biologia, na qual as pessoas estavam mais interessadas no trabalho de laboratório do que em política, mas se dava nas Ciências Sociais, no Diretório Acadêmico DAIU, que era uma das grandes forças de oposição ao regime no Rio Grande do Sul”.
Ao participar do movimento político de oposição promovido nos centros acadêmicos, um dos poucos espaços para oposição ao regime militar, Carmen trocou a Biologia pelas Ciências Sociais. “Acabei me formando em Jornalismo, que me dava condições de ganhar dinheiro, e em Ciências Sociais, que eu também amava”. Como jornalista, Carmen trabalhou na editoria de esportes da Rádio Gaúcha, onde chegou a cobrir duas copas (1978 e 1982). “Eu comecei na notícia, mas os jornalistas eram muito tolhidos, existia uma censura muito forte e uma divisão taylorista do trabalho que reduzia o fazer jornalístico do redator a recopiar telegramas”.
No departamento de esportes, onde foi a primeira mulher a trabalhar no radiojornalismo esportivo no Rio Grande do Sul, Carmen encontrara maior liberdade para criar. “Na Copa do Mundo de 78, que foi na Argentina, palavras que não se podia usar na editoria de jornalismo, eu usei livremente nos textos de esporte: tortura, ditadura militar, boicote”. Ela lembra que foi uma ampliação do espaço permitido para as mulheres – chegou a coordenar o departamento de esportes –, mas terminou quando achou muito repetitivo, sem desafios, e partiu para a Antropologia.
Novas respostas
Ela iniciou o mestrado em Antropologia, que “oferecia uma coisa nova a cada dia”, quando já estava estabelecida na rádio. “A opção pela Antropologia foi o caminho mais difícil. Como professora, eu ganharia menos, trabalharia muito mais, mas era um desafio”. Carmen acreditava, inicialmente, que iria seguir o caminho da Sociologia, mas a Antropologia dava melhores respostas para entender o Brasil, na opinião de Carmen. “Havia uma ascensão de grupos minoritários (mulheres, negros, homossexuais, associações de bairro), que tinham uma força política, e a Antropologia era especialista em estudar esses grupos. A Antropologia Urbana era muito desenvolvida no Brasil, liderada pelo Gilberto Velho, no Museu Nacional, pela Ruth Cardoso e Eunice Durham, na USP. Essa era uma Antropologia que se aproximava da Sociologia, muito influenciada pelos estudos da Escola de Chicago, e eu achei na Antropologia um campo mais interessante e desafiante, trazia mais respostas”.
A vinda para Florianópolis, em 1982, foi um sonho de juventude da geração de Carmen. “Nós tínhamos ‘descoberto’ Garopaba, desbravando as praias acampando, andando de carona. Florianópolis era um lugar utópico. Quando surgiu o concurso aqui eu não hesitei, embora viesse ganhando metade do que recebia na rádio, e numa função bem subalterna”.
Carmen veio morar no Canto da Lagoa, com um “modo de vida mais alternativo”, que detalha em capítulo do livro O poder do lixo, o último dos três que organizou em 2016. “Eu falo deste ethos mais ecologista que existia na Ilha nesta época. Nós buscávamos um estilo de vida mais hippie e ecológico, digamos, para ficar mais fácil entender”. Tudo era mais complicado na época, quando vinha de “motinho” para dar aula no curso de Jornalismo todos os dias, e enfrentava ruas sem calçamento num lugar com bastante precariedade material, sem telefone. “E ainda tinha que viajar toda semana para assistir a aula no mestrado em Porto Alegre”.
Fast-foods
Em meados dos anos 1980, Carmen vai para Paris com uma licença não remunerada e inicia estudos num tema precursor, globalização cultural. “Na época mal se falava de globalização e eu ia falar de um caso extremo, a globalização dos fast-foods. Eu já estava matriculada no doutoradona França, com um mestrado (D.E.A.) reconhecido pelo CNPq, mas o meu departamento só me deixaria sair se eu tivesse um mestrado defendido no Brasil. Então voltei para a UFRGS para terminar o mestrado e fiz uma dissertação sobre a Lagoa da Conceição, A transformação do espaço social na Lagoa da Conceição. Enquanto isto, meu tempo estava correndo na França. Era uma espécie de corrida de obstáculos”.
Na França, na Universidade de Paris V – Sorbonne, Carmen fez mestrado e doutorado abordando fast-foods – o primeiro enfocando a publicidade e o segundo com um abordagem mais ampla das práticas e significados relacionados a essas cadeias globais. Chegou a trabalhar num fast-food, o que foi fundamental para escrever um capítulo. “A tese mais geral partia da constatação de que a alimentação era o último item a ser modificado numa imigração. É muito difícil mudar um hábito alimentar. Ora, como explicar que os fast-foods estivessem se espalhando pelo mundo de uma forma homogênea? Será que a globalização representava a homogeneidade? O que pude mostrar na tese é que o movimento de globalização é um processo com dupla face. Tem uma face que é homogeneidade, mas tem outra que é a irrupção de localismos, a permanência e produção de heterogeneidades”.
Quando Carmen saiu para o doutorado, em 1988, não havia cadeias instaladas em Florianópolis – a primeira abriu no ano seguinte. A ideia inicial era fazer uma comparação entre Paris e São Paulo, para mostrar o movimento de dupla face, como o processo era diferente nas duas cidades. “Depois, vi que não fazia sentido ficar só nestes dois lugares. Fiz observações em Nova Iorque, na Inglaterra, em quase toda Europa e no norte da África”.
Futebolistas
Este tipo de pesquisa, multi-situada, também é o que caracteriza o mais recente estudo de Carmen, sobre migrações de futebolistas, iniciado entre 2003 e 2004, quando foi a Cádiz, na Espanha, num convênio. Ela pensava em trabalhar novamente com alimentação, mas havia duas equipes de futebol na região, Sevilha e Bétis, com muitos jogadores brasileiros, o que lhe chamou a atenção. “Na época, a gente lia nos jornais que os brasileiros eram mercenários, porque estavam atrás de dinheiro; consumistas, porque queriam luxo; e que não tinham sentimento patriótico. Comecei o trabalho com estas hipóteses: será que eles são mercenários, consumistas e estrangeiros?”
A partir daí, passou a estudar o estilo de vida e os valores dos jogadores, e circulou por quase 20 países. Ela visitou suas casas, conviveu e conheceu as famílias dos atletas. Foram mais de 500 jogadores, várias celebridades, mas muitos outros na periferia do mundo do futebol. “A minha conclusão é de que não era uma coisa nem outra”. A pesquisa também avança na questão das fronteiras, um lugar tenso e conflituoso por natureza, mas não para esses jogadores. “Pessoas diferentes atravessam as fronteiras de modos diferentes”. Para os jogadores de futebol, não há fronteiras entre os países, essas são ultrapassadas com facilidade pois são conduzidos pelos clubes, explica: “A fronteira que existe para eles é entre os clubes”.
O trabalho de Carmen também mostra que existem populações que vivem em “bolhas”, com cotidianos artificiais, para os quais a ideia de migração não se aplica, como executivos de grandes empresas, diplomatas, políticos, milionários, que não se consideram e não são vistos como imigrantes nos países destino. “Migrante tem sido usado para populações pobres, executivos são expatriados e os jogadores entrariam nesta categoria. São pessoas que viajam sem saírem do país, mantêm contato muito estreito com o país de origem. Levam daqui a comida, e a cozinheira, se podem. Estão na internet, no Skype, a música que ouvem no carro é brasileira”.
A pesquisadora ressalta que ninguém é totalmente “impermeável” ao lugar que reside e cita o movimento de atletas Bom Senso (criado para buscar melhores condições no futebol brasileiro) como exemplo. “Mostro que estes jogadores de futebol acabam trazendo ideias para o país. Nem todos, mas os que mais se deixam contaminar pelo que veem no exterior”. Como exemplo, lembra que as lideranças do Bom Senso tinham atuado no exterior e voltado. “O fato de terem ido para o exterior, mesmo sem o capital cultural da escolaridade, deu algo a mais, uma visão de mundo, uma compreensão que permitiu politizar o seu trabalho”.
Religião
Em setembro, Carmen sai para um estágio de pós-doutorado em Nova Iorque, onde o enfoque será a relação entre o crescimento da religião e esporte, especialmente o crescimento do campo evangélico, e a importância nele dos futebolistas. “O futebol é só uma porta de entrada para abordar questões que são importantes para o país: emigração, gênero e sexualidade, religião, fluxos globais. Quando comecei a trabalhar, a emigração de brasileiros tinha se tornado uma coisa muito importante: o Brasil tinha deixado de ser um país que recebia, para ser um país que enviava migrantes”.
Se um entre quatro brasileiros se declara evangélico, os jogadores de futebol também têm este perfil. “Eles vêm de camadas subalternas, tiveram uma ascensão meteórica. A minha ideia é estudar o que a religião aporta aos jogadores de futebol e o que o futebol aporta à religião”. Carmen chama os jogadores de “pastores globais”, citando o caso de Neymar e a faixa “100% Jesus”, que usa em comemorações: “Eles divulgam, para o mundo inteiro, a sua religião”.
A religião garante aos jogadores, diz Carmen, uma cosmologia que os sustenta no exterior. “Eles veem a vida no exterior como sacrifício, não é o lugar que gostariam de estar, pelo menos no início da estada. Vi jogadores chorarem de saudade, não é a intenção de muitos deles, é um projeto familiar, dos clubes, dos empresários. Eles são uma peça em um sistema futebolístico mundial”.
Insatisfação
A fusão do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação com o das Comunicações (MCTIC) é alvo de muitas críticas da pesquisadora, que advoga pelo retorno do MCTI. “É terrível para a universidade e para o país, uma situação que vai implicar num grande retrocesso. Só tenho a lastimar, acho que o Brasil tinha tudo para ser um país exemplar, e estava sendo em termos de políticas sociais, mas infelizmente agora temos este golpe”.
Carmen recorda que coordenou um grupo no CNPq que fez um plano para a área de humanas, formado por especialistas de diferentes áreas das Humanas, que havia conseguido muitos avanços, como a criação de uma Diretoria de Humanas no CNPq. Como presidente da ABA, ela esteve na origem da criação de uma rede, o Forúm de Ciências Humanas, Sociais e Sociais Aplicadas, congregando associações científicas – no início foram 13 e aumentaram para 40.“Estávamos num diálogo com o MCTI, e agora transformaram o ministério num apêndice do Ministério das Comunicações, que é um lugar de lobby, de concessões”.
Um dos temores de Carmen é que os avanços em educação dos últimos anos sejam perdidos, tanto por políticas de governo como nos cortes anunciados para o ensino superior. “Eu vi índios se formarem na graduação, no mestrado, no doutorado. Os negros estavam começando a mudar a face da universidade e isso é positivo para o país e para os nossos alunos. Isso vai mudar, a desculpa econômica é absurda: o país iria se recuperar da crise fosse o governo que fosse”.
A pesquisadora também reclama dos avanços de ideias como a “escola sem partido”. “Paulo Freire é o pensador brasileiro mais conhecido no exterior, quer queiramos ou não. No entanto, essa escola sem pensamento quer proibir o Paulo Freire”.
Caetano Machado/Jornalista da Agecom/UFSC
Fotos: Henrique Almeida/Diretor de Fotografia da Agecom/UFSC