Dissertação aborda a criminalização do aborto
A criminalização do aborto e seu processo judicial é tema da dissertação ´Um Grande Júri: análise do processamento penal do aborto’, apresentada em agosto de 2012 ao Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da UFSC (PPGAS) pela antropóloga Emília Ferreira, sob orientação da professora Miriam Pillar Grossi, integrado às pesquisas do Núcleo de Identidades de Gênero e Subjetividades (NIGS). O objetivo da dissertação é discutir como o sistema de justiça criminal brasileiro trata o assunto, o que acontece quando um caso de aborto chega ao judiciário e como ele é processado. Como exemplo, Emília usa o caso da clínica da ex-médica Neide Mota Machado, acusada de fazer abortos clandestinos no Mato Grosso do Sul.
A diferença entre o elevado número de ocorrências de aborto e os poucos casos de julgamentos no judiciário chamou a atenção da antropóloga ainda quando ela era aluna de graduação e pesquisava o processamento penal dos homicídios na região metropolitana de Florianópolis. No Brasil, o aborto é considerado um crime contra a vida e é julgado pela mesma vara criminal que o homicídio, sendo encaminhado para júri popular. Apesar de não coibir a prática, alguns casos (a maioria denúncias) são escolhidos como exemplos para reforçar a criminalização. “O julgamento adentra a vida dessas mulheres de uma maneira muito radical”, diz Emília.
A escolha do caso se deu pela sua singularidade, pois até então nunca houve o processamento judicial de pacientes baseado em prontuários médicos após o fechamento de uma clínica de aborto. Em 2007 Neide Mota foi denunciada pela emissora de televisão local, TV Morena, afiliada da Rede Globo, por realizar abortos desde o final dos anos 90 em Campo Grande (MS). A reportagem teve transmissão em rede nacional e incitou o debate entre grupos pró e contra o aborto. Foram mais de 1200 processos contra pacientes, funcionárias da clínica e médica responsável, que era também dona do estabelecimento. A data do primeiro júri, em abril de 2010, coincidiu com o início da pesquisa.
Para o trabalho, Emília entrevistou pessoas ligadas ao sistema jurídico; pacientes indiciadas; feministas que trabalham no caso e a jornalista responsável pela reportagem da TV Morena que gerou a denúncia. Também acompanhou o principal júri do caso e as suas sessões recursais, e assistiu a uma sessão de suspensão do processo de uma das mulheres envolvidas.
Uma das características do julgamento de casos de aborto é que as rés não atendem a “um imaginário de criminoso”, segundo Emília. O que foi relatado por juízes e promotores nas entrevistas é que eles não consideravam as mulheres como criminosas, pelo fato de não terem antecedentes criminais e não corresponderem a esse perfil, encarando o fato como “um equívoco nas suas vidas”. Se esse julgamento não se expõe formalmente, entretanto, ele aparece de forma velada, em forma de constrangimento e coação. Foi dispensado a essas mulheres tratamento igual ao de criminosos, em alguns casos mesmo quando a culpa não havia sido confirmada. Muitas mulheres relataram que não se sentiam culpadas, mas que o processo as fez se sentirem criminalizadas.
“O grande problema é que as pessoas encaram o aborto como uma pergunta de sim ou não”, explica a antropóloga, considerando que não são levados a debate questões de políticas públicas de educação sexual e dos riscos do aborto inseguro, atitudes que se refletem no conservadorismo da sociedade brasileira e, consequentemente, no sistema jurídico.
O trabalho também destaca o papel da mídia, como uma importante propulsora da dimensão que o caso tomou. A partir da denúncia da TV Morena, o inquérito foi instaurado imediatamente e só no dia seguinte registrado o boletim de ocorrência, invertendo a ordem, já que a investigação não foi policial. Com a publicização e a repercussão nacional, o caso ganhou mais força que a ordem burocrática regulamentar, e o judiciário sentiu a pressão popular pela condenação. Nesse sentido, para a autora, a mídia não só revelou o caso, como deu o tom de acusação que permeou toda a investigação.
Consequências do caso
Em abril do ano passado as funcionárias da clínica foram condenadas a penas que variaram de um ano e três meses em regime aberto a sete anos em regime semi-aberto. A ex-médica anestesiologista Neide Motta foi encontrada morta em novembro de 2009, três meses antes de ser levada a júri popular, dentro de seu veículo na entrada de uma chácara na capital do Mato Grosso do Sul. Em seu carro havia uma seringa e dois frascos de lidocaína, substância anestésica que é letal em altas doses. O inquérito policial concluiu que a ex-médica se suicidou, apesar de não ter sido feito exame toxicológico em seu sangue para detectar a substância.
Novo Código Penal
Atualmente, tramita no Congresso Nacional o projeto de um novo Código Penal com 544 artigos, 183 a mais que o vigente. O novo código prevê a ampliação dos casos de aborto legal. Além da permissão para caso de risco de vida da gestante, em caso de estupro e no caso de fetos anencéfalos, a proposta amplia a possibilidade de que ele seja realizado por vontade da gestante até a 12ª semana mediante atestado médico ou psicólogo de que a mulher não apresenta condições psicológicas de arcar com a maternidade.
Mais informações: emiliajferreira@gmail.com
patriciacim@gmail.com