Especial Pesquisa: tese gera fundamentos para regulamentação do uso da bracatinga, espécie nativa da Mata Atlântica
Desde o final dos anos 80, assim como preparam o solo e cuidam das plantações de milho e feijão, os agricultores cultivam as árvores de bracatinga. A sabedoria popular recomenda só fazer o corte após as plantas terem “sementado” pelo menos três vezes e manter árvores adultas, o que garante a formação do próximo bracatingal. Os agricultores também usam fogo para quebrar a dormência das sementes no solo; fazem “raleio” para melhorar o crescimento das mudas e protegem a área para evitar a entrada de gado e fogo.
Com esse trabalho, as famílias manejam a espécie que naturalmente brota em áreas abertas da Mata Atlântica. Mas, de acordo com a legislação ambiental, estão agindo contra a lei, cortando florestas secundárias nativas. São exigências legais que apresentam menos elementos conservacionistas do que a atuação dos agricultores, mostra tese desenvolvida junto ao Programa de Pós-Graduação em Recursos Genéticos Vegetais, ligado ao Centro de Ciências Agrárias da UFSC.
Conhecimento popular
O estudo foi conduzido nos assentamentos Putinga, Jangada, Treze de Outubro e São Roque, nos municípios de Calmon e Matos Costa. Possibilitou a avaliação dos processos históricos, culturais, ecológicos e econômicos envolvidos com a bracatinga no Planalto Catarinense. E mostra que o uso dessa árvore contribui para que a maior parte da área dos assentamentos tenha mais de 60% de cobertura florestal, tanto de bracatingais como de florestas secundárias nativas.
A pesquisa comprova também que os bracatingais são formações florestais com mais de 80% de árvores desse tipo, que surgem a partir do esforço dos agricultores. “O bracatingal é uma opção de uso do solo, e não uma cobertura vegetal nativa de especial necessidade de proteção”, argumenta Walter Steenbock, autor da tese ´Domesticação de bracatingais: perspectivas de inclusão social e conservação ambiental`.
Com a ajuda dos agricultores, Walter identificou os cuidados considerados importantes para a formação e manutenção dos bracatingais. Além disso, avaliou aspectos da cadeia produtiva da espécie, construindo uma visão crítica sobre a legislação ambiental.
Segundo ele, o caso da bracatinga no Planalto Catarinense revela a opção da legislação brasileira de promover a importação de técnicas e práticas desvinculadas da realidade local. Uma postura que prejudica as populações tradicionais e negligencia o fato de que o uso que fazem dos recursos naturais pode ser ecologicamente sustentável.
“A existência de parâmetros de manejo e de uma estrutura bem característica pode ser um critério simples e eficaz para a definição de um bracatingal manejado, uma paisagem domesticada, e não uma floresta secundária nativa, possibilitando o uso legal destas formações, de forma semelhante ao que ocorre em relação aos plantios florestais”, destaca Walter em sua tese. Esta visão permitiria o uso do bracatingal em qualquer momento do ciclo, com maior benefício para as famílias assentadas. Os agricultores poderiam explorar a bracatinga para produção de escoras, palanques, lenha e tabuados, agregando valor a seu trabalho e reduzindo o impacto ambiental e social da produção do carvão.
“O estudo indica a importância da busca pela participação e envolvimento dos agricultores na discussão e deliberação dos instrumentos legais”, alerta Walter. A pesquisa surgiu a partir da demanda de lideranças dos agricultores da região junto ao Ibama. A partir dessa solicitação, foi montado um projeto que integrou diversas instituições. Entre elas, o Núcleo de Florestas Tropicais da UFSC, Epagri, Incra e a Cooperativa de Trabalhadores da Reforma Agrária de Santa Catarina.
A tese de Walter é parte desse trabalho e resultou em propostas de mecanismos para a regulamentação do manejo dos bracatingais, envolvendo aspectos técnicos, metodológicos e organizacionais, para que os agricultores assentados possam trabalhar de forma legal e com maior inserção na cadeia produtiva.
“O trabalho tem o mérito de reconhecer o sistema tradicional dos agricultores e viabilizar suas práticas”, considera o professor Maurício Sedrez dos Reis, orientador do trabalho e coordenador do Núcleo de Pesquisas em Florestas Tropicais da UFSC.
Mais informações: steenbock.walter@gmail.com
Por Arley Reis / Jornalista da Agecom
Saiba Mais:
Diferenças entre bracatingais e florestas secundárias:
Florestas secundárias
– A densidade total de indivíduos é, em média, em torno de 8 mil indivíduos por hectare, em formações de 1 a 4 anos
– A percentagem da bracatinga nunca é superior a 18 %, em florestas secundárias de 1 a 16 anos.
– A densidade total de indivíduos varia na ordem de 5 mil a 8mil indivíduos por hectare ao longo do processo sucessional, em florestas de 1 a 20 anos de idade.
– Maior diversidade de espécies, relativamente aos bracatingais, nas florestas secundárias
Bracatingais
– Densidade total de árvores, em média, superior a 30 mil por hectares, em bracatingais de 1 a 4 anos
– Mais de 80% de árvores, em bracatingais de 1 a 16 anos
– Densidade expressivamente reduzida ao longo do tempo, sendo, em bracatingais de 17 a 20 anos, de apenas 2,5 % do total de árvores que ocorriam no início do ciclo
– Reduzido número de espécies além da bracatinga
Manejo do bracatingal pelos agricultores
– formação dos bracatingais na época adequada, evitando o efeito de geadas sobre as plantas jovens;
– formação somente após a garantia de elevada quantidade de sementes no solo;
– aplicação de fogo para a quebra de dormência das sementes;
– manutenção de árvores ou de bracatingais adultos nos lotes como matrizes;
– desbaste sistemático de plantas no início do ciclo dos bracatingais;
– controle do gado, da entrada de fogo e de formigas
Depoimentos de agricultores:
“Quando viemos pra cá não conhecíamos
a bracatinga, mas tinha gente que já
usava ela pro carvão. A gente não tinha
ideia que ela era dessa região, desse
clima. Aí percebemos que precisávamos
conviver com ela.”
Sr. J. (Assentamento São Roque)
“Antes a gente achava que o bracatingal
fazia a terra ficar ácida, então se botava fogo
pra tentar acabar com a bracatinga…Muita
gente tentou acabar com os bracatingais
assim. Mas mesmo a gente tentando acabar
com a bracatinga, pra fazer lavoura, a
bracatinga venceu”.
Sra. E. (Assentamento São Roque)
“Quando a gente chegou, aqui tinha
mato com bracatinga, vassoura, vassourão…
mas a bracatinga não sementava e
não vinha forte no meio dos mato. Quando
as empresas começaram a tirar o mato e
a gente começou a queimar pra plantar,
começou a vir só bracatinga, que começou
a dar flor e semente muito rápido”.
Sra. En (Assentamento São Roque)
“Lá no oeste, quando a gente tinha
terra, a gente tava acostumado a plantar
duas safras de milho por ano… não tinha
geada pra atrapalhar. O milho vinha que
vinha viçoso, e não precisava de adubo.
Quando a gente começou a plantar aqui,
ai viu que o milho não vinha direito, nem
em uma safra só. Aí a gente começou a
lidar com a bracatinga, que era a única
coisa que dava”.
Sr. V., Grupo 3, Assentamento Putinga
Fonte: tese ´Domesticação de bracatingais: perspectivas de inclusão social e conservação ambiental`
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