A violência é a falta da palavra: discurso do ódio é tema de evento de psicanálise

29/06/2018 15:05

O discurso do ódio nasce da intolerância. Uma amiga contava esses dias sobre o assédio que as mulheres sofrem ao pedalar, quando estão em grupo. “Sozinhas, não somos hostilizadas pelos homens, nos sentimos muitas vezes até protegidas. Porém, quando estamos em grupo, parece que o ‘jogo’ muda e somos assediadas, xingadas… dá medo”.

Por que isso acontece? Por que, na atualidade, a polarização de grupos tem provocado manifestações incompatíveis com o século em que imaginamos viver? O ‘Discurso do Ódio’ foi um dos assuntos debatidos na 1ª Jornada de Pesquisa do Laboratório de Psicanálise, Processos Criativos e Interações Políticas (Lapcip/UFSC), cujo tema foi Psicanálise e Laço Social, realizada em quatro encontros noturnos no mês de junho.

O psicanalista Oscar Reymundo falou por 40 minutos sobre o surgimento do ódio e os seus reflexos no comportamento de cada um de nós na contemporaneidade. Um assunto denso, que foi acompanhado do início ao fim pelos olhares e ouvidos atentos dos acadêmicos de Psicologia.

Segundo Reymundo, o ódio é um sintoma social e se apresenta por meio de atos que corroem os laços sociais e fazem surgir o pior do ser humano. “O ato violento é a manifestação da violência no momento em que a palavra falha, ou seja, em que há a suspensão da convenção social de dialogar para resolver conflitos”. Anterior ao ato violento, surgem as manifestações de ódio. Reymundo cita a polarização atual envolvendo conflitos políticos e sociais no Brasil como sendo um reflexo da falta da palavra.

A temática me remeteu a uma palestra do sociológico e jornalista Marcos Rolim, disponível online, em que ele cita a intolerância como uma indisposição diante do outro. “Isso provoca a separação, a não convivência, o isolamento e o desprezo. O ódio vem depois e é possível que ele seja o mais potente sentimento de hostilidade que os humanos são capazes de produzir”. O fato vivenciado pela minha amiga demonstra isso.

Quando a minha amiga pedala sozinha, ela é uma. Uma mulher, uma mãe, uma irmã, uma filha, com identidade, com rosto. A hostilidade não a persegue. Porém, quando assume a identidade de um grupo, de mulheres que pedalam, que são livres e independentes, o discurso do ódio se manifesta nas suas piores vertentes.

Neste contexto, o ódio e a intolerância se manifestam no plural, como exemplifica Rolim durante a sua fala: um racista odeia os negros/os índios, o misógino odeia as mulheres etc. Neste ponto, o indivíduo lida com estereótipos e não com uma pessoa em especial. “Os que odeiam fazem no plural. No ódio, trata-se de desconhecer a humanidade do outro. Não se sustenta tal pretensão diante de uma pessoa concreta, com nome e olhos. É preciso, antes, transformá-lo em um ajuntamento, em um coletivo repugnante, em uma manada. Não por acaso, os nazistas raspavam as cabeças dos judeus e lhes retiravam todos os pertences e as roupas antes de encaminhá-los às câmaras de gás, em grupos”.

Para Ana Lúcia Mandelli de Marsillac, coordenadora do Lapcip, é fundamental discutir esse assunto no espaço acadêmico, pois é onde são trabalhados os discursos e a produção de conhecimento. “O Oscar trouxe, de forma bem clara, o quanto a violência é a falta da palavra. O espaço acadêmico é próprio para constituirmos discursos e pensar sobre as implicações do nosso fazer no campo social como, ainda, me parece o ambiente mais legítimo e mais propagador para uma mudança nessa perspectiva dicotômica”.

Oscar Reymundo explica a diferença entre ódio e ato violento. Enquanto no primeiro há um sujeito que odeia, no segundo o sujeito (ser falante) fica em suspenso. “O ato violento reúne elementos heterogêneos. Hoje, vemos situações alarmantes e que põe em risco o convívio em democracia e que, por sua vez, fazem o ódio conduzir a atos de extermínio para a satisfação de alguém ou alguns. O assassinato de Marielle Franco no Rio (de Janeiro) constitui um exemplo patético da ultrapassagem do campo do simbólico para o real do ato violento”.

Ana Lúcia reforça que, às vezes, na afirmação da diferença, queremos também produzir o universal. “O que viemos pensando a partir da psicanálise é ‘somos diferentes na nossa constituição, não somos unívocos nem conosco mesmos’, como o Oscar disse, ‘a gente também se odeia’. Precisamos passar a pensar e aceitar a diferença do outro sem que isso vire violência, para que possamos entrar no campo de uma política de sustentar posições singulares”.

O psicanalista contextualiza em sua fala o surgimento do ódio a partir de nós mesmos, ao mencionar que a parte expelida do ódio faz parte do próprio sujeito, e não do mundo. “O primeiro contato do mamífero humano com o mundo externo surge da expulsão de um excesso interno insuportável e impossível de nomear. Em resumo, seria localizar no mundo externo o que internamente se torna insuportável. O ódio ao estranho ameaçador é um ser constitutivo do próprio EU, que é lançado ao mundo”.

O ódio seria a minha projeção, enquanto indivíduo, no outro, pois o que não se encaixa no EU é expelido para o mundo externo e retorna como tendo partido imaginariamente do outro. “Isso produz um efeito hostil, paranoide, que podemos sintetizar dizendo: ou EU ou VOCÊ”, salienta Reymundo.

Rolim aborda em sua palestra que o ódio precisa ser isolado o mais rápido possível para que ele não encontre a sua alternativa política. “Ocorre que o debate público entre nós é esquálido e as ofensas, sempre mais prováveis que os argumentos. Também por isso, cresce a indisposição com o outro. O vazio na experiência democrática tem provocado a liberdade vaga sem rumo. Desprovida de uma plataforma onde ancorar seus desejos por mudança, a cidadania se dissolve. O que resta é a impotência e o desespero. O problema é que a impotência e o desespero possuem uma forma ativa e esta forma é o ódio. É preciso identificar as manifestações do ódio como ameaças reais”.

Marsillac frisa o fato de o discurso do ódio estar aguçado hoje em dia, em especial, devido a sua relação com a lógica da globalização neoliberal. “Isso incentiva o individualismo e um apagamento das singularidades. Além disso, por uma lógica de sucesso, felicidade e plenitude, torna difícil o acesso às diferenças que nos habitam, logo a diferença, que o outro escancara, produz ódio. Isso traz um esgotamento da esfera política, pois implica em um tempo de discussões e considerações das diferentes posições que isso convoca”.

Infelizmente, de acordo com o Reymundo, o ódio continua mesmo após o EU projetar as suas imperfeições e seus fatos subjetivos no outro. “Talvez por isso, seja comum buscar a humilhação pública ou a degradação do outro odiado como forma de destruir esse outro. Odeio quando sinto que o outro, querendo ou não, desmontou minha imagem ideal e isso faz com que EU me depare com a precariedade do meu SER”, diz Oscar, complementando que o ódio é algo ilimitado que me habita e, por isso, é preciso que façamos algo com isso para não nos autodestruirmos ou destruir o outro.

O sociólogo Rolim sugere, para isso, que usemos a razão quando pensarmos. “Pensar é difícil, é doloroso, porque pensamos a partir das nossas incertezas. O mal é o resultado da ausência de reflexão, de pensamento, de questionamento, como reflete Hannah Arendt. E isso se agrava na nossa sociedade porque estamos pensando cada vez menos”.

“Uma vida sem pensamento é possível, mas ela fracassa em fazer desabrochar a sua própria essência – ela não é apenas sem sentido; ela não é totalmente viva. Humanos que não pensam são como sonâmbulos” – Hannah Arendt.

A grande ameaça das redes sociais talvez seja o sonambulismo, critica Rolim.

Futuro

A próxima edição da Jornada de Pesquisa do Laboratório de Psicanálise, Processos Criativos e Interações Políticas (Lapcip/UFSC) está prevista para ocorrer no segundo semestre de 2019 e visa divulgar e pensar a psicanálise como um discurso crítico na contemporaneidade.

Para conhecer mais

Livro ‘Política e psicanálise’ de Ricardo Goldenberg

Disponível em: https://lectio.com.br/dashboard/midia/detalhe/1083

Página do Lapcip UFSC

Assista à palestra do sociológico e jornalista Marcos Rolim.

 

Nicole Trevisol / Jornalista da Agecom / UFSC

Pesquisa: Adriano Nunes Sá Brito / Agecom / UFSC

Imagem destaque: http://www.mobilizadores.org.br/

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